Presunção de culpabilidade

Percorre a investigação criminal a ideia de que as decisões dos agentes políticos não são, por regra, motivadas pelo interesse público. Isso é um preconceito tão insuportável quanto perigoso.

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Esta quarta-feira, foi público o acórdão do Tribunal da Relação sobre as medidas de coação no processo Operação Influencer. Foi a segunda instância judiciária a pronunciar-se de modo arrasador acerca da robustez dos indícios alegados pelo Ministério Público. E isto já nos tem de deixar inquietos. Porque todos sabemos que foi a avaliação da relevância criminal dos indícios que conduziu às medidas de coação determinadas e à queda do Governo então em funções.

Naturalmente que este não é ainda o momento para avaliar a existência ou não de factualidade criminal – isso apenas se verá se/quando houver acusação e subsequentes fases processuais –, mas estamos certamente em altura de avaliar a força dos indícios da prática de crime. Que é o que foi avaliado pela Relação. Porque foi precisamente a valoração jurídico-criminal que o MP fez desses indícios que permitiu: a detenção preventiva de vários cidadãos durante dias (sendo um, o autarca de Sines, logo libertado com a admissão da inexistência de quaisquer indícios face a ele); a demissão do então ministro das Infraestruturas; a apresentação do pedido de demissão do primeiro-ministro, fazendo cair um governo com mandato até 2026.

A primeira nota sobre a qual refletir é a das consequências destes atos. Para a comunidade elas são bastante visíveis: interrupção de um mandato governativo com a consequente marcação de um novo ato eleitoral; desprestígio internacional de Portugal ao ver o seu primeiro-ministro a fazer manchetes pelo mundo relatando a queda do Governo por alegado envolvimento em processos de corrupção; eventuais dificuldades de calendário na execução dos compromissos internacionais, com destaque para o PRR, entre muitas outras.

Mas se houve estas consequências para o país, que consequências houve para os que se possam considerar responsáveis por esta sucessão de eventos? Nenhum de nós está livre de cometer erros, todos errámos nas nossas vidas pessoais e profissionais. Mas somos responsáveis pelos nossos erros. Eles pesam sobre nós, têm consequências, pagámos o seu preço. É assim na vida das pessoas normais.

O princípio da irresponsabilidade decisória que vigora no sistema de Justiça pode caucionar a leviandade na atuação. A ausência de responsabilização provoca alheamento dos impactos concretos que a atuação especulativa da investigação criminal possa ter em cidadãos (o que só por si já é grave) ou, pior ainda, no curso do país e no regular funcionamento das instituições. E isto não pode ser tolerado em silêncio por quem se considere democrata.

É evidente que esta atuação imprecisa e pouco responsável não classifica todo o MP. Isso seria injusto e igualmente ligeiro. Mas um Estado de direito que se respeita a si próprio não pode permitir que passe incólume ou sem qualquer consequência uma decisão cuja avaliação de indícios criminais provoca a queda de um governo eleito pelos cidadãos, para depois se concluir algo como “desculpem, se calhar não vi bem” e a vida segue... É evidente que isto não pode ser.

Preocupa-me acrescidamente aquilo com que intitulei este escrito: a presunção de culpabilidade. Porque, com toda a franqueza, penso que percorre a investigação criminal a ideia de que as decisões dos agentes políticos não são, por regra, motivadas pelo interesse público. E isso é um preconceito tão insuportável quanto perigoso. Combustível para os populismos, para a deterioração da imagem da classe política e para o consequente desprestígio das instituições.

Investigue-se e condene-se sem hesitação todos os que usem o bem público em benefício pessoal. Mas façamo-lo despidos de preconceitos, que tolherão a isenção de que um magistrado tem o dever de estar investido. Porque se é verdade que o princípio da separação de poderes deve salvaguardar que não exista imiscuição da Política na Justiça, o mesmo princípio tem de assegurar a inexistência de imiscuição da Justiça na Política. E se houve imiscuição, ainda que assente em incompetência, ligeireza ou falta de consciência da latitude dos atos, é forçoso que existam consequências. É o respeito pelas instituições e seu regular funcionamento que o exige.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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