Sabão na língua do João

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João Araújo é um advogado português com vasto currículo na barra criminal e, nesta última semana, na barra de sabão. Será para sempre o homem que, diante das acusações ao seu famoso cliente — o ex-primeiro-ministro José Sócrates — de alegada lavagem de dinheiro, mandou uma jornalista lavar-se diante das câmaras de TV.

Uma biografia heterodoxa que ficará marcada por esse dia (16 de Março de 2015) em que para uns Araújo fez um ataque sujo e pessoal a uma jornalista e, para outros, passou-se da cabeça mas respondeu como se deve à sujeira do mau jornalismo.

Esta página é um documento histórico. Poderá servir para “memória futura”, com as palavras e a descrição rigorosa mas expressiva de um clássico da história jurídico-mediática de Portugal: “A senhora devia tomar mais banho porque cheira mal.” Quando a III Guerra Mundial rebentar com todos os servidores de Internet, as televisões e registos digitais, quando só sobrarem raros documentos em papel nos cinco continentes, esta Revista 2 do PÚBLICO dirá “presente”.

Para efeitos legais e imediatos, também ajudamos o Ministério Público. Facilita a queixa-crime do Correio da Manhã/Tânia Laranjo contra o advogado de José Sócrates. Basta que V. Exa — sr. procurador da República a quem calhou esta rifa — faça uma fotocópia do Relatório 1, abaixo impresso, que não tem erros crassos de transcrição como é costume acontecer-vos.

Relatório 1 (conhecido como “do Banho”):

[O advogado João Araújo sai do Supremo Tribunal de Justiça e caminha pelas arcadas da Praça do Comércio. Vai no sentido contrário ao estabelecimento Martinho da Arcada, onde tanta vez bebeu um copo (sempre mais um, e um a mais) o poeta Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, autor dos versos “Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! Já disse: sou lúcido. Nada de estéticas com coração: sou lúcido. Merda! Sou lúcido.”

Araújo é lúcido? Depende. Araújo não sonha com poesia, só quer fumar um cigarro e afastar-se do tribunal onde lhe negaram um “habeas corpus” ou “habius corpus”, como diz o repórter da CMTV que vive pendurado ao sol e à chuva num prego do muro da prisão de Évora e adora irritar as visitas. Mas em Lisboa o advogado de José Sócrates é agora perseguido por microfones coloridos. São muitos, saltam de todos os lados, melgas atrás de um pobre muar encurralado no coração da capital. O desiderato do advogado Araújo complica-se sobremaneira, adivinha-se quezília.]

Repórter CM: Chegou a acreditar que a sede da competência do…

[(João Araújo tem um arrepio e interrompe a jornalista]:

J. Araújo: Desampare-me a loja. Desampare-me a loja.

CM: dr. João Araújo… sempre o problema com a Correio da Manhã-TV…

[João Araújo olha para trás e diz, com voz grossa, mas trémula, que não dá para reproduzir aqui porque isto é uma transcrição]:

J. Araújo: A senhora devia tomar mais banho, porque cheira mal.

[Som de grilos no deserto abafa trânsito da Baixa. Os outros jornalistas fazem de conta que não ouviram o que acabaram de ouvir e deixam a colega a arder sozinha. Tânia Laranjo tenta regressar à vida.]

CM: Sempre o problema com a CMTV…

[Andam alguns metros em Lisboa, destino turístico calcorreado por milhões de turistas estrangeiros e alheados, quiçá, quiçá não, completamente alheados, ignaros dos dramas e paixões que consomem a alma lusitana em 2015 por culpa do “preso 44 de Évora”. Tânia Laranjo percebe em dois segundos que lhe saiu a sorte grande e que poderá esturricar o “desconcertante advogado”. Muda a cara para o modo “virgem ofendida”.]

CM: dr. João Araújo, acha normal ter este tipo de comportamento?

J. Araújo: Oh minha senhora, já lhe disse para me desamparar a loja!

CM: dr. João Araújo, não quer comentar…

J. Araújo: Não falo consigo!

CM: Não fala com o Correio da Manhã habitualmente…

[Araújo desabafa para o seu colega de defesa, que tem óculos escuros na cara e está calado desde que nasceu]:

J. Araújo: Eh pá, esta gajada mete-me nojo!

[Passam ao largo do Arco da Rua Augusta, altiva porta de entrada do antigo Império, local que antes viu Miguel de Vasconcellos ser defenestrado em 1640 e reerguido depois do terramoto de 1755. No cimo do arco, um carrilhão de relógio dobra os sinos pelos ímpios tempos da nossa Pátria!… Um ex-primeiro-ministro preso por acusações de crimes de enriquecimento ilícito, fraude fiscal, corrupção, etc., com a ajuda de um amigo que quem nos dera a nós. Fugas de informação na Justiça e especulações nos jornais maiores do que as frinchas das esquálidas casas dos portugueses que serão despejados na rua por não poderem pagar o novo IMI… Como disse Camões, “O dia em que eu nasci morra e pereça”, etc. Em Espanha, por sinal, anunciaram ter encontrado ossinhos do esqueleto de Cervantes. Nós temos um Luís Vaz nos Jerónimos, mas nunca teremos a certeza absoluta se é mesmo ele.

Na pressa do instante, um dos fotógrafos tropeça e espalha-se ao comprido nas lajes do Terreiro do Paço. Ficamos à espera de lhe ver a cabecita no ecrã, mas ele gatinha para fora, foge do ridículo. Já Araújo não. O João truculento suspira, põe as gafas escuras e “acende um pensativo cigarro” (Eça agora)]:

J. Araújo: Eh, temos de andar com esta gajada atrás, esta canzoada?

[Ninguém responde. Onde estará estacionado o seu Smart, alguém o ajuda? Escuro. Fim.]

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