Terça é noite de Baile

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Chegamos no momento em que está a terminar a aula de Forró Universitário. Sofia, a professora, e os alunos ficam por ali, a arrumar a sala e a comer alguma coisa no bar. Conversam encostados à mesa de bilhar, tapada, porque, diz o senhor Vasco, há poucos que saibam jogar bilhar. O snooker e os matraquilhos têm muito mais saída — enfim, tanto quanto é possível ter saída nesta altura em que o Lusitano Clube, em Alfama, pertinho da Sé, atravessa dias difíceis.

“Andamos aqui por amor à camisola”, diz o senhor Vasco, que pertence à direcção do clube, nascido em 1905, e que ainda exibe nas paredes, como compete, um busto da monarquia e a velhinha bandeira, recuperada e emoldurada, com fundo vermelho e verde e, no centro, um sol onde o L e o C se entrelaçam. “Instruir para Construir” foi o lema escolhido pelo grupo, ligado à maçonaria, que em Dezembro de 1905 aqui se reuniu, criando o clube, onde, entre desporto e cultura, futebol e teatro, conspiravam contra a monarquia que haveria de cair cinco anos mais tarde. Nas paredes ainda há placas recordando esses tempos áureos, com homenagens a actores e companhias de opereta.

Mas tudo se tornou mais difícil a partir das décadas de 60 e 70. Hoje há problemas, obras que são necessárias, orçamentos que são cada vez mais curtos, mas, como diz o senhor Vasco, ainda há “amor à camisola”. E há festa — sobretudo às terças-feiras à noite, quando chega a Roda de Choro de Lisboa. É disso mesmo que estamos à espera.

Do salão de baile já chega o som dos músicos a afinar os instrumentos. Os alunos do Forró terminam as bifanas e as cervejas. Daí a pouco abrem-se as portas. Ao fundo da sala, os cinco músicos da roda, três portugueses, dois brasileiros, já vestidos a rigor, calças brancas, camisa preta, chapéu de palha com fita preta, suspensórios brancos, ares de malandro. Atrás deles, um piano sem cauda, centenário como o clube.

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A Roda de Choro de Lisboa apresenta-se todas as terças-feiras a partir das 23h e até à 1h no Lusitano Clube, Rua São João da Praça n.º 81, em Alfama, junto à Sé. A entrada no baile custa 4€

As ventoinhas rodam no tecto. O salão, também usado como ginásio pelos alunos da escola que fica no andar de cima, tem espaldares encostados às paredes, por entre as janelas com tabuinhas de madeira. À volta dos candeeiros de parede esvoaçam balões coloridos e uma bola de luz dispara pontos verdes e vermelhos que, enlouquecidos, percorrem paredes e tecto numa dança sem regras.

O que aqui se toca parte do choro, mas vai muito mais longe. Tudo terá começado no Brasil, no final do século XIX, quando as danças de salão na moda na Europa se misturaram com os ritmos africanos e brasileiros. “Apareceu mais ao menos na mesma altura que o jazz nos Estados Unidos”, explica Nuno Gamboa, que toca a viola de sete cordas. De Cabo Verde vinha a morna, de Lisboa chegava o fado (e, com a corte que acompanhava D. João VI, toda a tradição das danças europeias, as polcas, as valsas, e ainda as orquestras e instrumentos) e tudo isto se cruzava.

Agora, em Lisboa, no clube de Alfama, a Roda de Choro — nascida em 2005 noutro lugar entretanto desaparecido, o Sítio do Cefalópede, e que passou por várias salas, inicialmente apenas com ensaios, que, graças ao êxito, se transformaram em concertos — continua a cruzar sons e a reinventar a música, tal como acontecia nos finais de Oitocentos no Brasil.

“Misturamos música clássica, rock, jazz e ainda o malhão, o corridinho, o fandango.” No Brasil, ninguém dança o choro como no Lusitano Clube. Aconteceu assim porque aqui se juntam os alunos do Forró Universitário e os músicos de uma Roda de Choro muito particular. E é isso que faz nascer um choro que é muito mais do que choro, dançado como o forró, que também já não é o forró tradicional, mas o mais elaborado “universitário”, adaptado aos ritmos do choro. E ninguém se perde.

Mesas e cadeiras junto às paredes e os pares já invadiram o centro do salão. Rodopiam, pés levíssimos, mal tocando a madeira do chão, braços que trocam e destrocam, abraços que se fazem e desfazem.

Suados e sorridentes, os dançarinos hão-de, dali a umas duas horas, despedir-se do senhor Vasco, que vai arrumar o bar e fechar as luzes. Os músicos vão guardar os instrumentos e tirar os chapéus de palhinha com fita preta. É noite de terça-feira, em Lisboa. É noite de Roda de Choro no Lusitano. Dorme-se pouco, mas isso é o que menos importa.     

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