Censura na Universidade?

É saudável que um professor (como qualquer cidadão) tenha as suas posições políticas, sociais, “de costumes”, mas o que jamais pode fazer é impô-las aos estudantes.

As recentes notícias sobre os conteúdos programáticos vertidos por um colega também de Direito Penal nas unidades curriculares de que é regente numa Faculdade de Direito pública são preocupantes a vários níveis. O politicamente correcto e a grande consideração e respeito académicos que nutro pela instituição em causa e por vários dos professores da minha área que lá trabalham ou trabalharam – trago à lembrança a memória de dois brilhantes académicos e dois seres humanos de excepção: Augusto Silva Dias e João Curado Neves – talvez aconselhassem a que me calasse. Pois é exactamente por estarem em causa valores essenciais do ensino superior e do Estado de Direito que entendo o contrário.

Não vou aqui reflectir sobre os temas dos programas, já largamente transcritos na comunicação social. O que importa sublinhar é que a sua mera enunciação – o que pressupõe uma dada mundivisão e uma expectável forma de leccionar os seus conteúdos – são contrários à Constituição e à lei ordinária vigentes. O ECDU (Estatuto da Carreira Docente Universitária) e, antes dele, a CRP, garantem a liberdade de aprender e de ensinar. Asseguram que, dentro da legalidade constituída, nenhum docente, neste caso, possa ser constrangido a dirigir o seu ensino em conformidade com certas pautas valorativas. Só assim há academia, entendida como espaço de liberdade e de confronto de posições.

O art. 4.º, al. a), do ECDU impõe aos docentes universitários, de entre outras, a função de “[r]ealizar   actividades   de   investigação   científica,   de   criação   cultural   ou de desenvolvimento tecnológico” (note-se que não têm funções propagandísticas, de apostolado ou de proselitismo). Quanto aos seus deveres, bastará relembrar o art. 63.º, als. a), b), d) e h), do mesmo diploma, bem como o art. 64.º, o qual dita que “[o] pessoal docente goza da liberdade de orientação e de opinião científica na leccionação das matérias ensinadas, no contexto dos programas resultantes da coordenação (…)” – a opinião é “científica”, note-se. O RJIES assegura a autonomia científica e pedagógica das Universidades, ponto é que em conformidade com a Lei, o que leva ainda a considerar os Estatutos da Universidade e da Faculdade e a regulamentação específica do ciclo de estudos.

Como sucede com todos os direitos, este também não é absoluto. Naturalmente que é saudável que um professor (como qualquer cidadão) tenha as suas posições políticas, sociais, “de costumes”, mas o que jamais pode fazer é impô-las aos estudantes que, na prática, no processo de ensino-aprendizagem, sejamos sinceros, estão numa posição de relativa desprotecção, pois têm de obter avaliação positiva para “fazerem a cadeira” e terminarem o programa de estudos.

Um docente pode (e deve), nos temas mais fracturantes e sempre que dentro daquilo que terá de corresponder ao programa de qualquer disciplina de Penal ou qualquer outra, suscitar o debate, desde que o faça de modo plural, aberto a todas as sensibilidades, técnica e cientificamente fundamentado. Já não fazer do processo de ensino uma via unidireccional em que os estudantes devem defender a posição do docente, naquilo que comummente se designa por “opinião do docente” ou “posição da cadeira”. Isso não tem lugar no ensino universitário, sobretudo público, por natureza aberto a todas as concepções e laico.

Assim, do que é conhecido, ressalvado que importa conhecer como os conteúdos programáticos são desenvolvidos em aula, parece evidente que os mesmos transbordam os limites da liberdade de ensinar e da autonomia científica e pedagógica e reentram já numa campanha a favor de ideais que estão em absoluta falta de sintonia com a CRP, com os textos de Direito Internacional Público e Europeu e com a lei ordinária. Também é errado fazer em praça pública uma espécie de “análise de divã” do colega em causa, associando os conteúdos dos programas ao facto de, ao que agora se sabe, ter sido arguido em processo de violência doméstica. São dois níveis de análise distintos e já aqui várias vezes me rebelei contra as condenações no pelourinho da praça pública.

Dito isto, estou certo que, com a serenidade e objectividade que o caso impõe, a Faculdade em causa, através dos órgãos competentes, será capaz de dar resposta cabal a um caso que entristece qualquer académico e, em geral, qualquer amante da liberdade, da democracia e de valores básicos como a igualdade entre mulheres e homens ou o respeito por todas as orientações sexuais. Na academia há e deve haver espaço para todas as opiniões e são bem conhecidos docentes de direita ou de esquerda, o que só enriquece a Universidade. O que já não é admissível é que se transporte essa forma de olhar o mundo para os conteúdos programáticos a leccionar, de uma forma que é claramente imposta aos estudantes e não aberta ao espírito crítico.

Que jovens quados queremos formar? Informados, interventivos, dotados de espírito crítico, capacidade reflexiva e felizes. Pelo que se conhece, nenhum destes objectivos parece ser alcançado com contributos como este.  E tal é ainda mais grave por se tratar de uma Faculdade de Direito pública – e podia acontecer em qualquer uma, em Portugal ou no estrangeiro –, onde o pluralismo deve sempre imperar e onde se aí se não cumpre a Constituição e os mais basilares princípios gerais do ordenamento jurídico, então não sei onde tal se fará.

Uma nota final positiva: a comunicação social e a sociedade civil discutem o tema e as temáticas dos programas, os órgãos competentes estão a analisar o processo com a competência e objectividade que se lhes reconhece, todos ouvindo e cumprindo o contraditório, a associação de estudantes manifestou-se e esta é uma oportunidade de reflexão para os professores de todos os níveis de ensino sobre o seu indeclinável e relevantíssimo papel na construção de uma sociedade mais informada, justa, decente e fraterna.

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