Já acompanhava a vida do Querubim e da Susana há uns meses, quando me encontrei com o Querubim para ele me contar a sua história. Sentei-me na poltrona e ele no sofá. “Então o que é que queres saber?”, perguntou. “Tudo”, respondi. “Não, não. Tudo é muito”. Não sei se achou que o tempo não era suficiente, ou que já me tinha contado muita coisa. Decidi então começar pelo momento em que ele viu a Susana pela primeira vez. E, agarrando num bloco que estava em cima da mesa, ele começou a desenhar.
O nome Querubim Lapa era-me familiar, mas a verdade é que desconhecia as suas obras. Ou, aliás, conhecia as obras mas desconhecia o autor. Porque elas estão em todo o lado. Em escolas, museus, lojas e ruas. Na Casa da Sorte, no Chiado, por onde passei três anos a caminho da Faculdade de Belas Artes. Ao lado da estação de comboios de Alcântara, onde saio todos os dias para ir trabalhar quando venho de transportes públicos. Em Setembro, fui filmar um antiquário na Praça de Espanha, em Lisboa. Foi aí que conheci a Susana. Quando ela saiu, a Laura, proprietária do antiquário, disse-me que ela era a mulher do Querubim Lapa, um grande ceramista português. Contou-me que a sua neta tinha ido à casa de ambos e tinha ficado apaixonada pela sala, preenchida com retratos da Susana, pintados pelo Querubim. “Oh avó, também quero um amor assim”, disse-lhe a neta.
Decidi ir atrás da história e quando dei por mim já era a “filha adoptiva”, como a Susana me chamava. “A Pitonisa”, para o Querubim, que várias vezes me explicava o significado dos nossos nomes, bastante invulgares. O Querubim, apesar de ter à primeira vista uma postura formal, era uma pessoa com um grande sentido de humor. E eu estava sempre a brincar com ele. Quando começou a sugerir músicas para o documentário, disse-lhe que ia colocar a música “Mestre da culinária”, do Quim Barreiros, pois ele era conhecido como o “Mestre” e estava sempre a mexer com colheres e recipientes para misturar as tintas. Comecei a cantar e ele, sem hesitar, juntou-se a mim. Durante as filmagens, quando estava atrás da câmara, perguntava-me sempre se estava a “gravar”. Acabava por estragar o plano quando me chamava ou referia o meu nome nas conversas. Eu dizia-lhe para esquecer a minha presença, mas ele só esquecia a câmara. “Sibila, anda ver isto”; “Já reparaste naquele azulejo? O que é que achas?” E eu não respondia. Ria-me. E ele não percebia até a Susana começar a reclamar. “Ela está a filmar!” Uma vez, quando estávamos a almoçar os dois, perguntei-lhe sobre a morte. Se fazia confusão. Disse-me que a diferença entre a morte e a vida era estar e já não estar. Era como voltar para dentro da barriga da mãe, onde todos estivemos, mas não nos lembramos. Na sala, mostrou-me os vários cadernos onde desenhou grande parte dos momentos vividos e imaginados com a Susana. “Já fiz duzentos retratos da Susana”, disse-me. “Mas vou fazer mais”.
Quando acabei o trailer do filme, mostrei-o à Susana. Mais tarde, ela chamou o Querubim para ver. Receei que ele o criticasse. O meu interesse em fazer este trabalho sempre foi mais ligado à sua vida privada, que ele não gostava de expor. Ou fingia não gostar. Naquelas imagens estava a vida do artista, mas mais do que as suas obras, estava a sua intimidade, momentos frágeis: como o período que passou no hospital internado com uma hepatite, em Dezembro do ano passado. Não era o retrato típico, que idolatrava o talento e homenageava as obras, mas o filme de uma história de amor. Segurei o smartphone e vimos os três juntos, de pé na cozinha. No fim, ele sorriu e disse-me: “Obrigado”.
Pouco antes de acabar o filme, descobri que o Querubim tinha a mania de escrever frases amorosas e dedicatórias à Susana atrás dos móveis e dos quadros. Frases que ela nunca quis ler. Apesar de ter 90 anos, não estava à espera da morte do Querubim. Ninguém estava. E também não esperava criar uma grande amizade. Este trabalho começou por ser sobre a vida. A paixão do “mestre” Querubim pelas artes, mas acima de tudo, pela Susana. E assim se irá manter. Não fiz alterações ao documentário. Gostava que ele o tivesse visto.
Sibila Lind