Mário Soares. Aqui. Hoje.

O momento do seu desaparecimento físico é tempo de grandeza da memória, de balanço da gratidão e de legado do exemplo

Na voracidade da pressa e da instantaneidade com que hoje se assume a vida e se ajuíza o outro, a morte é o momento da afectuosidade que não se soube entregar em vida. Por isso, tentamos recuperar no infinito daquele momento o que nos faltou no finito da nossa relação.

Na morte e diante de personalidades marcantes, há quase uma “compita” laudatória, onde a unidade na diferença quase se transforma na unicidade compulsiva. Hoje, perante a morte, a sageza do silêncio sofrido e respeitador tem vindo a ser trucidada pela obrigatoriedade da palavra mil vezes repetida, pela sofreguidão de câmaras desordenadas e pela mistura sórdida da democratização da proximidade pelas redes sociais com o seu uso reles, odiento, bárbaro e ignorante.

Morreu Mário Soares. O momento do seu desaparecimento físico é tempo de grandeza da memória, de balanço da gratidão e de legado do exemplo. Nas 11 vezes em que se candidatou a funções políticas (deputado, primeiro-ministro, presidente da República e eurodeputado), só uma vez votei nele. Ou melhor duas, uma por via indirecta. Refiro-me às eleições de 1969 (tinha eu 18 anos) em que, no círculo de Aveiro, votei CDE, que seria CEUD se tivesse votado em Lisboa.

Não escrevo, pois, como seu seguidor político ou doutrinário. Antes o faço com total liberdade e o necessário distanciamento. Mas, com indestrutível sentimento de gratidão. A ele (embora não só) lhe devemos a lucidez da coragem e a coragem do confronto em nome dos mais virtuosos valores da política: democracia e liberdade. Lá estive na Fonte Luminosa, em 1975, no momento de viragem erradicando novas tentativas totalitárias, ouvindo um só homem, mas tão acompanhado.

Conheci o Dr. Mário Soares a partir de 1980, quando era eu um jovem secretário de Estado do governo da AD. Atencioso e atento, informal e pedagogo, pragmático e sensível, curioso e generoso. Um dia houve, era eu um neófito deputado (1983-85) e era Mário Soares o chefe de Governo do então chamado Bloco Central. Coube-me, como opositor, criticar o Orçamento de Estado. Trabalhei muito para isso, fi-lo com a convicção que tinha e o entusiamo da juventude. Terminada a minha intervenção saí, um pouco, para os Passos Perdidos e, por acaso, o primeiro-Ministro também saíra. Ali, dá-me o braço, ficamos a falar de outras coisas da vida que não o sempre antipático OE e, no fim, diz-me “… E não se mace tanto com estas coisas das finanças e dos orçamentos. Isto não é tão importante como, às vezes, se pensa”. Havia acabado de escutar um político que detestava números e as teorias económicas de que lhe falavam. Ele sabia, como ninguém, distinguir o meio e o fim, o instrumento e o princípio, a essência e a aparência. Via longe o que nós só percepcionávamos perto.

Esta conversa ainda hoje me acompanha no celeiro decrescente da minha memória. Uma lição, ainda que por método paradoxal de anti-lição. Afinal, ali estava muito do que caracterizou Mário Soares na vida pública: estadista e não apenas político, mundividente sem fronteiras, com a exacta noção do importante que não se dissolve na pressão do urgente, intuitivo e instintivo, corajoso como expressão da sua plena ideia de liberdade, amante da vida e prenhe de vida. Sempre acompanhado de Maria de Jesus Barroso, uma grande Senhora, no que isso significa de integridade humana e ética.

“Aqui. Hoje”. Assim se intitula um poema de Jorge Luís Borges, que começa assim: “somos o esquecimento que seremos”. Começou agora o desafio da imortalidade de Mário Soares, para contrariar a “norma” do escritor argentino. Sobretudo com e para as novas gerações.

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