O juiz dos poderosos

Os adversários acusam-no de exacerbar os seus poderes, os amigos gabam-lhe a rectidão. Retrato do filho de um carteiro de Mação e de uma operária e que nas horas vagas chega a cantar rap entre os amigos.

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Carlos Alexandre Rui Gaudêncio

Sentado no restaurante vazio em Mação, que ainda é cedo para chegar a clientela do jantar, Henrique Matos quase não consegue despregar os olhos do ecrã da televisão. “Estes gajos têm de ir todos presos”, rosna em voz baixa, ao ver passar em directo as buscas ao Banco Espírito Santo.

Hoje já não há-de ver o velho amigo dos bancos de escola: entre Lisboa, onde Carlos Alexandre acompanha as buscas, e a vila que viu o juiz nascer, ainda é mais de uma hora de caminho no BMW do juiz. Nem a morte de um primo direito, que foi esta tarde a enterrar, conseguiu trazê-lo à terra, por muito apego que lhe tenha o filho do “Zé Carteiro”, nas bocas do mundo desde que atirou para a prisão José Sócrates.

Avesso a dar a cara e a explicar as suas decisões, mesmo as mais polémicas, o magistrado mal se vislumbra na reportagem televisiva. Saiu da sede do banco por uma porta lateral. O proprietário do restaurante de Mação bem tenta descortiná-lo, sem sucesso. “Enquanto não fizer o trabalho dele, não sai de lá. Nem deve ter almoçado”, acaba por dizer, à laia de consolação, antes de ver passar nova reportagem, desta vez com a porteira de um dos prédios de luxo de Paris onde habitou o ex-primeiro-ministro.

Já escureceu e as ruas ficaram desertas. Os escassos cafés de Mação ainda de porta aberta estão povoados por idosos. Todos conhecem Carlos, ou não viesse ele aqui passar pelo menos um fim-de-semana por mês, cuidar dos terrenos e ver crescer a moradia que está a levantar ao lado da casa que era dos pais, uma vivendazita de dois pisos que ainda mal passou dos alicerces e só deve estar terminada lá para 2016. “Sabe quem abriu os caboucos à mão?”, pergunta, em tom de desafio, um dos operários da obra. “Ele andou aí com a gente a trabalhar, a limpar a lixeirada do entulho.”

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No televisor de um restaurante em Mação, vila onde nasceu o juiz Carlos Alexandre, assiste-se em directo às buscas ao Banco Espírito Santo Daniel rocha

Para muitos, é isso mesmo que está a fazer Carlos Alexandre: a limpar um país sujo. “Eram precisos pelo menos mais dez como ele”, ouve-se de cada vez que se menciona na vila o nome do juiz. “Mas está sozinho”, lamenta Fernando Courela, um amigo de longa data. “Achei-o muito cansado da última vez que cá esteve em Mação. É muita bagagem para um homem só — e ele atira-se muito para fora de pé”, observa o construtor civil reformado. Teme que o companheiro de petiscadas “não aguente a pressão da classe política”.

Aos 53 anos, Carlos Alexandre fez o que ninguém antes dele tinha feito em Portugal. No Verão, exigiu três milhões ao banqueiro Ricardo Salgado para o manter em liberdade, depois de um longo interrogatório em tribunal, por causa do caso Monte Branco. Agora, foi o antigo líder do PS, partido de que o juiz até foi deputado municipal por Mação nos anos 1980, e nada garante que as coisas fiquem por aqui. Também se lhe deve aquela que terá sido a maior caução de sempre imposta a uma só pessoa em Portugal: cinco milhões de euros, aplicados ao milionário Ricardo Oliveira, implicado no caso BPN.

Tem-lhe cabido lidar com os maiores suspeitos do crime económico do país. O mistério da sua aparição permanente nos processos mais quentes — vistos gold, Face Oculta, submarinos, Operação Furacão, Freeport e Portucale, entre tantos outros — tem uma explicação, ligada à organização do panorama judiciário português: é em Lisboa que se situa o Departamento Central de Investigação e Acção Penal, que investiga os casos de criminalidade complexa, praticada não apenas num, mas em vários pontos do país. Os frutos do trabalho deste departamento são encaminhados para um tribunal especializado neste tipo de processos, conhecido na gíria judiciária como “Ticão”. É no Tribunal Central de Instrução Criminal, instalado no Campus da Justiça, no Parque das Nações, que Carlos Alexandre exerce funções. Até há pouco tempo era rei e senhor do Ticão, mas desde Setembro que passou a repartir trabalho com um juiz auxiliar.

Neste tribunal não proferem sentenças: preparam-se os processos que hão-de um dia, e só se for caso disso, ver a cor do julgamento. A Carlos Alexandre cabe ainda decidir se os suspeitos que o Ministério Público lhe apresenta ficam à espera de ser julgados do lado de fora ou do lado de dentro das grades, consoante o perigo de se porem a milhas da justiça, de perturbarem as investigações ou de reincidirem no crime. Um poder que parece dar-lhe um gozo imenso, segundo um advogado que prefere manter o anonimato: “Pela-se por apanhar a malta da classe dirigente num crime. É esse meio social que gosta de perseguir: quer encontrar os podres da classe dominante.”

Os prolongados interrogatórios que leva a cabo para chegar a uma conclusão têm as suas particularidades. “Espreme as pessoas”, relata um amigo que conhece de perto o seu modus operandi. “Para ir do ponto A ao ponto B, é capaz de fazer um desvio enorme”, por forma a trocar as voltas a quem tenta escapar às malhas da justiça. “Noventa e nove por cento dos arguidos não usam o direito que têm a remeter-se ao silêncio”, critica outro advogado que acompanha a actuação do magistrado há década e meia. Porquê? “Temem sair dali em prisão preventiva.” O mau feitio é um apanágio do magistrado em muitas ocasiões, que alia a um humor corrosivo, como admite o mesmo amigo. Já todos sabem que o caldo está entornado quando interpela os suspeitos com um: “Ó cidadão…” Os apartes que lança durante os interrogatórios fazem parte do mito que ajudou a criar em torno da sua personagem. “São interrogatórios muito atípicos. Fala consigo próprio, em voz alta. Numa das últimas vezes, dizia à pessoa que estava a interrogar: ‘Continue, continue que eu gosto de ouvir histórias’”, indigna-se o advogado. Outras vezes é ele próprio quem conta em tribunal histórias de Mação, que deixou quando foi estudar para Abrantes, depois de ter feito dois anos pela telescola. Para mostrar como percebe que estão a tentar enganá-lo, pode contar como a vila tentou resistir às invasões francesas fingindo que tinha muitos homens, pondo sempre os mesmos às voltas em cima de um monte como se de um grande contingente se tratasse. Muitos dos interrogatórios terminam com uma frase enigmática: “Menina, formalidades de embarque.” A funcionária judicial já sabe do que se trata: tem de tratar da papelada para o arguido dar entrada na cadeia.

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Entre os advogados com quem falámos, há um que lhe reconhece uma certa genialidade. Mas não se conforma. “Acha-se um paladino da justiça contra o mundo inteiro. Tem complexo de Robin Hood”, observa, acrescentando que, se tivesse de apostar, diria que o seu livro de cabeceira há-de ser Os Burgueses, de Francisco Louçã e João Teixeira Lopes — obra sobre o percurso de mil pessoas que ocupam os lugares de poder em Portugal e a sua relação com o empobrecimento do país.

“Carlos Alexandre tem um comportamento que fica bem a um procurador. Não a um juiz de instrução”, critica o mesmo causídico. É também essa a opinião do advogado João Medeiros, que no caso dos vistos dourados representa o antigo director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Manuel Jarmela Palos, de suspeitas de corrupção passiva, quando alega que a maneira de ser “voluntariosa” do juiz não se compagina com o papel equidistante que o Código de Processo Penal lhe atribui. É essa maneira de trabalhar obsessiva que faz com que chegue a conhecer melhor os casos do que os procuradores e inspectores da Judiciária que tiveram por missão investigá-los. “Gosta muito de ouvir escutas telefónicas”, recorda uma magistrada, igualmente crítica da sua forma de actuação: “Envolve-se muito nos casos. Seria um bom procurador.” “Dava um excelente director da Judiciária”, resume outro advogado.

Se de preguiça ninguém o pode acusar, nem de lhe terem conseguido encontrar rabos de palha, muitas das vezes que o desempenho de Carlos Alexandre vem à baila entra na berlinda a questão da separação de poderes. “E ele também investiga, embora não o deva fazer”, acusa a mesma magistrada.

Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, explica como funciona o sistema nas fases que antecedem o julgamento. Quando alguém é suspeito de algum crime, cabe ao Ministério Público liderar as investigações. É a chamada “fase de inquérito”, na qual os procuradores são coadjuvados pelas polícias. “Nesta fase, o juiz é o garante das liberdades do cidadão: cabe-lhe decidir se autoriza ou não buscas, escutas e outras diligências requeridas pelo Ministério Público”, restritivas desses direitos, liberdades e garantias, incluindo a aplicação de medidas de coacção como a prisão preventiva. Pode investigar? “Não, não pode ir para o terreno investigar por conta própria. Tem de avaliar os indícios que lhe são remetidos para tomar uma decisão”, responde Conceição Gomes. Também não é suposto fazê-lo na etapa seguinte do processo, a de instrução, uma espécie de pré-julgamento em que tem porém liberdade para ouvir testemunhas e mandar repetir ou promover diligências.

“Carlos Alexandre quer ser visto como uma pessoa que não tem medo dos fortes e poderosos”, resume o advogado Godinho de Matos. “O que o faz correr? Não é o dinheiro, mas o prestígio.” Ficará conhecido como o magistrado que teve a coragem de colocar um ex-primeiro-ministro na cadeia. Há quem o descreva como um bulldog: mergulha nos assuntos até ao fundo, quase nada lhe escapando.

Não foi sempre assim. Quando chegou à Polícia Judiciária Militar, há década e meia, deparou-se com uma guerra de generais, na qual se viu envolvido contra vontade. Chamado por um juiz seu amigo para ajudar a despachar dezenas de processos menores, havia de se incompatibilizar com o colega e de ficar com muitos casos bicudos entre mãos, relacionados com aquisições pouco claras de material bélico e de fardas. Só percebeu bem com quem estava a lidar quando lhe disseram que escusava de levar para ali os cartapácios das leis, porque a justiça militar se baseava apenas em três artigos: os amigos protegem-se, os inimigos combatem-se e a lei aplica-se aos indiferenciados. Em causa estavam milhões de euros gastos em alegados esquemas de corrupção, burlas e falsificações, como o episódio das fardas que nunca chegaram a ser vendidas para a Polónia pelas Oficinas Gerais do Estado e a aquisição de viaturas militares para as operações de paz em Timor. Em 2004, o juiz sentiu-se na obrigação de comunicar ao Conselho Superior da Magistratura a existência de pressões sobre quem estava a investigar estes casos, alegadamente surgidas após os investigadores terem efectuado diligências junto do chefe de gabinete do então ministro da Defesa, Paulo Portas. A Polícia Judiciária Militar retirou-lhe o carro, o motorista e o telemóvel.

Foi depois de tudo isto, em 2005, que surgiram as primeiras ameaças que o obrigaram a passar a andar com segurança pessoal da PSP — a pistola que apareceu pousada em cima da foto dos dois filhos, dentro da sua própria casa, no concelho de Oeiras, e o atropelamento da mulher nas imediações do emprego. Quando lhe entraram na residência para deixar a arma, não levaram o ouro que havia em casa, mas vasculharam papéis. Neste momento, está a ser equacionado um reforço da sua escolta, extensível à família mais chegada, depois de terem sido percepcionadas novas ameaças.

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Em Mação, Carlos Alexandre era conhecido em miúdo como Carlos "Lagarto". Fala pelos cotovelos. Escangalhamo-nos a rir com as coisas que conta", diz João Catarino, amigo e seu colega de escola daniel rocha

Vão longe os tempos das brincadeiras de índios e cowboys nas ruas quase sem carros de Mação e das escapadelas até aos riachos mais próximos no Verão. Filho mais novo de um carteiro e de uma operária fabril, chamavam-lhe Carlos “Lagarto” por o avô ser do Sardoal. Era tudo gente séria, recordam os habitantes da vila, mas a quem saiu o juiz neste seu feitio peculiar ninguém descortina. “Não é à mãe, nem ao pai. Nem aos avós”, assegura um conterrâneo. “Era tudo gente cordata”, refere outro habitante de Mação.

Se chegou a juiz, deve-o não apenas aos sacrifícios da família, mas ao empenho do professor primário Pomba Marques, a quem ainda hoje pede conselho. É ele que quer que lhe leve a cruz do caixão se algum dia lhe acontecer mal. Homem de fé ao ponto de andar com um terço no bolso, ri-se quando os amigos se mostram preocupados.

Numa entrevista em vídeo dada a um amigo seu, o socialista António Colaço, durante uma cerimónia religiosa na qual costuma participar na sua terra, conta que faz gosto em ir a Fátima. Apesar da vaidade que tem no seu trabalho, nunca permitiu entrevistas senão a este amigo. É noutra destas conversas, também publicada no blogue Ânimo, em 2011, que fala da “gritante carência de meios” na justiça, quer humanos quer ao nível dos instrumentos legislativos. E da vida “austera, regrada, disciplinada e pacata” que leva. “Sou um rural na cidade. Não sou propriamente uma pessoa que se deixe contaminar pelo deslumbramento das luzes da ribalta”, revela. Mesmo com o líder do seu partido encarcerado, Colaço continua a defender quem entregou a Sócrates o tal “cartão de embarque”.

“Face às preocupantes notícias que, em surdina, nos chegam e que poderão vir a configurar a materialização de um ‘golpe de Estado judicial’, só me resta exprimir ao meu querido amigo Carlos Alexandre que não tema, porque a verdade fala sempre mais alto do que o dinheiro”, escreve num dos seus mais recentes posts. Há quem tema o surgimento de reorganizações judiciárias feitas à medida, para afastar Carlos Alexandre do seu posto. Mas é tarde de mais, observa uma pessoa próxima do magistrado: depois de uma década de Ticão, o juiz conhece quase todos os segredos do regime. Tem demasiada gente debaixo de olho, “é um serviço de informações” ambulante. O ex-ministro do PS Augusto Santos Silva mostrou-se ciente disso mesmo quando declarou, já depois da prisão de Sócrates, que à justiça “não compete aperfeiçoar ou moralizar o regime político — mesmo que os agentes judiciais pensem que a classe política é demasiado opaca”.

No ano passado, Carlos Alexandre foi considerado a 48.ª pessoa mais poderosa da economia portuguesa pelo Jornal de Negócios, que destacava o facto de ter sido pela sua mão que tinham ido parar à prisão figuras como Duarte Lima e Isaltino Morais.

Ao autarca de Oeiras chegou a vê-lo de roupão, quando acompanhou as buscas ao seu apartamento numa madrugada de 2005. Eram sete da manhã e Isaltino devia ter-se deitado há pouco tempo, porque ainda eram visíveis os sinais da noitada. Quando finalmente leu o mandado de busca, o presidente da câmara não se terá contido: “Mas quem se atreveu a escrever isto de mim?!” No Verão de 2006, o juiz seria multado por fiscais camarários por causa de obras de pequena monta que efectuou na sua residência naquele município. Na sequência do embargo dos trabalhos, os serviços municipalizados anunciaram-lhe que lhe iriam cortar a água e a electricidade — o que acabou por nunca acontecer.

Isaltino não foi o primeiro maçon com quem o juiz se cruzou. O seu conterrâneo António Reis, nascido numa aldeia do concelho de Mação, deu-lhe muitas vezes boleia para casa num Citroën Dyane descapotável quando estudavam em Lisboa. Continuou seu amigo depois de este se tornar grão-mestre do Grande Oriente Lusitano.

Foram tempos difíceis os dos estudos superiores em Lisboa, uma oportunidade que os pais não tinham podido dar aos dois irmãos mais velhos. Morou num quarto alugado durante o curso inteiro. E o carteiro, que tinha arranjado uma motorizada para entregar a correspondência nas aldeias vizinhas, chegou a empenhar “as pernas” para fazer esticar o dinheiro — era assim, segundo um amigo da família, que “Zé Carteiro” se referia à moto.

A morte dos pais no final dos anos 1990 marcou-o. “Embora não pareça, é um homem de sentimentos”, nota o presidente da Câmara de Mação, Vasco Estrela. Ainda hoje, quando chega à sua terra, quem procura para ir petiscar e beber imperiais são os mesmos de sempre — quer tenham seguido estudos ou não tenham passado da cepa torta. “Não anda com a elite. Dá-se com os amigos, não despreza os que ficaram para trás”, confirma um professor reformado das suas relações, Carlos Diogo.

Sentado numa mesa do Café Central, a poucos metros da farmácia onde atende todos os dias ao balcão, Jaime Conde afasta muito as mãos das orelhas para descrever o intelecto do colega de infância: “A cabeça dele é deste tamanho!” Não é só em Mação que causa espanto a memória prodigiosa de Carlos Alexandre. De reconhecer nas escutas telefónicas a identidade de vozes que não ouvia há muito tempo. “Se alguém diz uma coisa e dez anos depois se contradiz, ele recorda-se”, relata um amigo que o conheceu em Vila Franca, em cujo tribunal esteve colocado vai para mais de duas décadas. Vindo de Felgueiras, primeiro sítio onde exerceu a magistratura no final dos anos 1980, já tinha passado pelos tribunais de Oeiras e Sintra e ainda não era o superjuiz de hoje, mas revelava traços de personalidade que se iriam acentuar. No julgamento de um choque entre comboios na Póvoa de Santa Iria ocorrido em 1986, que matou 17 pessoas e feriu outras 83 — um dos piores acidentes deste tipo em Portugal —, absolveu os tripulantes da CP que se sentavam no banco dos réus, maquinista e condutor de apoio, confrontando o conselho de gerência da transportadora, que fez testemunhar em tribunal, com deficiências no funcionamento da sinalização ferroviária.

“É muito perfeccionista no trabalho”, diz o amigo de Vila Franca. “E determinado”, acrescenta Francisco Rocha, um advogado que lidou com ele nesta cidade e que se lembra de ver o chão do tribunal polido como nunca quando Carlos Alexandre passou a dirigir este tribunal. “Até nesse assunto se metia.”

Carlos Alexandre acumula o trabalho no Ticão com turnos no Tribunal de Instrução Criminal, onde não é raro caírem proxenetas e pequenos traficantes, ao lado dos quais se chega a sentar para melhor os interrogar, como nos lembra um amigo. Tem também a seu cargo casos ligados à secção de instrução militar.

Quando o serviço deixa, fica com a tarde de sábado e o domingo livres. Como diz o mesmo amigo, o juiz já podia ter subido ao Tribunal da Relação. Mas não quis: não ia ganhar tanto, porque já não podia acumular salários. “Explica que como não é corrupto tem de trabalhar para arranjar dinheiro”, conta um familiar.

Depois de ter ajudado a reconstruir a habitação onde morou com os pais ao lado da que agora está a erguer, meteu-se a fazer o mesmo numas casas que a mulher herdou, no Alandroal, agora que um dos filhos, engenheiro químico de profissão, já ganha para si próprio. Ainda a morar com o juiz e a mãe, uma alentejana que Carlos Alexandre conheceu na repartição de finanças para onde foi trabalhar depois de se licenciar pela Faculdade de Direito de Lisboa, está um segundo filho. “É o pai chapado”, descreve o mesmo familiar. A frequentar o secundário, introduziu há algum tempo o progenitor no mundo do rap. Para quem convive com o juiz, o resultado dificilmente podia ter sido mais desconcertante: o magistrado passou a divertir-se a cantar-lhes em rap à mesa do café.

Fala pelos cotovelos. Escangalhamo-nos a rir com as coisas que conta”, diz o médico de terapias alternativas João Catarino. Quando a vida aperta, Carlos Alexandre recorre à sua medicina chinesa. Nessas alturas, “parece que carrega o mundo às costas”. Catarino era seu colega no único colégio que existia em Mação, o D. Pedro V, e quando chegaram os ventos revolucionários do 25 de Abril foi dos que encabeçaram um movimento para nacionalizar o estabelecimento de ensino privado, onde vigorava uma disciplina rigorosa. “Na fase inicial, Carlos Alexandre também participou no processo. Mais tarde veio dizer-me que ia deixar de participar tão activamente: temia que, por ser de uma família bastante humilde, isso pudesse comprometer-lhe a continuação dos estudos”, relembra o médico. A escola acabou por ser comprada pelo Estado ao proprietário por tuta e meia, com vantagem para o futuro juiz, que assim continuou a frequentá-la pagando menos do que até ali.

Os estudos sempre estiveram em primeiro lugar. “A diversão para ele era um aspecto secundário: primeiro estavam as obrigações. Não desfrutou da sua juventude da mesma forma que eu”, diz João Catarino. Chegava a chorar quando não conseguia ser o melhor da turma. Não lhe são conhecidas namoradas antes daquela que viria a tornar-se sua mulher.

As boas notas que foi tendo nas avaliações de que foi sendo alvo durante a sua carreira só têm sido ensombradas por um detalhe: ainda prefere escrever à mão. Conta um amigo que o juiz vira a ironia contra si próprio observando que um dia destes ainda têm de lhe antecipar a reforma por ser infoexcluído. 

Interpelado pelos que o rodeiam nos últimos dias sobre se não terá ido demasiado longe, repete invariavelmente o mesmo: “Tenho a consciência tranquila. Cumpri o meu papel. Fiz o que tinha de fazer.”

“Se tivesse de prender um dos filhos, havia de lhe custar muito, mas prendia-o”, diz um dos amigos mais chegados. Justiceiro? “Não. Não o move nenhuma ideia de vingança”, assegura. Não é propriamente isso que pensa Daniel Proença de Carvalho. Talvez por neste recente caso não ser o advogado de José Sócrates, como aconteceu tantas vezes no passado, não se coibiu de, depois da prisão do ex-primeiro-ministro, chamar a Carlos Alexandre “superjuiz dos tablóides”.

De baixa estatura, ainda consegue passar quase sempre despercebido em público. É singela a assinatura que deixa nos despachos: Alexandre, simplesmente. Quase ninguém lhe fica indiferente, a sua actuação tem despertado amores e ódios. Em Mação, há quem o compare à floresta que cerca a vila: “Nasceu nestes pedregais. Aqui é a terra dos pinheiros, das pessoas verticais. O prumo está aqui.”
 

 

 
 

 

 

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