Saindo de casa

1. Há uma qualidade no azul aqui, azul sobre branco com azul, que me faz lembrar as férias quando saio de casa. A minha casa é de desenho infantil, uma janela, uma porta, um gato na porta (quando o sol atravessa a rua e o gato da vizinha se muda para a minha). Eu saio, vinda do fresco, porque dentro de casa fazem menos uns 10 graus, e cá está o azul sobre branco com azul, quase incandescente. Parece que tenho sete anos e vou para a praia, é a luz das férias grandes. Mas estou tão longe da praia quanto de Lisboa.

2. A minha rua é íngreme, de calhau rolado como há séculos, como todas as ruas em volta. Em algumas esquinas vêem-se velhos tanques de pedra arrastados até onde houve força, ficam ali como canteiros, à espera que brote vida, pelo menos alguma urtiga. Em alguns pátios há cordas de roupa de viúva, 15 peças de roupa preta minuciosamente estendidas por uma silhueta, preta até ao lenço, contra a cal do muro. E logo por cima papoilas, essa alegria da cor no calor. 

3. Desço a minha rua dando os bons dias quando há gente à vista, uma vizinha a esfregar a entrada, outra lavando o pátio. Cheira a sabão, toca o sino, vem o microcão ladrar aos dois cães do meu quintal, empoleirados no muro. Eles ladram de volta, os grandes para o micro, o micro para os grandes, parece que nunca se viram. É o recreio da rua, que de resto dorme como se fosse noite. 

4. Chegando ao largo das palmeiras, costumo voltar à direita, para os lados da igreja, do jardim, do teatro, passar um outro largo onde muitas vezes há música pimba a sair de altifalantes. É o recreio de um grupo com trissomia 21, estão sentados debaixo de guarda-sóis cantarolando as canções e acenam-me quando passo.

5. Mas hoje é sábado, estou a sair para o mercado, ainda não lá fui desde que aqui moro, não tem calhado cá estar ao sábado, ou não tem calhado em geral. E já vou tão tarde que tenho até vergonha, fiquei a ler as aventuras dos índios nambiquaras até às tantas, mas cada noite é uma aventura, de modo que acordo tarde. Essa é uma grande diferença em relação ao Rio de Janeiro, onde mesmo que quisesse não conseguiria, lá os pássaros cantam mais alto, as pessoas falam mais alto, o mercado, que se chama feirinha, começa às quatro da manhã, e na feirinha as pessoas falam, cantam e ainda tocam. 

6. Pronto, vou dizer que é quase meio-dia quando chego ao mercado. Talvez por isso o primeiro mercador estranhe eu dizer bom-dia, ele que estará ali desde madrugada. Tem ervas secas, alecrins, rosmaninhos, por aí fora, mas eu vou em busca de frescos. Sou então atraída por umas alfaces gigantes, que ao lado têm compotas e azeites vários. Ora ao reconhecer o rótulo do meu amigo-agricultor-que-lê-Agamben, o Zé, levanto a cara a ver quem vende e cá está o filho dele, Jerónimo, que conheci com uma mão-cheia de poejos, lá nas terras deles, entre oliveiras e ovelhas, já aqui contei. Nunca vi alfaces tamanhas, tanto que não arranjamos onde caibam, rasga o Jerónimo um saco de papel para embrulhar a base, o que resulta, como ele diz, num belo buquê. E os ovos, são vossos?, pergunto. Ele responde que são do amigo ali ao lado, o amigo acrescenta que “são de umas galinhas que andam pra lá soltas”, portanto levo os ovos. Mais uma compota de abóbora cem por cento biológica, ou seja, de abóbora biológica e açúcar biológico (há outras mais baratas, mas o açúcar não é biológico). Quanto às azeitonas, são mesmo lá da terra do cordel do fogo encantado (a do Zé e do Jerónimo), o Jerónimo diz que ainda estão salgadas, dá-me a provar, eu acho que estão boas, levo um bocadinho. E como entretanto paguei a alface, a compota e os ovos, ele não me deixa pagar as azeitonas porque é só um bocadinho.

7. Assaltei a laranjeira dos meus vizinhos uma vez, eles disseram que eu podia, mas já não restam tantas laranjas assim, portanto preciso de comprar. Não é tão bom como trepar às árvores, mas em compensação conheço um agricultor das redondezas que não se chama Felício mas algo semelhante, e tem um neto de olhos verdes com um caderno e um lápis. Ora o agricultor que não se chama Felício tem, ainda a esta hora de mercado, duas caixas de laranjas para sumo a 0,25 cêntimos o quilo. Dá-me um saco para eu escolher à vontade, abrindo entretanto duas ou três para que eu veja como estão maduras mas não podres. Encho mais de três quilos e ele não aceita um euro. Que não, que são 75 cêntimos, e ficamos nisto, até que eu já estou a ir embora e ele diz, então leve esta alface. Uma pessoa no Alentejo não pára de brigar para pagar e está sempre a receber presentes. Tenho de provar que já tenho uma alface, o que é difícil, reparo agora, porque me esqueci dela no Jerónimo.

8. Recuperado o meu buquê, prossigo. Agora preciso de cenouras e ao perguntar à mercadora de onde são ela diz que do Ribatejo. Mas de um lugar mesmo aqui ao lado, esclarece um moço que tem um microfone na mão. É repórter da rádio local, anda a falar com os mercadores sobre assuntos sérios como o programa Quilómetro Zero, ou seja, quanto mais perto de nós o que comermos, melhor. E ainda compro pêssegos daqui mesmo e uns queijos de cabra de uma senhora que os vem deixar de madrugada. 

9. Bem sei que isto não pode ser só comida, crónica sim, crónica não, mas há uma  omnipresença da comida quando a gente sai da metrópole. Já que tenho estado a ler o Lévi-Strauss que não lia desde a faculdade (mais de 25 anos, faz muita diferença), partilho que com os índios nambiquaras também é assim, pensam em comida o tempo todo, na estação da colheita, na estação nómada, o homem caça, a mulher cata, vida boa é ter muita mandioca, para não ter de comer gafanhotos. Escrevi é, mas era, que tudo isto se passa nos anos 30 do Mato Grosso, onde entretanto o progresso chegou em forma de agronegócio (também faz diferença entretanto ter vivido no Brasil). Imagino Lévi-Strauss a chegar ao Mato Grosso de 2014, catastróficos trópicos. Mas para índios que conheci na Amazónia a comida é igualmente a grande actividade, além da sesta, da magia e do folguedo. Aqui onde moro estamos cercados por ela, seja em forma de hortelã que todos os dias dá chá ou de folha da abóbora que está quase a dar flor. É uma espécie de amor novo. 
E o jasmim brotou.

Foto
Alexandra Lucas Coelho

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