Um pouco de neo-neo-realismo

Foto

Subindo a Avenida da Liberdade, à hora gelada do entardecer de Fevereiro, um homem de costas quadradas, com um tufo grisalho na cabeça, nem novo nem velho, parou à frente das montras de luxo. De costas, parecia um cliente que avaliava as maletas de couro e o brilho dos sapatos. De frente, talvez se visse a pele escamada e flácida no pescoço, uma linha vermelha nos olhos, a gola puída do casaco. E por baixo dele, já agora, as solas das botas estavam tão finas, eram tão gastas, que o homem sentia os relevos da calçada portuguesa como se caminhasse descalço em Lisboa.

Passou uma família angolana de sacos, queixando-se do fraco preço do petróleo e do beijo entre dois homens que cortou a transmissão da telenovela no país e, portanto, as coisas agora estão mal, mal, mal, não se sabe onde isto vai parar. O homem não ouviu os sacos falantes e não olhava as montras. Escutava os seus pensamentos, depois de passar um dia inteiro no Centro de Desemprego de onde saíra com os papéis de presença carimbados, a convocatória futura e uma renovada angústia.

Passou por um sem-abrigo que arquitectava a sua casa de cartão num canto de escada, um projecto de mendigo para noites de morrer de frio, e entrou na pastelaria. Refugiou-se numa mesinha coberta de jornais abertos, um mil-folhas gigante recheado de notícias.

— O que é que vai ser, senhor?
— Eu... eu já peço.

O empregado rodopiou os calcanhares a mais um teso do dia. Este quase me enganava.
— É consumo obrigatório, amigo.

O homem consultou o relógio no pulso (oferta do pai falecido). A segunda entrevista do dia era daí a uma hora. Não ia andar ao frio até lá. Recordou a irmã, na véspera: “Quim, eu queria muito ajudar-te outra vez mas não posso. Gastei tudo o que tinha. Se a tua mulher desaparece e não manda dinheiro da Bélgica, ou da Suíça, ou lá para onde foi, como posso eu? Também tenho filhos. Já disseste ao miúdo que estás desempregado? E eles dão-lhe de comer na escola? Quim, lamento. Procura noutro sítio. Onde é que vais, Quim, nem te despedes?...”

E porque às vezes as coisas são um amontoado aflitivo de coincidências, o homem pegou num jornal i e leu que o número de pessoas apoiadas pelas misericórdias chegou às 150 mil, “o dobro do que era há dez anos”, mas que os casos de pobreza se devem a “desconhecimento” e “vergonha”. O presidente da União das Misericórdias, Manuel Lemos, jura que “em Portugal só passa fome quem quer” e que “ser pobre é uma questão de auto-estima, acima de tudo”. Dizem que em Portugal a sociologia está em crise, mas há génios em actividade.

— Tenho de pôr a mesa para o jantar, amigo. Não quer ver o menu do balcão, a sopa com sande?
— Não obrigado, estou com a minha auto-estima em baixo.

O homem subiu a Avenida, passou ao Marquês, seguiu pela Artilharia 1 até à placa Defesa do Consumidor — Deco. Foi bem recebido. Uma doutora fez perguntas, cálculos, projecções. Escutou os diversos passos da ruína em curso do homem. Primeiro, foi para o “quadro de requalificação”, de onde subiu para o “quadro dos excedentes” e depois caiu no olho da rua. A seguir vendeu o carro, a mulher também perdeu o emprego, em seguida ela emigrou. Entretanto, o homem vendeu, pela Internet, os móveis da sala, depois cortaram-lhe a Internet e o telefone, mas também não precisava deles porque acabaram por lhe tirar luz e  água. Felizmente que o correio ainda funciona, chegou uma carta da mulher a pedir o divórcio porque encontrou “alguém”. Pelo meio, o banco accionou o processo por não pagamento do empréstimo da casa. Em suma, disse o homem, amanhã eu e o meu filho somos expulsos de casa, é a minha bela história, o que lhe parece à doutora?

A doutora disse que ele era mais um dos milhares de casos em que não há nada a fazer. As pessoas queimaram todas as reservas e as ajudas familiares e de amigos. É impossível o senhor renegociar as suas dívidas porque não tem forma de alguma vez as pagar. Nós não podemos fazer nada, é tarde demais, lamento. E o homem saiu à rua com vontade de pendurar uma placa no peito, escrita a tinta vermelha, como vira num filme:— SOU ECONOMICAMENTE INVIÁVEL.

Numa TV de loja de electrodomésticos, o primeiro-ministro explicava, a propósito da morte de uma doente de 51 anos por lhe ter sido negado um medicamento, que se deve “fazer tudo para salvar vidas humanas, mas não custe o que custar”. Portanto, fazer tudo desde que não se faça tudo (gastar dinheiro em vidas). A filosofia e a lógica estão em crise em Portugal, mas há génios em actividade. Passos Coelho acrescentou que as últimas estatísticas do INE sobre pobreza são, afinal, de 2013. Em 2015, todos estamos muito melhor. O homem tirou do pulso o relógio (do pai falecido).

— O relógio enganou-me. Ando dois anos adiantado.

E entrou numa loja de penhores, aberta à noite.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários