Herança tóxica

Olhou para mim sem hesitar, mas com um sorriso triste que nunca lhe tinha visto: — Professor, não consigo libertar-me da zanga que sinto contra os meus pais. Como já lhe contei, foram muito violentos comigo. Dizem que foi para me educarem bem, mas hoje sei que todos aqueles castigos e todos aqueles espancamentos foram desnecessários. Não, não foi uma palmada de vez em quando, que pode acontecer a qualquer pai. Foi uma atitude deliberada de humilhar, de impor uma ordem para mim sem razão, de controlar qualquer movimento de liberdade da minha parte. 

Na adolescência, batiam-me sempre que eu chegava dez minutos atrasada e tudo fizeram para que eu não conseguisse construir uma autonomia que, mais tarde, me permitisse ser feliz. E, agora que tenho dois filhos adolescentes, hesito todos os dias no caminho a seguir; e tenho a certeza de que oscilo entre deixar fazer tudo e ser severa e proibir. Confronto-me todos os dias com a minha solidão e com os meus fantasmas…

Madalena é jurista e tem 42 anos, com um filho de 16 e uma filha de 15. Excelente profissional, sem problemas significativos com o marido, tem com os filhos uma relação de permanente conflito, com muita dificuldade em impor a autoridade. Com a entrada na adolescência e a resposta agressiva dos jovens, ficou sem saber o que fazer. Por isso me procurou em consulta.

Os antecedentes familiares de Madalena explicam as suas dificuldades actuais. Filha única de pais pouco diferenciados, as expectativas dos progenitores de um grande futuro profissional para a filha dominaram toda a sua infância e adolescência. Madalena não podia falhar nos estudos, se andava com rapazes, depressa se tornaria uma “galdéria”, a ajuda em casa era uma prioridade e a diversão era para “meninas ricas”. Quando esboçava uma contestação mínima, era espancada com violência por ambos os pais.

Madalena deixou crescer dentro de si uma raiva silenciosa, só apaziguada quando impôs a sua saída de casa para ir viver com o actual marido. Figura calma e protectora, Sérgio conseguiu proteger a mulher dos fantasmas do passado, até a adolescência dos filhos os despertar de novo.
Madalena tem uma herança tóxica. Deve-se a Susan Forward o conceito de “pai tóxico”, para designar os progenitores cujo padrão negativo face aos filhos se repete por muitos anos e se torna dominante na vida dos mais novos. Como uma toxina química, os danos emocionais infligidos por esses pais estendem-se ao longo da vida dos filhos, causando mal-estar significativo e prejudicando a autonomia. Estão neste caso os pais alcoólicos, os abusadores sexuais, os manipuladores/controladores, os pais apenas centrados em si próprios e os de Madalena, exemplo de abusadores físicos implacáveis que não respeitam a vida pessoal dos filhos.

Madalena precisa de se libertar desta herança tóxica. Os pais espancaram-na “por bem”, mas o amor parental não dói, antes conforta e fornece paz interior. Madalena necessita de construir a sua própria percepção da realidade, definir as suas escolhas liberta das opções dos seus pais e construir o futuro na sua nova família.
Ao controlar os aspectos negativos do seu passado, será capaz de lidar melhor com os filhos e consigo própria.

P.S. — Como previ desde o primeiro momento, António Costa teve uma vitória esmagadora no PS. Era evidente que Seguro não estava à altura. Dentro de um ano, Costa ganhará no país.

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