Revolução portuguesa foi o “laboratório” para mudanças na Europa

Mário Soares, Lula da Silva e Dominique Pouchin olharam para o 25 de Abril visto de fora. Soares aproveitou para criticar o Governo e Cavaco Silva. Lula não tem dúvidas: "A revolução era grande demais para se encerrar em si mesma."

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No final da conferência cantou-se Grândola, Vila Morena e o hino nacional Nuno Ferreira Santos

Dominique Pouchin recordou a transmissão em directo, na televisão francesa, de parte do debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal em Novembro de 1975, para mostrar o quanto a situação em Portugal era importante para outros países europeus naquele tempo.

Luiz Inácio Lula da Silva lembrou o Fado Tropical de Chico Buarque, de 1973, cujos versos foram vistos como um incitamento à revolta contra a ditadura militar que governava o Brasil, sobretudo depois do 25 de Abril português – “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”, diz a canção.

Mário Soares falou sobre a sua viagem por diversos países europeus, a pedido do Presidente da República, António de Spínola, que receava a falta de "reconhecimento" internacional da nova situação de Portugal. Soares tinha a missão de explicar aos líderes europeus e norte-americanos que Portugal não iria ficar subjugado aos militares nem aos comunistas mas queria ser uma democracia plena.

Os três foram os oradores de uma conferência que esta sexta-feira ao fim da tarde pretendia olhar “O 25 de Abril visto de fora”, organizada pelas fundações Mário Soares e Oriente. A revolução portuguesa foi vista no estrangeiro “com entusiamo e apreensão”, realçou Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, lembrando que a transição de poder em Portugal foi um momento de viragem internacional, que teve como movimentos seguintes o fim das ditaduras na Grécia e em Espanha.

Pela Europa, Mário Soares encontrou "alegria e euforia" pelo resultado da revolução portuguesa - "Toda a gente aceitou", vincou. Recordou os contactos em Itália e no Vaticano, com um "cardeal de esquerda", na Áustria, URSS e Estados Unidos da América. "Mesmo na Rússia e na América perceberam que era uma revolução progressista e que os militares não queriam o poder e o deram aos partidos", descreveu. Os militares fizeram a revolução "porque não podiam suportar mais a guerra colonial, em que morriam como tordos".

Depois de recordar um convite do secretário de Estado Henry Kissinger para se instalar nos EUA - que recusou - Soares contou que Kissinger e o Presidente Gerald Ford, numa visita a Espanha, pediram a Franco para que os marines norte-americanos pudessem entrar em Portugal através da fronteira espanhola, para travar eventuais avanços comunistas. "Franco, que era galego, disse que os marines não entram, isso é com Portugal."

Sobre a reacção da União Soviética, Soares realçou que os russos não queriam "que os comunistas tomassem conta" de Portugal porque "estava na altura a começar a détente - a possibilidade de entrar em negociações com os EUA para acabar com a guerra fria", e interessava-lhes um cenário sem radicalismos.

Olhos franceses postos em Portugal
Para o jornalista francês que acompanhou de perto os primeiros anos da democracia portuguesa, a revolução de 1974 teve cinco palavras-chave: “ignorância, incredulidade, entusiasmo, confronto e alívio”. Dominique Pouchin realçou que “Portugal esteve no coração da política europeia durante dois anos, tornou-se um assunto de política interna na Itália e com repercussões fortes em Espanha”, onde a ditadura franquista subsistiu até 76.

O Portugal pós-revolução foi um “laboratório”, uma sociedade “experimental” para os outros países. Pouchin diz mesmo que foi "determinante e teve grande repercussão" na organização de diversas esquerdas europeias - a esquerda francesa desenvolveu-se com os olhos postos na portuguesa, acrescenta. Daí vincar que a transmissão do debate entre Soares e Cunhal, em directo, na TV francesa, com tradução simultânea, era algo "inimaginável". Nem os portugueses tinham noção das ondas provocadas pela revolução, diz Pouchin.

Dominique Pouchin foi um dos activistas da revolta estudantil de Maio de 68, e passou pelo PSU - Partido Socialista Unificado e pela Liga Comunista Revolucionária. Em 1973 integrou o Centro de Formação de Jornalistas e ingressou no Le Monde. Foi como repórter recém-chegado a este jornal que, algum tempo antes da revolução de Abril, quando se preparava para vir a Portugal em reportagem, percebeu que nos arquivos do jornal havia apenas um pequeno monte de folhas sobre a história de Portugal nos últimos 30 anos, como se o país quase não existisse nem tivesse qualquer influência no contexto europeu, contou.

Numa Lisboa "triste" e marcada pela guerra nas colónias, Dominique Pouchin falou com pessoas que viriam depois a ser marcantes na revolução, como foi o caso de Ernesto Melo Antunes, com quem se encontrou numa tasca do Bairro Alto, contou, mas sem se aperceber da dimensão do que estava a ser planeado.

O Fado Tropical

Lula da Silva afirmou que em 1974 os brasileiros, “há dez anos sob uma implacável ditadura militar”, olhavam Portugal “com um misto de saudade, inveja e sincera admiração”. O ex-Presidente acredita que foram as notícias de Lisboa sobre a revolução de Abril que deram força à oposição brasileira que no final de 74 conseguiu nas eleições um terço do Senado, abrindo a primeira “brecha” no regime. "Quando vocês conquistaram a liberdade, compreendemos que também nós poderiamos recuperá-la." Lula não tem dúvidas: "A revolução era grande demais para se encerrar em si mesma."

Vivendo sob uma ditadura militar, o conhecimento brasileiro sobre a situação portuguesa antes de Abril de 1974 era escassa, recordou Lula. Quando no dia 26 um jornal publicava uma notícia com destaque sobre o golpe militar que derrubara o Governo em Lisboa, a larguíssima maioria dos brasileiros "não sabiam que Portugal vivia num regime autoritário há tantos anos". Um jornalista brasileiro só chegou a Lisboa 10 dias depois da revolução.

"A revolução dos cravos tocou de tal forma o Brasil que o Chico Buarque conseguiu irritar duplamente a ditadura militar com a canção Fado Tropical. Os censores viam a músiva com suspeição." Lula não cantou, mas declamou: "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!". O "rancor aumentava com outros versos: 'Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/Ainda vai tornar-se um império colonial!'"

"A revolução estreitou mais os laços entre portugueses e brasileiros", disse Lula da Silva, referindo-se aos brasileiros exilados noutros países que chegaram depois a Lisboa e foram "acolhidos com grande solidariedade". E às "dezenas de perseguidos políticos" que procuraram ajuda no Brasil, para onde foram poetas, dramaturgos, activistas políticos" e militares como o general Humberto Delgado e o capitão Henrique Galvão.

Recordou ainda que as duas ditaduras haveriam de juntar em Paris Mário Soares, Álvaro Cunhal e brasileiros como o jornalista mineiro José Maria Râbelo ou Leonel Brizola. "Tivemos divergências, amigo Mário, com um ou com outro, mas aprendemos a respeitá-los pela coerência política e a coragem com que se dedicaram à causa da liberdade e do socialismo", afirmou Lula da Silva.

"Ventos da liberdade e da justiça, quando sopram, nada pode impedi-los - este é o sentido mais forte da revolução de Abril", afirmou o antigo Presidente brasileiro que defendeu que "quem ensinou à Europa o caminho de um novo mundo e soube vencer um regime odioso poderá superar qualquer obstáculo". Portugal, acrescentou, "não pode deixar de sonhar" e os mais novos devem "tomar de novo aqueles ventos e aqueles cravos e seguir adiante", porque "u novo mundo ainda está para ser feito."

"Estamos assim": num ponto de interrogação

Sobre o presente, Dominique Pouchin recordou um enorme cartaz, que viu nas mãos de um manifestante que no 1.º de Maio de 1974 descia a avenida, apenas preenchido por um gordo ponto de interrogação, para dizer que “40 anos depois estamos assim”. Já Mário Soares não resistiu a uma crítica directa. “É extraordinário ver, 40 anos depois, uma reacção em todo o país brutalmente a favor do 25 de Abril quando todos sabem que o actual Governo é contra o 25 de Abril.” Sob um forte aplauso, continuou: “Eu lamento dizer isto, mas a verdade é que o Presidente da República português nunca foi capaz de usar um cravo. Isso dói.”

Entre uma plateia maioritariamente de esquerda, estava o “velho amigo” Francisco Pinto Balsemão, apontou Soares, lembrando ter sido com aquele primeiro-ministro que a actual Constituição foi fixada. Mas o primeiro agradecimento tinha ido para José Sócrates – que recebeu um aplauso mais longo que o próprio Soares; citou ainda Eduardo Lourenço, Almeida Santos, Manuel Alegre, Mário Ruivo, Pilar del Rio. Entre outros, estavam também Vasco Lourenço, Manuel Carvalho da Silva, Alfredo Bruto da Costa, Maria João Rodrigues, Vera Jardim e Gabriela Canavilhas.

No final, cantou-se a Grândola, Vila Morena duas vezes - a plateia começou a cantar quando ainda se ouviam os passos ritmados no chão de gravilha. Depois, já com a voz de Zeca Afonso a dar o mote, ergueram-se alguns braços de punho fechado e poucos cravos. A rematar, o hino nacional.
 

   

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