Nenuco agrilhoado

Que sociedade é esta que decreta à partida que as raparigas brincam com bonecas e os rapazes brincam com carrinhos? Não desejo compactuar com esta construção social do género. Pelo contrário, pugno por uma sociedade mais igual, em que as raparigas brinquem com carrinhos e os rapazes brinquem também com carrinhos. Acima de tudo, uma sociedade em que ninguém brinque com bonecas. É que as bonecas são absurdamente difíceis de desembalar das suas caixas e eu recuso viver num país em que é aceitável que os pais de raparigas estejam até dia 15 de Janeiro com os dedos estropiados, só à conta dos Nenucos que tiveram de desemalar no Natal.

Quem nunca enfrentou uma embalagem destas rirá da minha indignação. Quem já o fez não rirá. Não só porque tem noção da dificuldade, mas também porque ao rir mostra os dentes. E tem, pelo menos, um dente lascado, de quando usou a força dos maxilares para rasgar o tipo particularmente velhaco de polipropileno com que se está a lidar. Trata-se de polipropileno rijo e com mau feitio, que nem sequer permite que o deitemos fora como deve ser. Não se verga à vontade humana, nem à tampa do caixote de lixo. Tenta sempre voltar à forma antiga. Como o Ricardo Quaresma. Só que este plástico consegue mesmo.

Como todos os homens, tentei abrir a embalagem à bruta. Só que, para caixa que contém uma boneca que chora, a sua resiliência é surpreendente. É o adamantium dos pacotes, impossível de rebentar. Tem aberturas, mas estão soldadas com fita-cola que parece aquele papel transparente que usam nos aeroportos para selar as malas. Suponho que lhe dêem uma camada de verniz em cima, para lacrar.

De modo que liguei aos Bombeiros Sapadores a solicitar ajuda. Fui insultado por lhes ligar na véspera de Natal. Com toda a legitimidade, perguntaram que tipo de pai é tão negligente e pouco precavido ao ponto de se esquecer de reservar a equipa de desencarceramento com, pelo menos, uma semana de antecedência? Obviamente, em cima da hora não podiam fazer nada além de recomendar uma tesoura de podar.

Foi o que usei. Estraçalhada a embalagem, achei que soltaria a boneca. Só que não, pois está agrilhoada ao próprio invólucro. A Nenuco Cabeleireira é, afinal, a Nenuco Houdini: quando achamos que se libertou, ainda tem uns atilhos de nylon que prendem as mãozinhas e os pezinhos a uma peça de PVC aparafusada à caixa de cartão. Já para não falar do pescoço garroteado como se ela fosse um bufo da Máfia. Se a minha filha quisesse brincar ao Nenuco Guantánamo, era assim que algemava a boneca antes do waterboarding. Só a libertei depois de requerer o habeas corpus.

Sabemos que estamos a exagerar nos dispositivos de segurança de um brinquedo quando já não precisamos de uma chave sextavada para o montar, mas sim para abrir a sua embalagem.

Se o Nenuco fosse um destacado militante do PS já se tinha criado um movimento #soltem_as_bonecas. Pelo menos um #afrouxem_as_grilhetas_das_bonecas_para_os_pais_não_mutilarem_os dedos. Ponha os olhos nisto, dr. Mário Soares.

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