Não deixem cair a reforma do SNS!

Nunca se leva nada até ao fim, optando-se pela solução radical que é recomeçar, sem sequer se perceber o que funcionou (ou não) nas reformas em curso. Qual Sísifo.

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“Coisa boa não acontece”. Deve ter sido esse o pensamento de E. quando o médico de família, face às queixas de perda acentuada de peso, lhe comunicou que iria enviar para o hospital central da área pedido urgente de uma consulta de oncologia e lhe prescreveu uma TAC e uma biópsia. Fez os exames no hospital. Na semana seguinte, na consulta, o médico informou-a de que não poderia emitir opinião sobre a sua situação clínica, pois os resultados dos exames não estavam no sistema de informação. Marcou novo encontro para a semana seguinte, que teve igual desfecho. Os resultados ainda não estavam disponíveis. Desta vez, a consulta foi adiada de um mês.

Seguindo a sugestão do médico, E. foi indagar, ao departamento onde fizera os exames, o porquê da não disponibilização dos respetivos resultados. Depois dos habituais “não é connosco”, “não é aqui”, “não sabemos”, lá obteve a explicação que procurava, pura e simples: não tinha havido ainda oportunidade para fazer o relatório médico dos exames, pois havia pessoal doente, outro de férias, outro … E. retornou a casa exausta, física e emocionalmente. Continua a perder peso, enquanto aguarda que chegue o dia da referida consulta.

É factual que o SNS tem observado, ao longo dos anos, acelerada e significativa degradação, com graves consequências para os cidadãos que dele necessitam. A causa varia, consoante os analistas: para uns, é a falta de médicos e a incapacidade do Serviço para os contratar; para outros, é a escassez de recursos financeiros; para outros … Talvez não exista uma única causa, mas várias, onde sobressairá a (fraca) qualidade de gestão do SNS.

Para além da otimização do ato médico, consubstanciado nos exames e na consulta, essa gestão tem de olhar o doente como pessoa que existe para além do problema de saúde que num dado momento o afeta. O caso de E. é mais uma vez paradigmático. Com os seus 77 anos, vive nos arredores da grande cidade e perde uma manhã ou uma tarde da sua jorna de trabalho doméstico sempre que tem de se deslocar ao hospital. Pior estarão os seus concidadãos que vivem no Portugal profundo, a centenas de quilómetros da unidade hospitalar, e gastam um dia completo sempre que têm de se deslocar para uma consulta ou exame, sem contar com o impacto avassalador que o custo de transporte tem em orçamentos de sobrevivência.

Num tempo em que quase tudo está informatizado, em que o sistema de informação poderia com facilidade disparar um alerta para, avisando o doente, remarcar a consulta sempre que as condições para que esta pudesse ter lugar não estivessem reunidas, é difícil aceitar que tal procedimento não seja uma realidade. Aproveitava ao doente, beneficiava o SNS como um todo, porque a consulta que não pudesse ser efetivada pela falta dos resultados, ou similar, poderia ser alocada a doente que estivesse em condições de dela poder usufruir. A ausência destas pequenas “atenções” não é explicada pela falta de meios financeiros ou unicamente pela falta de médicos. Parece ser, sobretudo, devida à ausência de adequada gestão das unidades de saúde, do SNS como um todo.

Está em curso uma reforma do SNS. Ou estava. Não se sabe. O que se conhece é que a respetiva Direção Executiva pediu a demissão e a mesma foi aceite pela ministra da tutela. Memórias passadas levam a que se tema o pior quanto à continuação dessa reforma. O partido atualmente com responsabilidades governativas nunca tinha olhado para ela com bons olhos. Provavelmente, vai aproveitar para avançar com a “sua” reforma. É a sina nacional. Nunca se leva nada até ao fim, optando-se pela solução radical que é recomeçar, sem sequer se perceber o que funcionou (ou não) nas reformas em curso. Qual Sísifo. Porém, se este, segundo a mitologia, foi castigado pelos deuses a recomeçar eternamente a mesma (nunca completada) tarefa, o povo português não sofreu, que se conheça, castigo divino que o obrigue a tal suplício.

Cinquenta anos passados sobre a Revolução de Abril, cinquenta anos de democracia, não foram suficientes para eliminar “ditaduras” internas ao Estado, que sobressaem de modo particular em tempos de maiorias parlamentares absolutas. Reformas de natureza estrutural, com a do SNS, deveriam, sem exceção, ter por base consensos alargados entre as principais forças políticas, para poderem ser concretizadas independentemente do partido com responsabilidades governativas a cada momento. Não é o que tende a acontecer. O partido A tem a maioria, impõe a sua reforma; o partido B ascende ao poder, arrasa o que estava feito e faz a sua própria reforma. Com custos, imensos, para o país, para cada cidadão, que são exponenciados com a politização dos cargos dirigentes, frequentemente preenchidos por militantes a quem é necessário arranjar uma colocação, não por quem é mais qualificado para a função. Não é o caso do Prof. Fernando Araújo, que agora se demitiu do cargo de diretor-executivo do SNS, consensualmente reconhecido pelas suas capacidades de gestão na área da saúde.

O recomeçar contínuo de cada reforma até pode ser engraçado, pois deve ser entusiasmante ter em mãos sempre algo novo. Ironia à parte, espera-se que a reforma prossiga. No caso concreto do SNS, por cada dia de atraso, adicionalmente aos recursos financeiros desperdiçados, há um custo enorme para as E. deste país, por vezes pago com a própria vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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