Entramos já em perda. Há um morto no início de cada episódio de Sete Palmos de Terra e o primeiro de todos é Nathaniel Fisher, o patriarca desta história, dono de uma agência funerária familiar em Los Angeles. Ao contrário das séries de televisão policiais, onde a morte traduz um crime que é resolvido todas as semanas, naquela casa prepara-se cada corpo para o funeral, lida-se semanalmente com o luto. E os lutos são irresolúveis. Por isso, o primeiro episódio deixa logo à deriva Ruth, a mulher de Nathaniel, e os seus três filhos – Nate, o primogénito, David, os dois na casa dos 30 anos, e Claire, ainda adolescente.
A vertigem irá manter-se, sempre polvilhada com sexo, humor e fantasmas. Algures no quarto ano da saga familiar, já depois de doenças, de separações e, claro, de muitos cadáveres, vemos os Fisher à noite, no quintal da sua casa, à volta de uma fogueira feita de objectos que sobraram de uma venda de garagem. Há um passado comum a ser queimado, mas cada um está isolado, no meio da escuridão e do silêncio. A morte é plena, mas uma vida pode ser toda percorrida pela metade, como os espectadores já perceberam. É esta tensão que recomeça a cada episódio.
Criada por Alan Ball, iniciada em 2001 e produzida pelo canal de cabo HBO, Sete Palmos de Terra marcou a televisão norte-americana no início da década passada. Neste sábado, faz dez anos que arrancou a quinta e última temporada. O episódio final, exibido a 21 de Agosto de 2005 nos EUA, tornou-se num dos mais famosos finais de uma série de televisão. Desde então, a morte não voltou a entrar nas nossas casas com esta ferocidade.
É tempo de voltar a este ovni.
Aos 13 anos, Alan Ball teve um acidente de carro. Apesar de ter saído intacto da experiência, a sua irmã Mary Ann, com 22 anos, ia ao volante e morreu. A tragédia, no início da adolescência, a que se juntou o facto de Ball ser um homossexual a crescer numa cidade na Georgia, influenciou para sempre o trabalho do realizador e argumentista, hoje com 58 anos. Quando chegou à HBO para apresentar o projecto da nova série, Ball já levava na bagagem o Óscar de melhor argumentista pelo filme Beleza Americana, um retrato mordaz dos subúrbios norte-americanos.
“O Beleza Americana está no equilíbrio perfeito entre uma coisa que poderia ser uma sátira cheia de irrisão e uma coisa perfeitamente séria, que seria um dramalhão”, lembra Jorge Mourinha, jornalista de cultura do PÚBLICO, atento ao cinema e à televisão. “De certa forma, os Sete Palmos de Terra é também isso. Está nesse equilíbrio precário entre ser uma coisa que com um toque a mais cai na sisudez e com um toque para o outro lado cai no burlesco ou na sátira. Isso é uma questão de tom e é muito difícil de se sustentar.”
Foi a famosa série Os Sopranos, de 1999, também da HBO, sobre uma família da máfia italiana, que abriu caminho para uma nova forma de fazer televisão, nos canais de cabo. Com os Sete Palmos de Terra mostrou-se definitivamente que havia um espaço onde se podia ousar e ser criativo, refere Jorge Mourinha. “Eu era mais Sopranos do que Sete Palmos de Terra”, confessa o jornalista, que diz ter visto apenas a primeira temporada na totalidade.
Voltemos ao primeiro episódio. É Natal em Los Angeles e Nate, o filho pródigo e cool, interpretado por Peter Krause (Parenthood), chega de avião vindo de Seattle, onde vive. Quando recebe o telefonema sobre a morte do pai, tinha acabado de ter relações sexuais numa despensa do aeroporto com Brenda Chenowith, que conheceu no avião. Brenda, protagonizada por Rachel Griffiths (Irmãos e Irmãs), é uma massagista sobredotada, que tem uma relação perturbadora com Billy (Jeremy Sisto), o seu irmão.
Nate e Brenda serão um dos eixos principais da série, numa relação que viverá entre o amor e a morte, a espiritualidade e a razão. Depois do sexo no aeroporto, é Brenda que leva Nate até ao hospital, onde terá de ver o corpo do seu pai. No hospital, espera-o a sua mãe, uma recém-viúva na casa dos 50 anos, que vive numa luta constante com as suas emoções. A partir de então, Ruth passará o resto da série a tentar encontrar um lugar na vida dos filhos, ao mesmo tempo que se vai redescobrindo em várias relações amorosas, numa actuação brilhante de Frances Conroy.
Ao lado de Ruth está Claire, a filha mais nova, que tinha experimentado pela primeira vez metanfetaminas imediatamente antes de receber a má notícia. Claire, interpretada por Lauren Ambrose, nunca fugirá de experimentar, tal como a sua mãe ou David, o irmão do meio, nem tão-pouco está em fuga, um padrão de Nate. Esperam-na as drogas, as relações dolorosas e a arte.
De volta do hospital, e já sem Brenda, os três chegam a casa com David à espera, sentado nas escadas, na forma de um Michael C. Hall (Dexter) completamente introvertido. David está dentro de si, dentro da casa dos pais, onde vive, dentro da profissão de agente funerário, seguindo o caminho do seu pai, e dentro do armário. É homossexual e inicia a série numa relação escondida com um polícia negro, Keith Charles, interpretado por Mathew St. Patrick, num namoro que será uma fonte de lutas e de esperança ao longo da série.
Na altura, o facto de haver um casal gay protagonista numa série dramática foi muito falado. “A série foi pioneira sobretudo por mostrar uma relação entre dois homens de etnicidades diferentes e desse ponto de vista foi completamente exemplar”, defende João Oliveira, investigador em Estudos de Género no ISCTE, em Lisboa, acrescentando que a diversidade não é só de género ou sexual, pode ser étnica, económica.
Para o investigador, um dos aspectos mais interessantes da série é a forma como as personagens vão experimentando a sexualidade e vão questionando as fórmulas sociais, como a monogamia, ou os tabus, como o sexo numa idade mais avançada da vida. “A sexualidade não termina numa determinada fase da vida. Há a mãe a ter experiências sexuais, a ter namorados e a ter uma vida após a morte do marido”, aponta.
Finalmente, na cave, numa espécie de sala de operações dos cadáveres, está Rico Diaz à espera do corpo de Nathaniel. O jovem latino-americano, num desempenho do actor Freddy Rodríguez, é especialista em preparar os cadáveres para o funeral e tem uma vida perfeitamente normal com a sua mulher, Vanessa Diaz (Justina Machado).
É na cave da casa que, em todos os episódios, os cadáveres são tratados, tal como será Nathaniel Fisher. É retirada parte do sangue e substituída por uma solução que adia a degradação do corpo. “As pessoas nos Estados Unidos têm um aspecto melhor depois de mortas do que quando estavam ainda vivas, mas sofriam de doenças prolongadas”, explica ao PÚBLICO Clara Saraiva, antropóloga do Centro em Rede de Investigação em Antropologia e especialista em rituais fúnebres, que fez o mestrado nos EUA na década de 1980.
“Trabalhei sobre a transformação do corpo morto numa espécie de ícone de beleza nos EUA”, explica a investigadora, que diz ter adorado a série de televisão. “Há uma recusa permanente da morte. As pessoas não conseguem confrontar-se com um corpo morto que parece morto. A maneira de se confrontarem é transformarem-no através do embalsamento, da maquilhagem.”
No funeral do pai, é Nate que entra em colisão com esta asseptização da morte. Quando lhe oferecem uma espécie de saleiro, com um pó que imita terra, para deitar em cima do caixão, ele apanha um punhado de terra, confrontando David, que representa ali a tradição: “Podes enchê-lo de químicos. Podes maquilhá-lo. Podes prepará-lo para uma sesta na sala de descanso, mas os factos continuam a ser o que são, David, o único pai que alguma vez vamos ter desapareceu! Para sempre… e é horrível, mas faz parte desta porra de vida e não é possível aceitá-lo sem sujares as mãos.”
Por esta altura, a crise já se instalou na família. Nate, que desde criança fugiu daquela realidade funerária, acaba por ficar a trabalhar como agente funerário com o irmão. Mas a sua personalidade vai influenciar o negócio.
“Começar a série com a morte do patriarca é um risco logo assumido. E que coloca em xeque a família, que compreende facilmente aqueles que tiveram uma perda, porque eles próprios estão a atravessar um período de perda”, defende José Duarte, professor de Cinema Norte-Americano e Cultura Popular na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), que fez a tese de mestrado sobre esta série e é investigador no Centro de Estudos Anglísticos. “Não me parece que tenha havido outra série a dar conta deste tema da mesma maneira e a tocar na ferida como esta tocou.”
E as mortes continuam, semanalmente: um jovem que morre durante um treino de rugby, uma mulher que apanha um choque eléctrico no banho, uma velhinha que morre num cabeleireiro, um rapaz que se suicida depois de matar várias pessoas num escritório, um bebé. Os Fisher vão aceitando os mais variados funerais, desde gangsters até estrelas porno, adaptando-se aos costumes de quem sofre. “Os Fisher estão preocupados em que cada morto tenha uma identidade particular”, observa José Duarte.
O pai (Richard Jenkins) não desaparece completamente da série, vai surgindo em diálogos com os filhos ou com a mulher, confrontando-os muitas vezes. Este é um outro aspecto marcante de Sete Palmos de Terra: os mortos surgem a falar com os vivos, interpelam as personagens, confrontam-nos com os seus medos.
“É uma ideia extremamente interessante. Nessa altura houve uma mudança de paradigma em relação ao luto”, diz ao PÚBLICO José Carlos Rocha, psicólogo especialista no luto e professor do Instituto Superior de Ciências da Saúde do Norte, pertencente à CESPU. “Enquanto durante muito tempo achávamos que tinha de haver um corte racional com as pessoas que perdemos. Hoje percebemos que essa relação continua. E a série colocou cá para fora o discurso quase interno das pessoas.”
Algumas das mortes, como diz José Duarte, “eram hilariantes”, como a senhora que apanha com um pedaço de “gelo azul” caído de um avião. Os episódios vão tendo momentos cómicos, que libertam a tensão de uma série que “traz à tona aquilo que está enterrado”, refere o investigador da FLUL. E até ao fim, até ao final do último episódio, o que se desenterra é a ideia que algures, no futuro, iremos morrer.
“Não me recordo de nenhuma série recente que tenha tocado de uma forma tão profunda nesta temática”, aponta José Carlos Rocha, referindo que ao longo das temporadas a série ruminava demasiado sobre a morte. “Isto traz várias confrontações com experiências que são dolorosas e há pessoas que preferem não reflectir nelas”, considera o psicólogo. “As pessoas não vêem esta série para não pensar sobre a vida.”
Até porque por trás está um medo muito velho. “O medo da morte sempre existiu na humanidade, é o último medo dos homens”, lembra Clara Saraiva. “Faz parte da vida, as pessoas gostam da vida e têm medo da morte, é normal.”
Ao longo dos cinco anos, a série ganhou vários prémios, incluindo um Emmy para Alan Ball. Para Jorge Mourinha, Sete Palmos de Terra foi importante porque “abriu um certo caminho para tratar de uma forma mais séria coisas que antes eram muito formatadas”, e dá o exemplo de Dexter, uma série policial em que o “herói” é um assassino em série, True Blood, também de Alan Ball, mas sobre vampiros, ou American Horror Story. Mas também não encontra nenhum substituto directo de Sete Palmos de Terra. Um ovni? “Completamente”, responde-nos. Continuamos, por isso, a olhar para a fogueira – com os Fisher.
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