Ano novo, desejos velhos

A cada ano, tropeçamos nesta verdade insofismável: os desejos de ano novo que sempre acompanham o virar da última folha do calendário são como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma lista de bondosas querenças, maioritariamente inalcançáveis e utópicas, que nos vão servindo de guia para o que imaginamos ser o mundo perfeito.

Um exemplo deste impulso de bondades é-nos dado pela Câmara Municipal da Marinha Grande, centro e orgulho da ancestral indústria vidreira, em comunicado. Deseja a autarquia, pela pena do seu presidente, que 2014 seja: “Um ano em que a solidariedade e a fraternidade unam todos os marinhenses”; “um ano em que os nossos concidadãos no desemprego encontrem uma oportunidade na nossa terra e não sejam obrigados a emigrar”; “um ano em que a alegria e o sucesso entrem em todas as casas e premeiem todas as famílias marinhenses”; “um ano de paz e sã convivência entre todos os marinhenses”; “um ano de reforço na afirmação da Marinha Grande como referência na indústria portuguesa”; “um ano em que a tolerância vença o azedume”; “um ano em que a esperança vença o desânimo e a amargura”. Tudo isto com votos de “saúde para todos”. Se um milésimo disto fosse cumprido, entre os marinhenses ou quaisquer outros concidadãos, já não estaríamos mal. Mas como chegar a tais desejos? Só deitando mãos à obra. Como diz o velho poema de Drummond (que agora voltou a circular, como é costume nos finais de ano), para ganharmos “um Ano Novo/ que mereça este nome” teremos “de merecê-lo”, “de fazê-lo novo”. “Eu sei que não é fácil”, escreveu o poeta brasileiro, “mas tente, experimente, consciente./ É dentro de você que o Ano Novo/ cochila e espera desde sempre.” Engolir 12 passas e formular desejos, no silêncio do pensamento ou por escrito, é simpático mas não chega. Falta-nos o resto. Como, para ir de uma estação a outra, nos faz falta o transporte.

Por falar em estações: uma omissão involuntária na crónica da semana passada suscitou um reparo de um leitor atento. Um filme aqui citado a propósito de más legendas, Estación Termini (título espanhol em edição espanhola), tem como título original Stazione Termini (estação ferroviária de Roma que ganhou esse título pela proximidade das termas) e, realizado por Vittorio De Sica, em 1953, correu mundo com títulos diversos. Na maioria dos casos, as traduções seguiram o original, concedendo à estação ferroviária italiana o devido protagonismo. Stazione Termini (Itália) deu, assim, lugar a Station Terminus ou Terminus Station (versões em inglês para circulação internacional), Rom, Station Termini (Alemanha e Áustria), Estación Termini (Espanha), Gare Terminus ou Station Terminus (França), Sadguri Termini (Geórgia), Termini Pályaudvar (Hungria), Stanica Termini (Jugoslávia, em sérvio) ou Estação Terminus (Portugal). Noutros países, porém, o título escolhido afastou-se do original para se centrar na mulher (seguindo o título americano), nos amantes ou no encontro: Indiscretion of an American Wife (EUA), Indiscretion (Inglaterra), Indiscreción de una Esposa (Chile), Amants d’un Jour (Bélgica, em francês) ou Med Natekspres Rom-Paris (Dinamarca). Só num caso os tradutores se atreveram a expressar juízos de valor no título. Juízos condenatórios, claro: Quando a Mulher Erra, assim se chamou o filme no Brasil.

Um ano é também uma estação no tempo. Neste que passou, por entre alegrias (escassas) e tristezas (em maior número) que foram marcando as nossas vidas em 2013, houve um acontecimento que nos feriu particularmente, pela proximidade: a morte da Maria Antónia Ascensão (a Mitó), do marido (João Carlos) e da filha (Beatriz) num inimaginável e brutal acidente de automóvel. As notícias vulgarizaram-no, primeiro, antes de sabermos o nome das vítimas. E sentirmos o choque dessa perda. A Mitó, que acompanhou o PÚBLICO desde a fundação, era um dos membros eternos desta “família” que, perto ou longe, voluntária ou involuntariamente separada, nunca se desfaz. Nem na morte. No funeral, onde compareceu uma multidão, só em dois momentos a chuva caiu: na saída dos corpos da igreja do Seixal e à entrada do cortejo no cemitério. Os crentes terão visto nisso um sinal. Mas os outros não terão estranhado que, ali, também o céu deixasse cair as suas lágrimas. A lavar as nossas.

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