Lisboa, a cidade prometida

A experiência democrática na política local portuguesa, pelo menos em Lisboa, é muito decepcionante.

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A série Shitt's Creek, da HBO, conta-nos a história de uma família rica que, por uma série de infortúnios, acaba a viver neste lugarejo da "small town America". A um dado momento da série, uma das protagonistas, Moira Rose, é eleita vereadora e assistimos à sua primeira participação num "town hall". Vemo-la muito voluntariosa a querer resolver os problemas das pessoas, mesmo não havendo fundos, porque na sua visão a política é como o teatro, a sua antiga profissão: o que interessa é impressionar a “audiência”. Toda a gente a aplaude. Mas logo, o veterano "mayor", Roland Shitt, dá o dito por não dito e resume a posição da câmara relativamente às propostas dos cidadãos na típica frase: afinal, “vamos pensar nisso”.

O que é curioso sobre este episódio é que, como munícipe lisboeta, a minha experiência de participação democrática na política local é exactamente a inversa. O meu presidente da câmara, Carlos Moedas, é tal qual Moira Rose – promete para impressionar – e são os vereadores e técnicos camarários que depois me dizem “vamos pensar nisso”. No entanto, duvido que no caso lisboeta seja a falta de meios legais ou financeiros para concretizar as minhas propostas e dos meus vizinhos. Lisboa não é Shitt's Creek – acho eu. Resumo-vos a minha história.

Em 2022, decido participar numa reunião pública da câmara para expor os vários problemas da zona onde moro. Entrecampos, em Lisboa, é um dos pontos da cidade com mais mortes na estrada e maior poluição atmosférica e sonora, segundo os relatórios de várias organizações e da própria câmara, com níveis bem acima do permitido por lei. Peço soluções de acalmia de tráfego. Há unanimidade de todos os vereadores na reacção a esta intervenção. É preciso fazer qualquer coisa. O senhor presidente faz elogios e promete uma mudança. Mas depois o vereador da mobilidade e a respectiva direcção geral descomprometem-se.

Finais de 2023. Eu e os meus vizinhos recolhemos informação do tráfego com um sensor certificado e descobrimos dados chocantes: mais de 1000 carros a passar pela nossa avenida a mais de 70km/h. Lançamos uma petição. Colamos cartazes. Falamos com a comunidade local, com as juntas de freguesia, com a imprensa. Propomos medidas concretas para pelo menos reduzir os acidentes na estrada. Recolhemos mais de 400 assinaturas, bem acima do mínimo necessário (150 assinaturas). Vemos uma série de pedidos de intervenção nas reuniões públicas negados, sem esclarecimento dos critérios de selecção das mesmas, por isso vamos à Assembleia Municipal onde descubro que quase nenhum deputado aparece para ouvir os cidadãos e os que aparecem fazem ruído constante enquanto o cidadão intervém.

Finalmente, depois da petição entregue, conseguimos nova intervenção numa reunião pública. Ouvimos um pedido de desculpas do presidente pela inércia, e a promessa de uma acção no primeiro trimestre de 2024. Ainda nada foi feito e continua a haver acidentes, atropelamentos, ambulâncias presas no acesso ao Hospital Santa Maria e ruído constante. Não é um caso isolado. Também os mais de 1000 munícipes que pediram a pedonalização da Travessa dos Mastros ouviram o entusiasmo de Moedas e Anacoreta Correia com a sua proposta no início do ano, e até agora nada foi feito.

A experiência democrática na política local portuguesa, pelo menos em Lisboa, é muito decepcionante. Nem os altamente mediatizados momentos do Conselho de Cidadãos, que já vai na sua terceira edição, se parecem traduzir em medidas concretas. Onde estão, por exemplo, indícios de que Lisboa caminha para o modelo da cidade dos 15 minutos, um dos temas tratados em Conselho de Cidadãos? Ou no combate às alterações climáticas? As medidas tomadas parecem caminhar, aliás, no sentido do retrocesso, sobretudo quando pensamos no maior volume de automóveis na estrada, por comparação com o período pré-pandemia.

As cidades têm um papel fundamental para fazer face não só a problemas locais, como a segurança rodoviária e a mobilidade, mas também a problemas globais, como na acção climática, seja na adaptação ou mitigação. Aliás, os problemas estão interligados. É uma pena quando uma cidade não aproveita o potencial das suas bases democráticas, que têm sempre informação que escapa aos gabinetes. O que se verifica é que o diálogo entre os órgãos municipais e os munícipes se reduz a promessas e arte performativa. Ficamos todos a perder. Mas, claro, este executivo tem ainda um ano para provar que eu estou errado.

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