A morte de Ringo

I

A casa ficava no bairro de Sommerschield. Era um bairro bom e tranquilo, com ruas ladeadas de jacarandás, e que veio a sobreviver bem aos tempos difíceis depois da independência de Moçambique. Quando regressava a Maputo, de vez em quando, passava por lá. Ela conseguia ainda ver Lourenço Marques.

O terreno tinha sido comprado por ela num momento de força, sozinha era preciso ser astuta. Deu para fazer quatro casas, o construtor ficou com uma, ela com a outra. Mais tarde, investiu em remodelar a casa de banho junto do quarto, pondo mármore claro, luminoso. O quarto dava para uma varanda grande, onde colocou cadeiras e uma mesa e onde gostava de ficar a ler. Depois de anoitecer, ligava o candeeiro e ficava ao fresco.

Nas semanas em que a filha estava em casa do pai, era isso que fazia, lia. Ainda não tinha televisão, naquela altura, no final dos anos 60, e os livros bons de facto faziam alguma companhia.

O quarto da filha estava em permanente transformação. Ia sempre tendo objectos novos e uma semana estava cheio de tralha, noutra semana, arrumado, amputado. A filha transportava as coisas de que precisava e as de que mais gostava de uma casa para a outra e, mais tarde, olhando para trás, isso pareceu-lhe de uma coragem que talvez só uma criança fosse capaz.

No rés-do-chão ficava a sala espaçosa, a cozinha e a porta para o jardim, com um lago que não tinha ficado bem feito e que era preciso estar sempre a encher de água, o que lhe dava a sensação de ter ali um animal precisando de cuidados.

Da varanda do quarto, via o lago do jardim do vizinho onde algumas noites observou um gato apanhando com as garras os pequenos peixes e logo comendo-os. Mas as casas ficavam distantes o suficiente para que não ouvisse ruído nem quando havia festas.

Gostava da sua casa, tinha orgulho nela, e ao fim de alguns anos de estar separada, quando percebeu que era capaz de cuidar de si própria e da sua filha, começou a apreciar os momentos que tinha sozinha. Nesses momentos, vivia.

Não saía muito, para o Hotel Polana, ou outros lugares, porque Maputo era uma cidade pequena e a família do marido era importante, e toda a gente sabia que ela era uma mulher sozinha. A uma mulher sozinha muitas coisas eram interditas. A uma mulher sozinha bonita e ainda jovem muitas mais. Mas outras coisas estavam agora ao seu dispor. Agora tinha um trabalho, agora tinha o seu negócio, agora tinha calças que vestia quando lhe apetecia, tinha horas só para si e o seu espaço. Tinha também um cavalo.

Quando teve vontade de começar um hobby, qualquer coisa de ousado, pensou primeiro tirar o brevet. Chegou a ter algumas aulas e gostava de se sentir no ar, o mundo apequenado, num olhar entendendo toda a geografia. Até que um dia o instrutor lhe disse que tomasse conta dos comandos e dirigisse o avião e ela então viu o céu cair. Nesse dia, quando aterrou, decidiu experimentar montar.

O primeiro cavalo que teve chamava-se Elvis. Depois comprou o Ringo. A filha deu-lhe o nome. John, Paul, George não ficavam bem. Era um cavalo negro, bastante grande mas muito manso.

A casa não era longe do centro hípico e começou a montar todos os dias. Acordava às seis para aproveitar as primeiras horas da manhã e acabar o trabalho mais cedo, a tempo de ir montar antes de voltar a escurecer. Deixava a boutique com uma empregada e às quatro da tarde estava no centro hípico. Rapidamente o Ringo adaptou-se a ela e embora não o treinasse para competir de vez em quando participavam em eventos. Quando os saltos corriam bem sentia-se capaz de tudo.

Ao fim-de-semana, passava os dias no centro hípico e almoçava com outros cavaleiros, que com os anos se tornaram cada vez mais próximos.

Os passeios diários, alternando entre o trote e o galope, davam-lhe uma sensação de enorme liberdade mas também, quanto mais o cavalo se fazia ao cavaleiro, uma sensação de previsibilidade. O Ringo orientava-lhe os dias de tal maneira que era relutante em alterar essa rotina quaisquer que fossem as circunstâncias.

No dia 24 de Dezembro, como nos outros dias, acordava às 6 da manhã, abria a boutique - onde havia sempre muito movimento com as compras de última hora - e às quatro da tarde saía para o centro hípico. Tornou-se especialmente importante, no Natal, poder montar como sempre montava.

A filha começou ainda pequena a passar com o pai os Natais, pelos quais ela não lutava porque entendia que ela era mais feliz passando com a outra família. Recebia cartas dos seus pais e das suas irmãs dizendo terem saudades dela e dos Natais com calor em Moçambique. Escrevia de volta sossegando-os, que passaria a consoada com amigos. Aos amigos dizia que passaria com outros amigos e a esses que passaria com outros. Fez isso durante vários anos. Na noite de 24 de Dezembro, depois de deixar o Ringo e de conversar um pouco no centro hípico, voltava para casa perto da hora de jantar. Comia qualquer coisa. Pegava num livro, lia um pouco na sala. Depois, passava para o quarto. Vinha à varanda apanhar fresco.

Àquela hora, no Hotel Polana, mulheres de vestido de noite estariam estalando as “christmas crackers”, seguindo a tradição inglesa vinda da África do Sul, rindo alto com o barulho e a tolice dos pequenos brindes. Talvez essas mulheres fossem mais felizes. Talvez fingissem melhor ser felizes.

Depois, voltava para dentro, deitando-se cedo como noutra noite, mas sentindo-se bem consigo mesma, verdadeira.

Lá fora, as gambiarras que rodeavam a casa ficavam acesas.

II

“Ringo!”, chamou, entrando nos estábulos. O cavalo espreitou da box, viu-a chegar, voltou a deitar-se. Ela ajoelhou-se junto dele, afagando-o e falando-lhe baixinho.

Naquele mês que passou em Lisboa, o cavalo tinha adoecido e parecia que tinha apenas esperado que ela voltasse. Ela tinha voltado no dia anterior, cheia de “toiles” do estilista português Napoleão, para vender no ano novo.

Era véspera de Natal. A filha estava com o pai. Os amigos que estavam no centro hípico preparavam-se para voltar para casa para preparar a consoada. O Ringo morria.

Qualquer coisa no tom com que a mãe de dois cavaleiros, a quem toda a gente no centro hípico tratava por “Mãezinha”, a fez perceber que sabia que ela passaria o Natal sozinha e foi a “Mãezinha” que primeiro disse: “Se vais ficar aqui com o Ringo, ficamos contigo.” E acrescentou: “Vamos a casa buscar o perú e voltamos.” Um a um, os amigos todos decidiram que era a melhor a ideia. De casa, trouxeram as mulheres e os filhos, comida e bebida, as prendas para abrirem à meia-noite. Improvisaram no bar todos os lugares, puseram uma grande mesa. O tratador do Ringo juntou-se a eles. Os candeeiros do bar, feitos por ela própria, com uns cavalinhos, pareceram-lhe nessa noite realmente um bom trabalho. A festa durou até tarde e quando chegou a altura de se começarem a despedir sabiam já que guardariam aquela recordação como quem tinha feito um pacto.

O Ringo morreu no dia 25 de Dezembro de 1970. Ela viu-o morrer e, sabendo naquele momento que afinal tudo falhava, sentia que estava preparada.

Durante muitos anos, Maria Luiza Carvalho continuou a viver os Natais no calor, em Moçambique e depois no Brasil. Continuou a passá-los com a “Mãezinha” e os filhos dela que passaram a “adoptá-la” para as festas.

Hoje, vive num apartamento em Cascais, num prédio pouco característico, dando para outros prédios pouco característicos, onde não se vêem luzes de natal nas janelas.

Dentro de casa, tem Moçambique sobretudo nos quadros que pinta e nos quadros de alguns amigos.

Passa agora os Natais com a filha, os netos e o bisneto, para quem comprou um enorme urso, pensando num urso cor-de-rosa que não tinha podido um dia oferecer à filha.