Tudo é coberto de pão

I

Ana olha para os filhos. O mais velho pega no copo como um homem, ruidoso, a rapariga mais discreta, mas sem dúvida já começando a sentir-se mulher, começando a precisar pouco dela. Todos os filhos crescem depressa, mas os dela tinham crescido ainda mais depressa do que os filhos das outras. Tinha ido dando conta quando ia comprar roupa para levar no verão e os tamanhos pareciam-lhe enormes para os corpos dos filhos dela. Via os filhos uma vez por ano e essas semanas de verão passadas juntos entre Portugal e a Alemanha eram felizes e às vezes tensas, pela ideia da separação que recomeçaria.

Eram agora pessoas feitas, os seus filhos, eram outras pessoas, diferentes dela. Em determinados momentos, eram estranhos.

Mas não pensa realmente com detalhe nisso, perdendo-se nesses anos longe, nem tem tempo para isso. Tem em casa cerca de 50 pessoas. Veio a sua mãe e a sua sogra, as irmãs e os sobrinhos, os sogros de uma das irmãs, os cunhados e as suas respectivas famílias, do Alentejo tinham vindos os tios e uma sobrinha com os seus filhos. Passou os últimos dias a preparar aquele Natal, o primeiro depois de regressar da Alemanha. Queria que fosse, não só melhor do que os anteriores, mas melhor do que nos sonhos.

Há sempre alguém que precisa de alguma coisa, mais um copo limpo, mais guardanapos. Há loiça para ir lavando. É preciso repor o prato das filhoses. Comprou três quilos de farinha para fazer filhoses em quantidade que parece agora que vai durar o ano inteiro. Este Natal, ao contrário dos que tinha passado na Alemanha, ela gostaria que durasse assim.

Há muito tempo que deixou de ir à missa. Mas continua a rezar, tem um terço que costuma rodar com destreza nos dedos numa divisão da casa onde o marido não esteja e não a possa olhar ligeiramente trocista, descrente na validade daquele esforço. Acha que seria egoísta pensar só em si e nos seus e pediu paz no mundo. Não é, a rezar, diferente: sempre na vida cumpriu como lhe cabia.

À meia-noite, a confusão é tanta que os enfeites de Natal mal se notam sobre a mesa enorme que o marido improvisou com tábuas. Só o pinheiro de Natal, que o marido cortou no mato perto da casa, se mantém imóvel na sua beleza, iluminado e decorado com as bolas e as estrelas que algumas patroas alemãs lhe ofereceram e que trouxe para Portugal na carrinha onde teve que encaixar tudo o que acumularam durante os 12 anos emigrados.

Os filhos talvez nunca venham a entender a importância de uma árvore de Natal piscando. Ela lembra-se, com aquela melancolia agradável das recordações de infância, que é completamente distinta da saudade, de uma árvore de Natal luzindo na montra da loja da terra. Era, nos anos 50, no interior do Alentejo, uma coisa de se deixar ficar a apreciar. Embora pudesse tocar no vidro com a mão, era tão distante como uma tela; aquela árvore podia estar em Hollywood.

Na Igreja, compunha-se o presépio com um esmero que nem sempre observava no resto do ano. Ia com a mãe e as irmãs ver o menino Jesus assim que ficava pronto a ser adorado sobre a palha.

Foi com a mãe que aprendeu a fazer filhoses. Era a fazer filhoses que passavam o dia 24 e à meia-noite iam à missa do galo. Vestiam a melhor roupa que tinham e o par de sapatos bem poupados. Era uma missa que a consolava. Quando saíam, faziam o caminho para casa nas ruas sem luz eléctrica, mas sem sentir maldade na escuridão.

As mulheres continuam a perguntar sobre as casas na Alemanha: naquele momento, na Alemanha as ruas da pequena cidade onde viveu estariam cobertas de neve, mas as casas por dentro estariam muito aquecidas. As casas alemãs eram acolhedoras e as casas onde trabalhou a limpar eram verdadeiramente luxuosas. “Säubern”. Tinha aprendido a palavra alemã para limpar e sabia ver onde estava sujo e isso tinha bastado. Chegou a limpar cinco casas num dia. As alemãs, conta, são boas pessoas. As louças que elas lá tinham nas cozinhas, conta, nunca visto. Mas os frigoríficos, ai que mal apetrechados, ai como comiam mal os alemães. O Natal, sim, era bonito de se ver, luzes nas ruas e em todas as casas, conta. Não fala muito sobre os seus próprio Natais lá, com o marido e o cunhado, no que lhe custava a ida à cabine telefónica, à hora marcada, para fazer a ligação para um telefone vizinho dos seus pais, para falar com os filhos, “Feliz Natal”, na vontade de chorar.

Conta mais uma vez o episódio em que esfregou os tachos e pondo-os sobre a mesa da cozinha, reluzentes, a alemã ficou espantada. “Deus na terra, portuguesa no céu”, tinha dito a alemã. As mulheres riem.

Dos homens ouve-se um riso embriagado, anedotas, cantares: “Eu ouvi um passarinho,/ Às quatro da madrugada,/ Cantando lindas cantigas,/ À porta da sua amada./ Cantando lindas cantigas,/ À porta da sua amada.// Por ouvir cantar tão belo,/ A sua amada chorou.”

Adormeceriam com o cansaço da demonstração da alegria.

O borrego terminou. As filhoses sobram. A família começa a estender-se pelos colchões que o marido arranjou e espalhou pelos quartos ainda sem mobília. Os homens dirigem-se para a garagem da vizinha para outras camas improvisadas. Deitados, os garotos ficam a gargalhar em surdina.

E ela adormece antes que todos tivessem adormecido e não chega a ver naquela noite de Natal o rosto dos seus filhos de olhos fechados. No dia seguinte, abririam os olhos e continuariam lá, e no outro também, e no outro...

II

António olha para os filhos. O mais velho, a querer beber como os outros homens, um pouco fanfarrão, desafiante, mas um bom rapaz, um pouco perdido depois de ter acabado o colégio, os avós sem mão nele, mas vai endireitar-se. A filha parece-lhe ainda uma criança, sem qualquer preparação para a vida.

Escuta como os familiares falam da terra, depois do país. Desde que regressou em Agosto que tem a sensação que vive num país que não conhece bem.

Nos anos 60, quando chegou à Alemanha, sentiu que tinha encontrado um lugar para começar a viver. Em Portugal, era penar. O que era viver? Era passar numa rua e alguém o chamar: “Quanto ganhas? Ganho x por tantas horas. Dou-te mais, vem trabalhar comigo.” Em cada garagenzita se fazia uma fábrica naquela produção de gigante levantando-se.

Abre mais uma garrafa de vinho. Pede à mulher que encha o prato das filhoses. Alguma vez não havia de faltar nada, havia de sobrar.

Pensa que o pai gostaria de estar ali. Ele que, numa altura em que a terra no Alentejo tinha quem a trabalhar, tantos filhos por família, não tinha podido dar muito aos seus. Descalços até aos 16 anos, se era viver.

Gostava de ver como os parentes olhavam para a casa. Também fazia parte da ambição de um homem.

A casa feita e paga, ainda que tivesse custado mais do dobro do que tinha inicialmente calculado. Quantos discos prensados nas máquinas alemãs pelas suas mãos estavam naquela casa? Mozart, Beethoven, Bach, Elvis Presley, The Beatles, Abba, Amália Rodrigues. Depressa chegaria a mobília que já estava encomendada, e a televisão.

Os homens cantam, e ele, apesar de desabituado, junta-se: “Por ouvir cantar tão belo,/ A sua amada chorou./ Às quatro da madrugada,/ O passarinho cantou./ Às quatro da madrugada,/ O passarinho cantou.// Alentejo terra santa,/ Tudo é coberto de pão/ Traz o ninho na garganta/ Lembra de bem a oração./ Traz o ninho na garganta/ Lembra de bem a oração.”

Tem 46 anos. Mais dois anos na fábrica dos discos, tinha ficado com uma reforma alemã. Mas não pensa se chega a velho. Está ansioso que comece o novo ano. Vai fazer alguma coisa com a outra propriedade, um comércio. Sente-se cheio de energia. 1985 vai ser o ano em que vai começar a viver como sempre devia ter vivido.

No dia seguinte, os parentes ainda almoçaram e a seguir partiram. Ficaram então os quatro na casa vazia. À noite, comeram os restos do Natal sem precisar de conversar muito. Não chovia e dava para ver um céu estrelado e Ana e António sentiam o seu pedaço de terra coberto.

Ana e António ainda vivem na casa que fizeram na Quinta do Conde, em Sesimbra. A filha, que é agora advogada, vive com eles. O filho casou e a festa que lhe fizeram também se tornou, como a do Natal de 84, lendária na família. Têm 75 anos e ocupam-se com a casa, o quintal, alguns animais. Passam sempre o Natal com os filhos. Na árvore ainda usam as mesmas decorações alemãs.