António é uma estátua que já saltou do pedestal

Há quase três décadas que António Gomes dos Santos pinta a cara e o corpo de modo a parecer aos outros que é feito de pedra, de bronze, de ferro, de plástico. É esse o objectivo, criar a ilusão a quem passa de que não é humano. Depois, tem de ficar muito quieto durante horas, e silencioso. Para ser estátua não pode responder ao que vai ouvindo acerca de si.

Mas quis que lhe falassem por escrito. Dezenas de cadernos de capa dura que guardou registam os pensamentos de alguns dos que o vêm observando. Folhear as suas páginas é acompanhá-lo num percurso em que o homem-estátua passou de espécie rara que causava espanto porque “era o único” — “nunca tinha visto nada assim”, “vai trabalhar seu malandro” — para coisa banal. “Hoje ser homem-estátua é uma forma de arte.”

Para continuar a sê-lo teve de inovar, juntou à quietude “a levitação”. “Como é que te aguentas no ar? És maravilhoso.” “És a estátua mais interessante que eu já vi.” Foi o que lhe escreveram no último dos volumes.

António Gomes dos Santos diz-se “uma obra de arte” e, como tal, pode desencadear tantas leituras quantos os sujeitos que o observam. E se há coisa que lhe ensinaram os cadernos onde quem passa por ele pode escrever é que cada um vê nele o que quer. Uma Raquel escreve-lhe que ele lhe fez lembrar “alguém que já não está cá”. Um João preocupou-se com a sua saúde dermatológica — “O senhor usa muitos produtos para tirar a tinta, mas cuidado porque com tanta tinta a pele não respira.”

É possível descortinar naquele armazém de observações diferentes categorias, quem vê na sua quietude um acto político, filosófico, religioso — “Deus vai-te castigar.” “Deus é teu amigo.” “Estás a gozar com Deus.”

São anos e anos de comentários sem réplica. Aqui fica uma pequena amostra de diálogos que nunca aconteceram e outros que chegaram a acontecer. É que há alturas em que até um homem-estátua sai do pedestal.

“Imagino imensas coisas a seu respeito, como por exemplo, qual é a motivação que o levou a desempenhar este papel de estátua?”

É uma longa história. António tem 53 anos. Tudo começou num tempo em que o cabelo lhe começou a cair, aos tufos, em que ficou careca de um dia para o outro. Diagnosticaram-lhe alopecia nervosa, manifestação física de uma depressão profunda. Vomitava, chorava compulsivamente, dormia mal, não tinha fome, chegou aos 45kg. Era ele trabalhador administrativo nos Hospitais da Universidade de Coimbra e estudante do 3.º ano de Geologia na Universidade de Coimbra.

Mais para trás tinha ficado o que hoje se chamaria “trabalho infantil” mas que na altura era assim. Com uns 7 anos, para ter direito a jogar a bola, tinha primeiro de apanhar sete sacas de pinhas para a fogueira, de regar o milho e tratar do curral do gado. Os pais não lhe pediam, afinal, mais do que tinham sido as suas vidas. Ele foi o terceiro filho, o primeiro vivo, as duas irmãs morreram no útero da mãe e os pais endividaram-se para o fazer sobreviver, pagaram o luxo que era um táxi, quando o transporte da família era a mula Carriça, para levar a mãe grávida pelos caminhos de lama até Coimbra, para António ir nascer no hospital.

Nos primeiros tempos de estátua ouvia muito o tipo de deixas que lhe pareciam directamente saídas do salazarismo, a típica: “Vai trabalhar seu malandro.” Calou muito, mas havia vezes em que era demasiado. Houve alturas em que saiu do seu imobilismo para contar a trabalhadores chefes de família a sua história de vida, e a do pai, que continua a cortar madeira aos 79 anos.

No início, o que ele fazia era estranho mas até os pais, que nunca puderam estudar, se habituaram. E até já foi possível ouvir o pai dizer, com ar ufano, “eu sou pai do homem-estátua”. E, quando alguma actuação leva António perto da aldeia de Pisões (concelho de Alcobaça), ter a mãe, de 85 anos sentada num banquinho junto ao filho parado, uma tarde inteira, parados os dois, ele estátua, ela mãe do homem-estátua.

“Que foi que teus olhos viram?! São castanhos? Ou serão verdes?” — perguntou-lhe Cátia. São castanhos.

“Já te vi muitas vezes. Chego a imaginar-te como uma paisagem. Eu olho-te tantas vezes e tu provavelmente nunca reparaste em mim. Acabo por me sentir ridícula em olhar tanto tempo para ti sem receber um olhar em troca” — escreveu Ana.

Se há coisa que a quietude faz é ampliar tudo o que se passa à sua volta. É como se estar parado tanto tempo lhe colocasse no ângulo de visão, que nunca muda, uma gigante lupa que o faz percepcionar tudo de forma exagerada, e isso aplica-se ao que ouve e ao que vê. Ele repara nas pessoas, responde a Ana.

Lembra o dia em que uma cena que se estava a passar à sua frente o transtornou: era um pai a bater num filho criança de forma violenta, a usar com ele “uma linguagem pior que na Idade Média”. Não aguentou. “A estátua regressou à sua forma humana”, para repreender o pai violento, "se aquilo era coisa que se fizesse a uma criança".

É outro efeito da imobilidade, quando sai de estátua não é ele, António Gomes dos Santos, homem calmo que pratica ioga e meditação. “A minha saída da quietude é muito animal, é uma reacção felina, como um gato quando ataca”.

Um dia, “um homem de aspecto normal, de fato e gravata”, empurrou-o com muita força e ele saiu de estátua quase pronto a matá-lo. Tem que ter cuidado com esses momentos.

Há quem o queira testar, provocá-lo e à sua capacidade de inércia, com os seus cinco recordes do Guiness anunciados aos pés do seu pedestal. No último, de 2003, esteve quieto 20 horas, 11 minutos e 36 segundos. Já foi estátua em 64 países e é convidado para júri de festivais de homens-estátua.

Nos tempos em que o serviço militar ainda era obrigatório, um militar fardado rondou-o, a repetir sempre o mesmo, “havia de te ver lá na parada, a ver se aguentavas”. A frase repetida tantas vezes, o homem a pô-lo tonto. Chegou o momento em que pegou no militar pela cintura, com uma força que não era a dele, era a do tal animal, e colocou-o em cima do seu pedestal, invertendo posições — “Então agora vamos ver quanto tempo aguentas”, disse-lhe. O homem ficou branco, cor de cal, como se costuma dizer, e foi-se embora a pedir-lhe desculpas.

Também lhe perguntam coisas mais práticas. “Como é que conseguiu estar tanto tempo sem comer?” Nas maratonas recordistas de quietude come “tudo o que normalmente faz mal e ajuda à retenção de líquidos, muitos frutos gordos, pinhões, nozes”.

No seu quotidiano, em que costuma ser estátua quatro dias por semana, umas quatro horas por dia, António tem um ritual que repete há décadas. Chega à Rua Augusta, em Lisboa, umas boas duas horas antes de ser estátua e vai “morder o ambiente”, perceber que público terá à sua volta. Hoje sentiu que “há turismo calmo”, pensa que deve ter atracado um barco de cruzeiro de gente mais velha que tem tempo para andar pela baixa e o olhar. “Também há turismo stressado.”

Depois almoça muito calmamente, sempre no mesmo sítio. É um restaurante que agora se chama Cais das Colunas, mas foi tendo outros nomes, o que interessa são os donos. É como se fosse uma segunda casa, a juntar à que tem quando se posta no meio do cruzamento que é sempre o mesmo, Rua Augusta com Rua da Assunção.

Aquele restaurante e aquelas pessoas foram o seu refúgio ao longo dos anos. Ali sempre lhe guardaram o material quando estava a sempre a ser levado para a esquadra de polícia. Era todos os dias levado por acusações que variavam, dependia dos polícias que faziam a detenção. A mais comum era “ocupação ilegal da via pública”. Hoje paga pelo uso do cruzamento.

Nos cadernos há uma questão que é transversal ao longo dos anos: se o que faz é trabalho ou não. António entende-o como “uma revolta contra o trabalho”. Diz que aprendeu com o filósofo português Agostinho da Silva que trabalho veio do latim tripalium, nome de um instrumento de tortura constituído por três estacas de madeira afiadas e que era comum em tempos remotos na Europa. Originalmente, “trabalhar” significava “ser torturado”.

“As máquinas vieram para nos dar mais tempo de lazer mas escravizaram-nos o tempo”, diz, e isso nota-se mais nas cidades. O trabalho dele não funcionaria numa aldeia, o homem-estátua faz sentido na cidade, mas António Gomes dos Santos torna todos os dias a uma aldeia, “o meu Trás-os-Montes”, perto de Mafra a uns 20 quilómetros de Lisboa

É trabalho no sentido em que é das moedas que deixam à estátua que sai o seu pagamento para a segurança social. As moedas são o seu sustento, de acordo com objectivos de vida, que, diz, são modestos. “Viu como eu vivo.” A casa de António, onde mora com a namorada e assistente Susana Bento, é uma casa humilde com o tecto forrado a mapas, atafulhada de roupas e chapéus dos seus personagens pendurados no tecto e parede. Já foi 300 estátuas diferentes.

Depois, “o trabalho está associado ao movimento”. Faz confusão às pessoas o que ele faz, “uma coisa tão simples”, como é que se pode estar a trabalhar parado?

O que lhes pode dizer é que fica exausto naqueles dias, em que tem de reduzir a sua respiração a algo imperceptível, as estátuas não respiram, e com isso o seu batimento cardíaco desacelera até um estado de “latência”, como um urso que hiberna no meio da rua.

Há quem lhe reconheça esse esforço por escrito. “Tomara eu conseguir não me mexer durante 10 minutos.” “Já o tentei fazer e não o consegui mais que cinco minutos. Requer muita concentração e experiência.” “Brilhante auto-domínio e equilíbrio. Deus o conserve por muitos e bons anos. Para nosso deleite.” “Curti bué o teu auto-controlo, mano.”

“Eu sinceramente achei uma grande merda, uma coisa que todos conseguem fazer.” Há também que lhe deixe escrito insultos como esse e outros. “Olhe, odeio mimos e paralisados!!”. “Continue paradão, mas longe daqui por favor.” “Para mim que sou artista, chamo a isso ‘viver da ignorância dos outros’.”

E há os escritos dos que António diz que acertaram. Se pudesse, agradecia-lhes. É mesmo isso, Bruno: “Obrigada por trazer poesia para as ruas e talvez levar a que as pessoas parem no seu agitado dia a dia. Continue a parar o mundo.” “Obrigada por mostrar tanto equilíbrio num momento em que tanto é inquietude.” “Estar imóvel ou na quietude consciente, é abrir espaço para sentir o mundo de uma forma diferente, é abrir espaço em nós mesmos para nos descobrirmos.” “É importante parar como caminhar, parar também é viver.”

E depois há naquelas folhas inícios de conversa. “Só gostava de o conhecer sem ser uma estátua.” “Um dia destes, passo para falar contigo?” “Quero-te conhecer.” “Adoro-te.” O seu filho teve origem num daqueles cadernos de capa preta. A conversa começou por escrito.
 

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