Há armas que dão muito jeito

Naquele dia levantou-se cedo. Ainda tinha a cabeça cheia das discussões da véspera, das promessas da antevéspera, dos gritos e remoques da semana inteira. Nada lhe valera, a não ser a lembrança da primeira vez que votara com gosto, há umas boas quatro décadas. Foi uma confusão de siglas, de bandeiras, de exigências e gritos, mas a embriaguez da novidade dissolveu tudo isso num simulacro de brincadeira infantil com um objectivo muito sério: pela primeira vez podia escolher. Melhor dizendo: podia escolher da lista que lhe davam, era só pôr uma cruz no quadradinho e esperar, assim como quem liga um forno com carne crua lá dentro e espera depois encontrar, passado o tempo sacramental, um belo assado. E isso que importava? Importava era a alegria do voto, as filas, as discussões por certezas absolutas que ninguém tinha mas que todos exibiam sem o mínimo pudor. 

Durou pouco, a excitação. Nas eleições seguintes já a alegria se misturava à desconfiança e a algum ódio. Nada com que não fosse possível lidar, mesmo que no fio de uma desconhecida mas afiada navalha. Até que tudo se normalizou e, fora algumas surpresas de ocasião, se instalou o tédio. E a cada nova eleição o desfile das promessas, dos discursos, dos sorrisos, dos abraços de ocasião, das bandeirinhas e sacos de plásticos, esferográficas e bonés, quando os havia. Alguma coisa para enfeitar o vazio que o eleitor sempre sente quando vota num sentido e descobre, afinal sem nenhuma surpresa, que as promessas duram pouco, apenas o tempo de uma campanha. Estas lembranças vieram-lhe à mistura com outras, mais recentes, de uma releitura que o divertiu: numa das Farpas de 1871, Eça descrevia as eleições da época como a “grande ocupação do mês”, onde o governo de então (uma monarquia constitucional, mas podia bem ser qualquer outro) nomeava os seus deputados, fazendo-os depois eleger não por decreto mas, explicava, “por meio de votos, os quais são tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixa de pau, que se chamam romanticamente urnas”. A urna, escrevia Eça, “afecta várias formas, segundo as freguesias: há urnas do feitio de caixas de açúcar, do feitio de vasilhas, do feito de chávenas, etc”. O que, para não enganar ninguém, obrigaria a dizer, em lugar do habitual “cidadãos, às urnas!”, e consoante as freguesias, “cidadãos, ao caixote!” ou “cidadãos, à vasilha!” O pior era que os candidatos eram escolhidos, não pela competência mas pela fidelidade canina aos seus chefes. Pelo que Eça, já menos jocoso e mais sério, apelava à necessidade de “uma liga de todos os homens sérios contra o triunfo progressivo desta corrupção”. Isto em 1871…

Tentou lembrar-se da gritaria da campanha. Das trocas de acusações, das poses ridículas, do desaforo de afirmações sem o mínimo cálculo ou fundamento. Siglas havia-as ainda muitas, mas tinham perdido o infantil maravilhamento de há quatro décadas. Uns prometiam o que sabiam que não iam cumprir, outros cumpririam depois o que jamais sonhariam prometer. Sim, havia liberdade de escolha, nem por um momento ele disso duvidava. Mas, como nos restaurantes de menu empobrecido, a escolha não era substancialmente variada. Talvez nos nomes, nas caras, na cor das bandeiras ou camisolas, mas muito menos na substância. Além disso, havia Bruxelas, a das couves pequenas, e a União Europeia, a do Parlamento grande. Onde cabia, aqui, a sua escolha? A sua ideia? As suas dúvidas, quase todas por responder? Pensou em tudo o que tinha visto e ouvido nesses dias e tomou uma resolução. 

Valia-lhe, apesar de tudo, a arma que mantinha guardada. Meteu-a no bolso e saiu de casa, resoluto. Foi dando os bons-dias, sem abrandar o passo, e dirigiu-se à fila onde uma dúzia de pessoas esperavam pela sua vez. Esperou. Quando lhe disseram para avançar, avançou. E quando lhe pediram nome e número, puxou da arma e… leu o número. Estava certo, era o seu número de eleitor. Preencheu o papelinho, meteu-o na urna e saiu. Sem o seu voto, a Europa era só dos outros. E isso nem pensar. Olhou o cartão: há armas que dão muito jeito. 

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