Mulher ao mar, o retorno

1. Voltei a Portugal mas ainda não consegui decidir quem vai ser o protagonista desta crónica. A chinesa daquele restaurante clandestino no Intendente? A portuguesa (?) que continua parada no Intendente quando nós passamos a caminho dos restaurantes chineses clandestinos? O agricultor alentejano que me levou à casa onde vou morar a partir de Abril, 40 anos depois do PREC? O barman indiano do navio panamiano tripulado por italianos onde ontem o meu amigo gaúcho Paulo Scott se estreou como convidado do Festival Literário da Madeira? Ou o lobo marinho que hoje, a dois dias da Primavera, não cheguei a avistar no Porto Santo? Que praia, Porto Santo. Agora entendi aquilo do Novo Mundo.

2. E não estou a contar com o madeirense que 500 anos depois do Novo Mundo diz que só quer ir embora. Fez Erasmus, morou fora, a única coisa boa de voltar foi conhecer a namorada. Passaram a ser dois querendo partir, tão bonitos que ao longe ninguém diz, mas ao longe nunca ninguém diz, nem que seja o pior Inverno da nossa vida (Verão, se viermos do hemisfério sul). De resto, nenhum continental entenderá o que é ser ilhéu, comentou uma madeirense madura. Certo, pensei, mas será que um português alguma vez chega a ser continental?

3. Esta espécie de claustrofobia voltada para o mar: cá estou, de volta. Levaram-me, pois, ao tal chinês clandestino, um pequeno apartamento com os clientes espalhados por assoalhadas, o que faz mesmo lembrar restaurantes na China, incluindo a anfitriã continuar a falar chinês com os clientes portugueses, que vão aprendendo uns golpes guturais, para, por exemplo, pedirem cerveja. Fazia exactamente um ano que eu partira para a China, estar ali pareceu-me um sinal, não sei exactamente do quê, talvez de que o derradeiro Novo Mundo seja esta Lisboa com cerveja em chinês, depois de passar o talho halal.

4. Mas que vai pela cabeça da portuguesa (?) ainda encostada à parede do Intendente? Os clientes recém-chegados espantam os antigos? O negócio está a mudar de ramo ou só de bairro? E já agora, o que achará ela dos corações vermelhos da Joana Vasconcelos?

5. Alentejo: a luz, a luz. Para quem vem do Rio de Janeiro, a diferença vai além de Lisboa. Uma luz antes de ser queimada pelo sol, azul papel-de-seda, pontilhado branco nos olivais. No fim de uma carne grelhada que nada fica a dever aos pampas do Novo Mundo, chega o agricultor alentejano amigo. Aliás: amigo de um amigo que o sugeriu a uma amiga que mo voltou a sugerir, quase um círculo filosófico. Não a despropósito, porque estamos perante um leitor sazonal de Espinoza, repetente de Agamben e Deleuze, o que não o impede de se oferecer para trazer a enxada ao meu quintal. Nanoquintal, escrevi entretanto ao meu vizinho favorito dos pampas, lá no interior do Rio Grande do Sul, apenas o bastante para duas árvores, uma delas dando dióspiros, que no Brasil são caquis. Mal eu volte do Funchal, começo a reforma agrária.

6. O cais do Funchal é uma espécie de Intriga Internacional. Os convidados do Festival Literário foram chegando em procissão ao check in fronteiriço. Até alcançar o barman indiano, tive de entregar o meu passaporte, que dias antes já fora digitalizado. O cavalheiro que o recolheu preferiu não revelar a nacionalidade do navio. Quando lhe perguntei se era israelita, respondeu-me em cinco línguas sucessivamente. Nenhum israelita falaria estrangeiro com tão pouco sotaque, abandonei a minha tese. Lá dentro, era o Barco do Amor, incluindo cortinas drapeadas nas escotilhas. Não largámos âncora, tudo se passou a seco, e o barman indiano sabia tirar verdadeiros expressos. Vinha de Goa, mas os patrões eram italianos como se ouvia pelo inglês apoplético. O Scott conseguiu perceber toda a gente, mesmo os madeirenses.

7. A última vez que eu estivera na Madeira fora justamente há um ano, antes de partir para a China. O mar galgava as encostas, então, tempestade feroz. Desta vez era Primavera antes do tempo. O navio Lobo Marinho arrancou para o Porto Santo sem uma onda. Só passando a Ponta de São Lourenço vi espuma branca. Ne véspera tinha relido o final das Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão, ele termina com a Madeira. É um texto tão voluptuoso que até as árvores são espécies animais, até os perfumes são gordos. Vai ficando negro. O próprio Brandão é uma ilha desconhecida, como Ferreira de Castro: quem agora, aos 20 anos, os lê? Quem lê Brandão no Brasil? Scott anotou.

Foto
alexandra lucas coelho

8. Hoje era o dia para ir a Porto Santo, única chance. Portanto, fui e fiz aquele praião ida-e-volta para me libertar das toxinas de Fevereiro, um mês predador. Já não há Novo Mundo mas ainda há violência inédita, e gente que continua a olhar-se ao espelho apesar de tudo, o que vale da Crimeia ao Rio de Janeiro, e da praça ao quarto. Depois, sentada no muro, com uma plateia de lagartixas e pardais, li Mulher ao Mar Retorna, de Margarida Vale de Gato, costura de poemas ao longo de 100 páginas (com uma capa de António Poppe e Joana Fervença, a partir de um delicado alto-relevo em pedra) onde sublinhei coisas como esta:

[...] contra

a evidência de que entre dois

o mais violento não tem testemunhas.

Às vezes não há protagonista porque é preciso pulverizar a história, dividir o peso.     

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