Uma grande moribundez

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E ao fim de quatro horas de interrogatório o presidente da comissão parlamentar informou que o poeta morrera e que faria um intervalo de cinco minutos. E o governador do Banco de Portugal gemeu aos microfones, depois da “tortura”:

— É uma grande morte...

Carlos Costa chegou a assustar o país com banalidades em directo:

— É óbvio que me custa muito quando alguém vai para a porta de minha casa e me chama gatuno. Foi a maior ofensa da minha vida.

Mas Fernando Negrão, presidente da mesa, deu-lhe com Herberto Helder:

— Não sei como dizer-te que a minha voz te procura.

A voz que te procura nos gritos dos lesados do GES/BES que te querem fazer a folha (de papel comercial), diz qualquer coisa de jeito que não temos a noite toda. E também a voz de Carlos Tavares, da Comissão de Mercados de Valores Mobiliários (CMVM), para quem o Novo Banco (“BES Bom”) tem obrigações “mais que morais” com as pessoas que caíram na esparrela da recapitalização. Mais do que a moral, pelo que aprendemos com este Governo, só há mesmo o dinheiro e os “cofres cheios”. Portanto, paguem o que devem aos reformados e viúvas que perderam tudo.

E foi nessa hora inquietante que Carlos Costa, num arrepio estético, fundiu na cabeça a terrível proximidade entre o capitalismo financeiro e a arte. A Alta Finança, como a Grande Poesia — a de Herberto, por exemplo —, às vezes não se percebe patavina, até porque não é para perceber. É outra coisa, tem outro ser. Eleva-se a si mesma. Os grandes poetas justificam-se a si próprios.

Mas os maiores artistas do nosso tempo, se calhar, não são pintores, poetas, músicos, mas os financeiros que constroem esquemas e falcatruas de imaginação radical. Abstracções mentais, criações sublimes que ultrapassam todas as artes! O Dinheiro é que é o Belo. E Wall Street, Quinta da Marinha, Praia da Coelha (lindas casinhas), as Florenças do novo renascimento destruidor. Ricardo Salgado, por exemplo, é um Picasso e a sua obra no BES a Guernica da destruição do sistema. Bom, se calhar é mais o autor do Menino da Lágrima dos Espírito Santo, mas adiante.

Carlos Costa, ao perceber a verdade, entrou em estado poético:

— Eu sou o cardiologista, descubro que o doente tem um problema na anca, e ele vai queixar-se que a culpa é do cardiologista?

Não, sr. governador, a não ser que o cardiologista diga ao coxo que está tudo bem e que pode correr a maratona, como V. Exa fez.

Carlos Costa, Obra Incompleta II:

— Não pode estar à chegada o que não estava à partida.*

Este verso não aguentou, infelizmente, a exegese prosaica da deputada Cecília Meireles, do CDS:

— Ó senhor governador, a situação de partida é que aquelas pessoas tinham dinheiro e a de chegada é que não tinham.

Carlos Costa, Versos Mal Rimados Sobre Reembolso Garantido no Grupo GES:

— É o princípio da conservação da natureza: eu tenho direitos, tenho direitos; não tenho direitos, não tenho direitos.

Podia ter cantado também, sr. governador, o princípio de conservação do medo: eu tenho cu, tenho cu; não tenho cu, não tenho cu.

Mais tarde a comissão parlamentar de inquérito encerrou os trabalhos de meses. Teve resultados inesperados, revigorantes, improváveis. Interrogatórios em que um defensor do capitalismo à solta se converte, à vista de todos, em perigoso controlador estatizante. Carlos Abreu Amorim (PSD):

— Já não sou um liberal. O Estado tem de ter força.

E em que uma suspeitosa extrema-esquerdista passa a santa padroeira nacional da Ironia, da Honestidade e da luta contra a Amnésia. Mariana Mortágua (BE) para Zeinal Bava, o aprendiz do “não tenho memória”:

— É um bocadinho amadorismo para quem recebeu tantos prémios, não é?

Este é o relato de um governador de Banco de Portugal que depôs no dia da morte de Herberto Helder, lembrado no interrogatório. O poeta do “ofício cantante”, genial, obscuro, que escreveu “em vernáculo e tudo”:

cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo.
requiescat in pace

Carlos Costa, em Maio ou Junho, quando o livrarem do suplício do BdP, poderá glosar (muito mal) Herberto para sempre. O poeta não tem culpa mas, ao morrer, esteve com Costa no dia mais duro do “ofício governante”. Um amado, o outro detestado. É a vida, não um poema zen sobre o sol que brilha à meia-noite ou a fuga das falésias.

Lá vai a bicicleta do governador em direcção
ao hemiciclo, por um dia de frio exemplar. De confusões às costas e nariz no ar, o governador sem anca dá à pata nos pedais.
Uma péssima memória, os sinais dos papéis comerciais e a história secreta da Banca
(...)
e o governador, afinal mais mortal do que os outros animais, dá à pata nos pedais do prestígio que se foi.

 
* Reportagem no PÚBLICO de 25 de Março de Cristina Ferreira e Paulo Pena

 

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