O actor britânico guia os espectadores de Star Wars in Concert (a 22 e 23 no Pavilhão Atlântico) por 33 anos e seis filmes da ópera espacial mais famosa do mundo. Mas para já conduz o P2 numa conversa sobre os filmes e a personagem que lhe dará, enfim, a imortalidade
Na espessa enciclopédia da cultura popular do século XX, Anthony Daniels e o seu C-3P0 têm o seu lugar garantido. Há quase 33 anos, estreava-se o primeiro filme da saga Guerra das Estrelas de George Lucas e um contrariado actor britânico com treino de mímica encaixava-se, com dificuldades, num fato dourado de dróide protocolar. Diria a primeira fala de um filme que se tornou uma ópera espacial e um fenómeno cheio de sucedâneos e intenso culto. Mas Anthony Daniels não queria conhecer George Lucas.
Um simpático actor teatral e da BBC Radio foi empurrado pelo seu agente para o estranho Episódio IV. Na sua personagem, inspirada no andróide de Metropolis, de Fritz Lang, e num de dois camponeses de A Fortaleza Escondida [Akira Kurosawa, 1958], inscreveu os tiques de mordomo inglês. Hoje, na rua, não é reconhecível como Harrison Ford, Carrie Fisher ou Natalie Portman. No entanto, é o único actor que participou nos seis filmes - tal como encetou a saga, é dele a última fala do derradeiro filme. E agora é o anfitrião, o narrador, a voz de Star Wars in Concert, a megaprodução que traz a Lisboa nos próximos dias 22 e 23 a Royal Philharmonic Concert Orchestra para tocar a inconfundível e oscarizada banda sonora de John Williams.
Anthony Daniels fala com as mãos, faz pequenos ruídos para se explicar, mimetiza. Nunca a personagem Threepio - a versão oral do seu título oficial, C-3P0 - emerge na conversa entusiasmada. Fala de música - "Gosto de música sinfónica. Tenho de tudo no meu iPod: de Queen a Dvorák ou Mahler" -, mas não carrega consigo a banda sonora de Guerra das Estrelas - "Isso seria ir longe de mais."
Daniels, que esteve em Lisboa na segunda-feira, é um contador de histórias. Histórias de Guerra das Estrelas, claro, das prequelas I, II e III e dos originais IV, V e VI, sobre o trabalho e aprendizagem de uma vida (agora dá a voz à série de animação Clone Wars, em Portugal no Cartoon Network). Afinal, diz ao P2 no Pavilhão Atlântico, que acolherá o espectáculo, só compreendeu mesmo a história de Guerra das Estrelas quando começou a narrar este concerto em 2009. Nos bastidores de um concerto, George Lucas foi cumprimentá-lo. "Estávamos a falar de como nem eu nem ele podemos ser fãs. Porque fizemos os filmes, sabemos como isto funciona por dentro. Mas do que ambos gostamos é do amor das pessoas. Por causa deste concerto, estou quase a tornar-me um fã. Quase."
Estando tão envolvido na saga e agora neste espectáculo, tem noção de quantas gerações tem envolvido? Há muitos miúdos na audiência?
Oh, sim, dos quatro aos 94 anos, a família toda assiste. Isso é maravilhoso para mim. A Guerra das Estrelas é uma história estranha e inteligente que podemos partilhar com os nossos filhos e eles connosco. No avião estava a ler um dos meus guiões para Clone Wars e esta série é, para muitas crianças A Guerra das Estrelas - que elas nunca viram. E depois vão crescer e verão os filmes pela ordem certa.
O que há de engraçado no Star Wars in Concert é que eu [não] conto a história como George Lucas - do IV ao VI e depois I, II, III. [Abana a cabeça e faz uma careta.] O homem era estúpido! [risos] Sempre que chegavam os guiões para cada filme ficava... humm?! Não fazia ideia do que ali estava. Com Star Wars in Concert, porque contamos a história de forma muito simples e ordenada, mesmo que não se tenha visto um filme, sai-se de lá a compreender toda a saga.
Ali há quatro viagens: a de Anakin Skywalker de bom, para mau, para a redenção; a de um jovem numa demanda, um herói [Luke Skywalker]; a viagem de George Lucas a tentar vender os seus guiões até que a Fox lá lhe deu um dinheirito; e a minha viagem, que foi de não querer conhecer o George Lucas - o meu agente disse muitos palavrões - até entrar num filme que foi muito, muito desconfortável e uma experiência não muito boa, e depois noutro, e noutro e agora estou aqui em Portugal. Literalmente por causa deste espectáculo desenvolvi uma compreensão, um afecto por esta história e compreendo, vejo o enorme afecto de milhares de pessoas todas as noites.
Ao longo destes 33 anos, não sente que está sempre a voltar à mesma personagem? Como é que se relaciona com ele? Em palco, ele surge às vezes?
Estou a narrar a história de fato, como um homem de negócios. Mas há várias vezes em que a personalidade do Threepio sai de mim [ruído veloz]. O espírito dele é verdadeiro. É uma cara bela. É um rosto sereno, mas que eu posso pôr a mexer. Ele é parte da minha vida... às vezes. Às vezes durante meses... nada. Já na semana passada fiz vozes em Clone Wars, depois fiz a voz de uma máquina de jogo em Las Vegas e vim de Los Angeles, onde estamos a refazer as maravilhosas Star Tours [simulador num parque de diversões]. Por isso no último mês tenho sido, sem fim à vista, o C-3P0. Mas no princípio ninguém sabia que eu era esta personagem, porque a Lucasfilm queria fingir que era um verdadeiro robot.
Agora, quando saio para o palco, o aplauso é enorme. Às vezes as pessoas perguntam-me na rua: "É o C-3P0?" E eu respondo: "Neste momento não." [risos] "Mas é o Anthony Daniels, certo?" "Sim." "Obrigada." Depois de todos estes anos, estou muito feliz, sinto-me muito em casa.
O C-3P0 é também o comic relief da saga - quão útil foi a sua técnica como mimo para o interpretar?
Muito, muito importante. E foi por isso que o George me quis conhecer. Eu era bastante bom em mímica na escola de artes e ele sabia que este tipo de figurino era difícil. Ficamos sem expressão facial, consigo ver a quilómetros mas só em frente. [Quando filmávamos O Regresso de Jedi] estava sempre a dizer aos Ewoks [pequenas personagens peludas] que tinham de fazer tal e qual como ensaiámos, porque senão.... Ahhh! [Simula o grito de um Ewok pisado pelo dróide.] Mas tínhamos sobressalentes. Gosta de Ewoks?
Sim, mas não são os meus preferidos.
E do Jar Jar Binks [personagem das prequelas]?
Nem por isso - aliás, Lucas é idolatrado pelos três primeiros filmes, mas os seguintes são menos consensuais. O que acha deles?
Fazer a segunda trilogia foi diferente, porque havia tanto digital. E o que isso significa realmente é que eu, e todos os actores, tivemos de usar mais a imaginação. E claramente algumas das caracterizações foram feitas para um público mais jovem. O George queria deliberadamente incluir os mais jovens na saga, o que enlouqueceu algumas pessoas. Só mencionar Jar Jar Binks faz algumas pessoas bater com a cabeça numa parede. Mas os miúdos de dez anos adoram que ele fale de forma estranha e que apanhe coisas com a língua. Eu sou um pouco velho para os Episódios I e II. Mas o Episódio III é fascinante pela interacção entre o Hayden Christensen e o Ewan McGregor, esplêndida.
Os primeiros episódios tinham tudo: bem vs mal, daddy issues do espaço, arquétipos mitológicos... É isso que explica o sucesso?
É um segredo que até o George tenta adivinhar, mas tem razão. Há histórias e mitos clássicos: a de uma viagem, a de alguém a aceitar um desafio, o pegar na espada - o que é um elemento clássico - e um momento de redenção, não como algo religioso, mas como algo humanista. Muitos elementos dos mitos gregos e romanos, mas também dos mitos nórdicos têm os eternos conflitos entre pais e filhos.
Muitas pessoas que vierem ao espectáculo vão reviver momentos da sua infância e dos seus conflitos parentais. O George, de forma muito inteligente e com muita pesquisa, teceu esta história com linguagem engraçada, personagens engraçadas e fora do normal, pô-las sujas e credíveis. E numa altura em que as pessoas queriam contos de fadas. Anos 1970, guerra do Vietname, filmes como Os Incorruptíveis contra a Droga, muito excitantes e agrestes, mas não muito simpáticos. E aqui tínhamos pessoas divertidas, uma coisa peluda - um Wookie -, uma princesa com um cabelo pateta. O timing foi absolutamente mágico.
Mas na rodagem os actores não escondiam a sua desconfiança em relação aos alienígenas, espadas luminosas e diálogos solenes. O que pensava na altura?
Quando estávamos a guiar pelo deserto [na rodagem na Tunísia, que fazia as vezes do planeta Tatooine] e a dar falas um ao outro, disse ao Mark Hamill [Luke Skywalker]: "Como é que podes dizer essa fala estúpida com uma cara séria?" E ele dizia-me: "E tu, já viste as falas que tens?" "Mas eu estou atrás de uma máscara, nenhum dos meus amigos me vê a dizer isto!"
Mas é uma homenagem que se tem de fazer aos actores: toda a gente foi muito profissional. E tanta gente acreditou em nós. O George Lucas, sem desculpas, despejou-nos a meio da história [no Episódio IV]. Muito inteligente. A única pessoa que compreendia que aquilo podia funcionar era o George. E mesmo ele tinha dúvidas. Hoje, e sei porque lhe perguntei, está extasiado.
Mas não gosta de ficção científica. Até saiu de uma sessão de 2001 - Odisseia no Espaço e exigiu o seu dinheiro de volta. Porquê?
Muitas pessoas o fizeram na altura: acharam que era uma porcaria, mas não tiveram a coragem de pedir a devolução do dinheiro. Mas vi o filme duas vezes no ano passado e adorei. [Em 1968] era demasiado avançado para o meu tempo, para a minha idade. Acho que é um filme notável, ainda não percebo bem o fim e aquela estranha trip. Mas na altura não gostava de sci-fi, achava o Star Trek uma parvoíce. Agora interesso-me muito mais e sou muito humilde. Mas a Guerra das Estrelas é mais fantasia científica. E há nela uma realidade. É num planeta, as pessoas vestem roupas usadas e sujas.
Guarda recordações dos filmes?
Tenho algumas coisas, mas em minha casa não veria nada. Seria embaraçoso.
Narcisista?
Não seria eu. Em minha casa não há nada dos filmes. Só coisas guardadas em alguns armários. Seria antinatural, sim, narcisista. Não tenho vergonha, de todo, mas tê-lo [C-3P0] na minha sala seria... estranho.
E quando se apercebeu de que aquele filme tinha mudado a sua vida?
Com a capa da Newsweek. E depois estava a pôr as minhas pegadas à porta do Chinese Theater, em Hollywood. Estranho. (Pausa). Ainda lá estão, vi-as há uns meses, cheias de pontas de cigarros. E as pessoas estavam a fotografar as pegadas, mas não a mim. Eu estava ali a olhar para elas. Não me reconheceram. Se eu estivesse vestido assim [aponta para o pequeno boneco que o acompanhou até Lisboa]... Só me apercebi mais recentemente, quando olho para trás e vejo: mudou a minha vida. Não houve um momento.
Posso estar aqui e fazer parte da história para sempre e sempre. Porque agora, com os media digitais, ele [aponta para a cabeça do robot, uma das que usou na rodagem original] vai existir sempre, até ao fim dos tempos. Eu não. (Silêncio)
E por isso é preciso ser responsável. Estou muito feliz com ele, estou orgulhoso com o facto de ele continuar. Nada há de mau nele, é gentil, é uma boa pessoa. E é uma espécie de imortalidade.
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