Um desabafo na primeira pessoa

A democracia portuguesa está sob ataque, sem quase ninguém aparentemente estar a conseguir defendê-la.

Desde as últimas eleições democráticas estou preocupada, perdoem-me o uso da primeira pessoa do singular. Penso que a democracia portuguesa está sob ataque, sem quase ninguém aparentemente estar a conseguir defendê-la. A maioria dos portugueses quererá defender o sistema democrático e o Estado Social, melhorando-o. Saberá claramente que o inimigo principal é o populismo nacionalista de extrema-direita discriminatória e adepto da desigualdade, xenófoba, racista, sexista e homofóbica, que infelizmente tem hegemonia em certos países onde até ganhou e ganha eleições.

Na Europa, há hoje muitos terrenos de combate, mas até às eleições de Outubro em Portugal e à semana passada parecia que estávamos livres desse inimigo principal da democracia. Nada de mais enganador, pois existem muitos perigos. Há uma tentativa de concentrar grande parte da comunicação social e dos canais televisivos para manipular a opinião pública num sentido não democrático. Veja-se a planificada compra da TVI pela Cofina.

Na Assembleia da República, embora minoritária, há uma ofensiva da direita extrema e da extrema-direita que abomina o 25 de Abril de 1974, para reescrever a nossa história recente e impor uma determinada memória em torno da data de 25 de Novembro de 1975. Há quatro anos, o general Ramalho Eanes, de forma sensata, lembrou que momentos históricos fracturantes “não se comemoram, recordam-se". Eu acrescentaria, e investigam-se, fazendo a sua história.

Mas o mais preocupante, quanto a mim, foi o que aconteceu na última quinta-feira, 21 de Novembro de 2019, tristíssimo dia para a nossa democracia, quando reivindicações laborais e salariais justas de elementos da polícia e da guarda foram capturados por um movimento e um “partido” de extrema-direita. Todos os democratas têm um papel a cumprir, seja na Assembleia da República, no Governo e no Estado, seja no jornalismo que ainda subsiste e na opinião pública, na qual me incluo.

Da Assembleia da República e, em particular, dos deputados de esquerda e de direita que gostam da democracia, espero que percebam bem o momento actual e qual o alvo principal que é imperativo combater. Do Governo, recentemente saído e legitimado eleitoralmente, espero que oiça as justas reivindicações e aspirações dos trabalhadores e dos defensores do Estado Social, escolhendo criteriosamente onde gastar o dinheiro, sem demagogia nem cedência a interesses particulares. De todas as instituições do Estado, da Presidência da República à Justiça, desejo que actuem de forma rápida e justa, contra a corrupção mas não só, sem também serem capturados por interesses corporativos.

Dos sindicatos, espero que continuem a cumprir o seu papel defendendo todos os trabalhadores, sem que estes sejam capturados pelo populismo e por movimentos anónimos inorgânicos. Da comunicação social – e, insisto, do jornalismo sem aspas –, espero que, embora minoritário, esteja à altura de defender a democracia, da forma como o fizeram, entre outros, o director do DN, José Ferreira Fernandes, e a jornalista do PÚBLICO Bárbara Reis.

O primeiro lembrou “Felisberto Silva, de 25 anos, negro e agente da PSP, morto em 2002, em serviço, às portas do seu bairro natal, Cova da Moura”, com o qual, na “manif desta semana, outros polícias como que gozaram”, ao fazerem o “gesto do Movimento Zero” (White Power, Supremacia branca). Bárbara Reis, por seu lado, fez um excelente trabalho de investigação e de fact-checking, ao confrontar as tiradas populistas, insultuosas e enganadoras de A. Ventura com os factos, mostrando como, para este, é “mais eficaz criar alarme e confusão” e vender “medo e polícias” em vez de “sabonetes”

E da opinião pública na qual me integro, juntamente com todos os portugueses e todas as portuguesas, espero que não caia na tentação de se converter numa “maioria silenciosa” de esquerda, agora que esta está aparentemente e enganadoramente hegemónica eleitoralmente. Cada um de nós, no nosso local profissional e social, tem uma palavra a dizer.

Enquanto historiadora, lembro o que se passou no terrível e sangrento século XX europeu, no qual floresceram regimes ditatoriais fascistas e totalitários, nacionalistas e racistas, guerras civis e expansionistas. Um século de confronto de ideologias em nome das quais foram assassinados milhares de seres humanos, quer no Holocausto (ou na Shoá), quer no Gulag.

A historiografia do nazismo e do fascismo mostra como foi fácil e rápida a substituição de regimes democráticos por ditaduras. Revela como quem detinha o monopólio das armas e da violência (legítima) – as forças militares, policiais e paramilitares – tanto serve a democracia como a ditadura, numa linha marcada pela continuidade. Para só falar, por exemplo, da Gestapo e das outras polícias nazis, recorde-se que muitos dos seus elementos e comandos já vinham dos organismos policiais e de segurança da República de Weimar. Hitler, que nunca se preocupou em fundar o seu regime através de uma nova Constituição, manteve a de Weimar, bem como alguma da sua legislação. Os homossexuais na Alemanha e Áustria foram perseguidos através do Código Penal já existente antes da subida de Hitler ao poder.

Entre as transições para a democracia dos anos 70 do século XX na Europa do Sul, para só falar nestas, a portuguesa, iniciada em 25 de Abril de 1974, por ruptura (e não através de negociações como foram os casos de Espanha e do Brasil), é talvez dos casos mais exemplares. No dia e na sequência do golpe de Estado militar, por pressão popular e das oposições à ditadura, foram extintas as instituições do antigo regime, a principal das quais foi a polícia política (PIDE/DGS).

As outras polícias que, durante a Ditadura de Salazar e Caetano, colaboravam com esta na repressão política e laboral – PSP, GNR, PJ, GF – mantiveram-se e não actuaram durante um tempo, adoptando um perfil muito baixo, receosas de serem conotadas com o antigo regime. Depois, houve um longo processo de democratização das forças policiais portuguesas. No entanto, hoje, acompanhando o “sinal dos tempos”, sabe-se que têm sido infiltradas pela extrema-direita.

Repito que cabe a nós todos não permitir que isso aconteça, nem que seja pela palavra, que pode ser uma arma, tudo dependendo “da bala e da pontaria” (José Mário Branco).

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