Enda Walsh e o medo da porta da rua

Apelidado de “neto estético de Beckett”, o irlandês tem construído uma extraordinária obra teatral — que transbordou também para colaborações com Steve McQueen e David Bowie.

Foto
Na sua obra teatral o conforto encontrado nas pequenas acções quotidianas parece espelhar também o medo das curvas inesperadas Patrick Redmond

Cillian Murphy tinha 18 anos, terminado o seu percurso escolar e uma vaga noção de que queria ser actor, quando conheceu Enda Walsh. Mas o encontro nada teve de acidental. Murphy tinha assistido a vários espectáculos de Walsh com a companhia Corcadorca, sediada em Cork, e ficado maravilhado com a adaptação de Laranja Mecânica, a partir do livro de Anthony Burgess, que o dramaturgo tinha realizado. Ao seu pedido para uma audição, Walsh pediu-lhe que lesse algumas falas de Disco Pigs, a peça que havia de significar a sua afirmação, numa altura em que procurava dois jovens actores para lhe dar vida. Então, em 1996, recordou Enda ao Independent, não tinha sequer a certeza de que o texto valesse alguma coisa. Foi essa audição que o fez pensar “Uau, este tipo faz com que isto pareça real e não um exercício teatral”.

O actor admite no mesmo artigo que, mesmo depois de ler o texto, não fazia ideia do que tratava Disco Pigs. Mas nem a sua nula experiência de teatro o impediu de pressentir que estava a embarcar em algo especial. Seguiram-se 18 meses de digressão com a peça e, no final, confessa Cillian Murphy, tinham-se tornado “amigos para a vida”. Essa forte ligação continuaria a transbordar para as parcerias artísticas à medida que a carreira de ambos descolava — Murphy com o filme 28 Dias Depois, de Danny Boyle; Walsh com a carreira teatral e a co-autoria do guião de Fome, filme de Steve McQueen. Em 2011, quando voltaram a trabalhar juntos no monólogo Misterman, os palcos onde se apresentavam tinham mudado consideravalmente.

Foi em Nova Iorque, ao assistir a um ensaio de Misterman, que Enda Walsh começou a juntar duas situações sem qualquer relação e Ballyturk começou a ganhar forma. “Bom, uma das situações era intensa e ridícula”, recorda o dramaturgo ao Ípsilon. “Ver o Cillian a dar tudo num ensaio enquanto o nosso director de produção, mesmo ao lado dele, consertava a perna de uma mesa, cada um imerso no seu universo…” Esse sentido de absurdo e de ridículo acabaria por ser acompanhado daquilo que espoletara o momento em que a sua filha, aos seis anos, lhe perguntou se toda a gente morria. “Foi profundo e muito triste ouvir isso da boca de uma criança”, recorda. “Foi por essa razão que quis apontar para uma peça que balançasse entre o ridículo e o existencial, e que fosse alimentada por uma grande intensidade.” Ou como “uma vida inocente, vivida estupidamente, pode ser atravessada pela morte”.

A ideia de morte, e o momento em que esta finalmente chegava e o cérebro se debatia com a evidência da sua presença, faria parte das discussões que Enda Walsh teve com David Bowie na criação do último espectáculo do cantor camaleónico, Lazarus, o musical que os dois conceberam e que se estreou em Nova Iorque, em Dezembro de 2015, um mês antes do desaparecimento do músico. Walsh havia de tomar o gosto ao género e, em 2017, estreou a ópera rock The Second Violinist, resultado de uma parceria com o compositor irlandês Donnacha Dennehy (com quem já colaborara em The Last Hotel), encenada pelo próprio Enda Walsh.

Com uma série de criações recentes num formato de instalação (Room 303, A Girl’s Bedroom, Kitchen ou Bathroom), a verdade é que Enda Walsh é reconhecido sobretudo pela peculiaridade e pela depuração da escrita da sua obra teatral, quase sempre instalada em espaços fechados e em que o conforto encontrado nas pequenas acções quotidianas parece espelhar também o medo das curvas inesperadas que os dias podem tomar assim que a porta da rua se abre. “Sim, trata-se de um medo [das personagens] de não poderem controlar o seu destino e a própria vida, reconhecendo a sua insignificância”, confirma ao Ípsilon. “E a reboque disso, o quão bela e maravilhosa a vida pode ser.”

Este universo tem-lhe valido a repetida comparação ao maior dramaturgo irlandês de sempre, tendo o Village Voice chamado a Walsh “o neto estético de Beckett”, argumentando que seria impossível conceber Enda sem o seu mestre oficioso. “Acho que todos os irlandeses sentem essa afinidade com Beckett”, diz-nos. “Estamos sempre a uma bebida ou a um dia de distância de cairmos num cavernoso poço de desespero — é um poço que adoramos.” Identificando no desespero e na tragédia dois ingredientes constantes da sua escrita, confessa-se um citadino pouco atraído pela ruralidade irlandesa, cheia de “segredos terríveis”. A Natureza, sim, fascina-o. Mas é algo “superior e melhor àqueles que a habitam”.

Sugerir correcção
Comentar