Pôr a vida em livro e ir a jogo

Um político a concurso tem biografia ou pensamento publicados. A oportunidade não é só política mas editorial, num país que despertou tarde para o género mas aderiu a ele.

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Ao contrário do que se passa em situações semelhantes, ele e o jornalista não se conheceram nos corredores da política. Não era cumplicidade que procurava, mas alguém capaz de fazer o que ele não sabia: estruturar um livro, dar-lhe corpo, adaptá-lo a uma linguagem capaz de atrair o maior número de leitores.

Nesta história não entra também ninguém do aparelho do partido a que pertence o político e que poderia tratar destas questões mais práticas. Ele não quer. Pretende desligar-se.

Nem entra, para já, nenhum editor. Essa figura irá surgir no fim do processo, quando o grosso do livro estiver completo. O nome do jornalista não há-de aparecer. Na história entra em cena sim um pouco da figura do ghostwriter, o “escritor negro”, como se dizia na gíria editorial, aquele que fica na sombra da escrita. Mais do que isso, foi pedido ao jornalista para fazer o papel que caberia a um editor. E não se fala de um político incapaz de dominar as regras da escrita, mas de alguém que precisa de uma direcção. O jornalista é ali uma espécie de consultor a quem não será preciso explicar o funcionamento dos bastidores da política. Com vasto currículo, ele conhece os nomes e a coreografia a que o grande público não tem acesso.

Ainda que sem nomes, esta é uma história exemplar do que se passa na edição quando o tema é a biografia política ou o chamado livro de pensamento político.

O político não foi ter com um editor. O editor não foi ter com o político. Onde se encontraram? Na percepção de que há um mercado e que ambos têm a ganhar se as regras do jogo forem percebidas por um e pelo outro. “Os livros sobre e de políticos, biográficos ou não, vendem”, diz uma editora que prefere o anonimato e que aceitou publicar o livro do político de que se fala quando ele já estava escrito. Foi o jornalista quem lhe falou do projecto. Ela aceitou antes de ter visto o texto. “Era um bom nome”, justifica. Ou seja, um nome que garantia, tanto quanto isso pode ser percebido: vendas. Muitas ou poucas é a permanente incógnita.

Em histórias como esta é comum não se dizer tudo, ou dizer-se quase nada. A editora terá uma palavra na estrutura final, no título, no modo como será produzida a capa e feita a distribuição. Depois será a promoção do costume, maior ou menor conforme o reconhecimento do político, ou seja, do valor da assinatura, e então é deixar o mercado actuar. O político não tem de saber da agenda do editor, o editor, por questões profissionais, saberá melhor a do político. Mas com maior ou menor grau de conhecimento mútuo, elas cruzam-se nesse momento. O político quer fazer passar uma mensagem, o editor quer que essa mensagem seja o mais visível já que isso se reflectirá, se tudo correr bem, em vendas.

Há dez anos, Portugal era um deserto no que se refere a biografias de políticos portugueses escritas por autores portugueses. Isso mudou. Num mercado editorial em crise, esta é, apesar de tudo, uma área onde são muitos os casos de sucesso.

Marcelo Rebelo de Sousa, José Sócrates, Mário Soares, Jorge Sampaio, Pedro Passos Coelho, António Guterres, António Costa, António José Seguro são políticos no activo com a sua vida biografada.
Salazar, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro, Marcelo Caetano, Francisco Sá Carneiro tiveram grande protagonismo num passado recente e já estão multiplamente tratados em biografia.

Os números não existem. Ou melhor, existem mas não estão tratados. É difícil saber quantas biografias se editam no mercado português e, mais difícil ainda, saber quantas, entre elas, entram na categoria de biografia política. Mais complicado é distinguir o que é uma memória, um livro de pensamento, de análise, uma reportagem sobre um determinado momento histórico ou onde há protagonistas e, nele, biografia. Uma visita a uma livraria é fácil para avaliar a confusão.

Uma biografia pode estar numa prateleira de Sociologia, de História, de Literatura. A catalogação é deficiente e o cruzamento de dados entre o que se publica no país e se vende raramente dá resultados conclusivos. Mas da conversa entre editores, livreiros e leitores, uma olhada pelo top dos últimos anos, dá para concluir que a biografia política ou o livro de actualidade política com um rosto na capa tem procura. Mas esta afirmação não vale para tudo. Há flops. E cada político é um caso. Vejam-se as singularidades para avaliar o todo.

Uma história breve

Ao contrário do que acontece nos países anglo-saxónicos ou em França, a biografia política não tem uma longa tradição em Portugal.

A história pessoal de quem tinha relevância na vida de um colectivo ficava para os livros de História ou dentro da academia, tratada de forma exaustiva e de modo pouco atractivo para o que se convencionou chamar de leitor comum. Ficava quase sempre limitada a quem já tinha morrido, não explorando quase nunca traços pessoais. A biografia de actualidade era quase inexistente até há… “Talvez uma década ou menos do que isso”, arrisca Sofia Monteiro, editora na Esfera dos Livros, actualmente uma chancela do grupo italiano Rizzoli, com experiência no mercado espanhol e que entrou em Portugal em Fevereiro de 2006. “Na altura, pertencíamos ao Grupo El Mundo e em Espanha publicávamos muitos livros na área da divulgação. Científica e, sobretudo histórica. Quando chegámos a Portugal começámos a definir colecções com base no mercado e nas oportunidades que havia para explorar, e desde logo detectámos a falta de biografia destinada a um público que não apenas o universitário”, conta Sofia Monteiro sobre o momento em que começaram a falar directamente com jornalistas a quem foram pedidos alguns trabalhos nestas áreas. “Parecia-nos impensável, por exemplo, que não houvesse nenhuma biografia do primeiro-ministro então em funções.”

Apareceu em Junho de 2008, assinada pela jornalista Eduarda Maio. O Menino de Ouro do PS, era uma biografia não autorizada de José Sócrates, mas da qual o então primeiro-ministro não se demarcou. Esteve mesmo presente no lançamento. Seria a primeira. Um ano depois, em 2009, outro jornalista, Rui Costa Pinto, publicava José Sócrates — O Homem e o Líder. Desta vez, o “não autorizado” surgia em destaque na apresentação de um livro que se anunciava como revelador sobre a vida de Sócrates desde 1995, ano em que assumiu pela primeira vez funções governativas.

Estávamos no princípio da biografia de grande divulgação sobre políticos no activo. “Nos anos oitenta e noventa esses livros eram praticamente inexistentes em Portugal. Havia preconceitos, uma dificuldade em abordar o privado dentro do público. Foi preciso perceber que a política não se faz só do colectivo mas dos indivíduos”, refere Francisco José Viegas, jornalista, escritor, editor da Quetzal. “Lembro-me de se dizer que esses livros não vendiam, e depois publicavam-se biografias do Frank Sinatra ou da Marilyn Monroe. Do ponto de vista editorial, a quebra da barreira entre o público e o privado é óptima, mas ainda há muito por fazer. Não são assim tantos os políticos com biografia.”

No final de 2013, o Brasil estava no auge de uma polémica à volta do público e do privado nas biografias, ou melhor, do que era liberdade de expressão e direito à privacidade. Em 2007, o músico Roberto Carlos conseguiu impedir a circulação de uma biografia sua, da autoria de Paulo César Araújo, editada pela Planeta. O argumento era abuso de privacidade. A Constituição prevê a liberdade de imprensa, mas há uma alínea do Código Civil, de 2002, que diz que qualquer biografia para ser publicada precisa de autorização do biografado. A associação de editores contestou e apelou ao Supremo Tribunal Federal para impedir que fosse necessária essa autorização — ou a dos herdeiros do biografado —, alegando que essa é censória. A reacção foi a criação de um movimento liderado por músicos da MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil, e presidido por Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano, que contestava a publicação de biografias não autorizadas e se manifestava contra uma alteração à lei feita em 2011, na sequência da queixa dos editores: passaria a ser permitido publicar uma biografia sem a autorização prévia do biografado. Foi o ressuscitar do que se considerava arquivado. As reacções têm-se repetido, com autores, editores e, sobretudo, artistas divididos.

Autorizada, não-autorizada e encomendada

Por cá a questão não se coloca. “Ainda bem”, sublinha mais uma vez Francisco José Viegas. Ao editor e ao autor aplica-se a lei que defende o bom nome, impede a invasão da privacidade ou a difamação, a tal Justiça de que falava Mário Magalhães. “A obrigação do autor, como a do editor, é a de verificar se os factos que está a relatar e a publicar são verdadeiros. Antes de mais, eu consideraria uma humilhação pessoal publicar factos errados sobre a vida de uma pessoa”, salienta Francisco José Viegas, acrescentando que é sempre preferível que não seja uma biografia não autorizada. “Claro que é mais arriscado publicar uma biografia de uma pessoa viva. Há riscos que têm de ser calculados e muito bem avaliados. Mas quando é feito em colaboração, tudo fica mais fácil. A independência mede-se pelo trabalho do jornalista e do editor. Eles devem ser o garante da qualidade do que é publicado”.

Este é um aspecto que divide quem escreve e quem publica. Joaquim Vieira começou a trabalhar em biografias com a publicação, em 2001, da Fotobiografia de Salazar, a primeira de 18 de uma colecção que dirigiu e se chamou Biografias do Século XX (Círculo de Leitores). O jornalista menciona os casos em que as biografias são encomendadas. Pelos biografados ou alguém por eles com interesse pessoal ou outro qualquer. “Nunca aceitaria escrever um livro nesses pressupostos”, declara.

“Ser não-autorizado é uma mais-valia. É um sinal de independência que vale para todas as biografias. A garantia de que não é um livro laudatório. Prefiro sempre, mesmo enquanto leitora, uma biografia não-autorizada”, refere, por sua vez, Zita Seabra, editora da Alêtheia, alguém com um passado muito ligado à política, primeiro no PCP e mais tarde no PSD, e que recentemente publicou a biografia de António Guterres, primeiro-ministro entre 1995 e 2002, António Guterres — Os Segredos do Poder. O autor? Adelino Cunha, jornalista. Guterres afastou-se do que sobre ele foi escrito nas 582 páginas e não faltou quem tivesse apresentado falhas factuais. Nada que impedisse, no entanto, a visibilidade do livro apresentado em cerimónia mediática com a presença do actual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

“É normal que um biografado não se reveja na biografia. Isso acrescenta valor em termos de mercado mas ele participou no livro, só que não foi feito por encomenda dele”, refere Zita Seabra, que pediu a Adelino Cunha para fazer este retrato político. “Os jornalistas são quem sabe melhor fazer estes trabalhos. Pelo rigor e pelo conhecimento, além de que não romanceiam”, acrescenta. Quanto ao facto de não ser uma biografia autorizada, “isso só acrescenta prestígio”, defende, colocando em contraponto aos livros elogiosos, escritos por quem já esteve num cargo político “e quer contar a sua versão”, ou os que são feitos a pedido do biografado. “Esses, os de memórias, quase sempre a fazer a defesa do protagonista, são fracassos editoriais”, afirma. O facto de ser sobre alguém ainda no activo, ou com expectativas de poder, pode alterar um pouco as coisas, mas a independência associada ao nome do autor é um dos elementos diferenciadores que todos sublinham. “Mas conta sobretudo se a pessoa ainda tiver futuro político. Isso é decisivo”, conclui Zita Seabra sobre os critérios editoriais. E faz uma pausa antes de um sublinhado: “Há que fazer aqui muitas distinções, uma é a biografia fotográfica. Não gosto. A fotobiografia tem pouco conteúdo e revela alguma preguiça.”

No mercado há menos de dois meses, António Guterres — Os Segredos do Poder foi reimpresso antes do Natal. “Os três mil exemplares que colocámos em livraria estão a chegar ao fim”, refere a editora. “Não é só uma biografia”, nota. Não raro é apresentar-se uma biografia como a história de uma época. Se ela for bem feita, documentada, será sempre isso. O momento no qual uma personagem vive e o meio ou os meios em que se movimenta. Uma teia de contactos que traça uma panorâmica. Sobre a recente biografia política do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a jornalista São José Almeida escreveu na edição do PÚBLICO de 1 de Dezembro passado: “É mais do que uma biografia, é um registo reflectido sobre uma época. Ora em traços largos, ora em pormenor.”

O modelo Soares

Neste contexto, um dos livros mais referidos e que terá servido de modelo a muitos que se seguiram, menos pela forma do que pela temática, foram os dois volumes de entrevistas de Maria João Avillez a Mário Soares, Soares, Ditadura e Revolução (Círculo de Leitores). Editado em 1996, o título é uma entrevista biográfica que conta o tempo de um país que coincidiu com a vida do protagonista. Autor e entrevistado colaboraram. Dezassete anos depois, em Fevereiro de 2013, Joaquim Vieira escreve Soares, Uma Vida, biografia não autorizada na qual Mário Soares colaborou em conversas com o jornalista, publicada pela Esfera dos Livros. “Como biógrafo não costumo interessar-me por pessoas vivas porque o trabalho fica incompleto. Avancei para a biografia de Soares por achar que ele tinha cumprido o seu projecto político. Parti desse pressuposto”, conta agora, lembrando como tudo começou: um contacto da editora depois de um trabalho que publicou na revista Grande Reportagem.

No caso das biografias, o procedimento é quase sempre esse. O editor contacta um jornalista. Foi assim também que Vítor Matos, jornalista da Sábado, chegou a Marcelo Rebelo de Sousa. Um telefonema da editora, Sofia Monteiro, para escrever uma biografia que nunca chegou a acontecer até chegar a esta. “A minha preocupação não foi a de saber se Marcelo Rebelo de Sousa iria ou não autorizar a biografia, mas sim o de perceber se podia contar com o seu testemunho para avançar para o trabalho. Isso era importante. Liguei-lhe e ele disponibilizou-se para colaborar”, refere Vítor Matos, muitas horas de conversa depois e também depois de muitos emails a pedir para esclarecer factos, dar pormenores, tirar dúvidas. “Ele respondia sempre. Eu enviava-lhe uma pergunta às três ou quatro da manhã e pouco depois tinha a resposta”.

Marcelo Rebelo de Sousa saiu em Novembro de 2013, quatro anos depois de iniciado o trabalho. O biografado não esteve no lançamento e nunca se pronunciou quanto ao conteúdo do livro. Continua sem o fazer numa altura em que, mais do que nunca, se apresenta, como refere Francisco José Viegas, “a concurso”. “Hoje ninguém vai a concurso sem uma biografia ou um livro de pensamento político”, salienta o editor que está a preparar um livro para este ano com António Costa. “Já tínhamos trabalhado juntos e acho que vale a pena continuar. Foi uma proposta nossa”, adiantou sobre um projecto que deverá conter um conjunto de pensamentos do actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa sobre o país. Para já a cortina não se levanta mais. O efeito surpresa conta. Percebe-se em todas as conversas sobre o que vem aí nesta área. As cautelas de biografados, possíveis biografados, candidatos a biografias. Não se comprometer, tornar-se independente de um livro. Mas não será difícil adivinhar que venha aí uma postura de estadista. António Costa surge repetidamente como hipotético candidato a um cargo mais ambicioso do que o da autarquia e o livro parece confirmar mais do que uma simples intenção.

São as agendas a acertarem-se. Mais uma vez. O livro de Marcelo Rebelo de Sousa, com ou sem o seu aval, continua a ser reeditado. “Vai na sexta edição”, adianta Sofia Monteiro que arrisca dizer que é bem possível que continue a vender, avance ele ou não para as presidenciais. “É o efeito mediático”, sublinha Joaquim Vieira para falar sobre o reconhecimento público. “Marcelo aparece todos os domingos em casa de milhares de pessoas há muitos anos”, salienta Francisco José Viegas, apresentando outro exemplo — desta vez não se trata de uma biografia, mas de um livro que pode ser confundido com isso. “Como se explica que um livro sobre tortura, como o de José Sócrates, tenha tido tanta visibilidade?” Fala de A Confiança no Mundo, Sobre a Tortura em Democracia, um ensaio que replica a tese de mestrado que o ex-primeiro-ministro apresentou na Sorbonne e publicado pela Verbo em Outubro passado. Duas semanas depois, ia na segunda edição, com dez mil exemplares distribuídos.

“Sócrates tem uma relação muito complicada com os portugueses. É o livro de um regresso. Ele tem adeptos. Há gente de uma enorme fidelidade, mas também há os ódios. Acho que acontecia o mesmo se houvesse agora uma biografia bem fundamentada de Passos Coelho. Se uma biografia tiver algo que possa exacerbar o ódio às pessoas, elas vão comprar nem que seja para alimentar esse ódio”, justifica Joaquim Vieira, que confessa não ter lido nenhum dos livros de que aqui se fala. Uns por falta de tempo, outros por falta de curiosidade. “Mas há algo que se pode concluir: apesar de haver uma desilusão com os políticos, as pessoas têm noção do quanto eles determinam a nossa vida. Basta ver que continuam a votar. O retrato de corpo inteiro faz a diferença e vem satisfazer uma curiosidade inata. É um fenómeno que não se explica porque está explicado por si.”

Vítor Matos diz-se a assistir a uma espécie de suspensão. Agora é um espectador. Terminou Marcelo Rebelo de Sousa numa altura em que sabe que o livro pode ser só uma primeira parte. “Se [Marcelo Rebelo de Sousa] chegar à Presidência da República esta será uma biografia incompleta. A experiência em Belém só por si valerá outro livro”, ri. É um dos tais riscos de quem escreve não apenas sobre uma personalidade ainda viva, mas sobre alguém que se espera vá ao tal “concurso”. Perdê-lo ou ganhá-lo serão duas histórias para contar. Enquanto a expectativa existir, o livro mantém a actualidade. É manterá. “Este livro também é a história de quem se cruzou com ele”, sublinha o jornalista que garante não ter recebido qualquer tipo de pressão enquanto escrevia. Nem de Marcelo Rebelo de Sousa nem de ninguém a ele ligado. “Nem nunca tive um pergunta mais indiscreta da sua parte”, diz.

Os jornalistas a fixar um tempo

Depois do livro só o silêncio. “Quando se faz um trabalho destes, fica sempre uma relação difícil entre o biógrafo e o biografado, se se quer actuar com independência”, admite Joaquim Vieira, enquanto fala do trabalho que fez sobre Mário Soares. “É alguém que quer fixar uma imagem, ter algum controlo nisso.” Refere-se a dois títulos, entre a memória e a autobiografia: Portugal Amordaçado (Lisboa, 1974) e Um Político Assume-se (Temas e Debates, 2005). “Sabe-se que ele é uma pessoa difícil de gerir. No início queria controlar, depois desistiu. A última conversa correu mal, foi sobre Macau e foi dura. É natural que ficasse preocupado. Mas disse-lhe que o texto era meu e não iria dá-lo para ele ler. Disse-lhe também que lhe dava para ler apenas o discurso directo. Era o que costumava fazer e mantive esse compromisso. Eu estava apreensivo, sempre quis que fosse uma biografia não autorizada, mas havia a questão das citações serem passadas a crivo. Avançou-se com a publicação. Ele surpreendeu-me pela abertura e pela tolerância.”

Joaquim Vieira, Vítor Matos, Adelino Cunha, mas também José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso, autor dos dois volumes sobre a vida de Jorge Sampaio (Jorge Sampaio, Uma Biografia, editado em 2012 pela Porto Editora) são jornalistas a escrever recentemente sobre a vida de políticos vivos. Sofia Monteiro concorda com a declaração de Zita Seabra quanto à capacidade dos jornalistas para fazerem este tipo de trabalho. “Conhecem os caminhos para chegar à informação. Além disso conhecem as regras, têm uma deontologia de trabalho, a percepção do que pode ou não ser feito, dos limites”, afirma Sofia Monteiro. Não se espera deles o mesmo que de um investigador. Todos distinguem, por exemplo, o trabalho que Pacheco Pereira está a fazer sobre Cunhal, uma biografia de que já saíram três volumes, publicada pela Temas e Debates e pelo Círculo de Leitores. O quarto está a ser escrito. “De um investigador esperam-se citações de fontes, muitas notas de rodapé. A leitura não é tão directa, mas muitas vezes pode-se confiar mais no rigor e na credibilidade do que é feito. Porque há tempo. Os livros feitos pelos jornalistas podem ter toda essa informação, o rigor, mas respondem melhor à saciedade da leitura. São mais imediatos. As editoras não têm muito tempo”, distingue Joaquim Vieira.

Tudo começa quase anonimamente, de forma meio secreta, mas as histórias vão ganhando nomes, rostos e é possível descobrir traços comuns, começar a fazer a história da biografia política em Portugal. “Nunca fui contactada por ninguém de nenhum partido ou de um político a pedir para ser biografado,” afirma Sofia Monteiro. “Pelo que sei, a iniciativa parte de nós. A minha experiência é essa”, conta Francisco José Viegas. “Não aceito encomendas”, repete Zita Seabra.

“O facto de quase todos os autores de biografias políticas serem jornalistas é uma extensão do próprio trabalho jornalístico. São pessoas que acompanham há muito tempo a vida de um partido, de uma personagem política. Têm mais e melhor acesso à informação, ao arquivo, movimentam-se bem entre as fontes, e sabem tratar os dados de forma rápida”, justifica Francisco José Viegas, responsável pela publicação em Portugal de livros na fronteira entre a biografia e o testemunho ou um programa político. Caso de Caminho Aberto (2012), onde António Costa reuniu textos sobre a sua intervenção política nos últimos vinte anos; ou de Compromissos para o Futuro, de António José Seguro, lançado durante a sua candidatura a líder do Partido Socialista, em 2011, e apresentado por Mário Soares. Mas o mais paradigmático de todos talvez tivesse sido, no entanto, Mudar, de Pedro Passos Coelho. Publicado no início de 2010, o livro projectou o ex-líder da JSD e na altura alguém fora da direcção partidária, para a liderança do PSD. Um par de meses depois, estava na presidência do Governo, derrotando José Sócrates e o PS nas legislativas de Junho de 2011. “Foi um livro que nos ultrapassou, aos editores”, comenta Francisco José Viegas, que seria então convidado para Secretário de Estado da Cultura, cargo do qual se demitiu em Outubro de 2012.

Nenhum destes três títulos pode ser apresentado como uma biografia, embora todos sejam para-biográficos: foto do autor da capa; ideias dos autores — no caso, para o país —, ou sobre a actualidade política. Isso vende. O tal reconhecimento e a conjugação de uma agenda política própria com uma avaliação do mercado editorial. Apesar do descrédito em que caíram os políticos e a política, as pessoas continuam interessadas em saber mais sobre quem as governa. É a percepção de quem edita. Mas a edição não é uma ciência exacta e os desaires podem acontecer. Menos políticos e mais editoriais. Não foi o caso. Com maior ou menor impacto, todos revelaram a sua oportunidade e anunciam-se algumas novidades numa área onde o segredo prevalece.

Francisco José Viegas é o único a abrir o jogo. Em 2014 vai editar um livro também com António Costa. Não é uma biografia, mas “as ideias de um político para o país.” António Costa apresenta-se estadista? Pois… A ideia partiu do editor e, sublinha o próprio, “a minha intenção nestes casos, como aconteceu com todos os livros de políticos ou sobre políticos que publiquei, é puramente comercial”, esclarece. Para que não se confundam agendas apesar de elas nunca andarem muito distintas. O político tem a sua, ao editor cabe ver até que ponto ela pode interessar ao mercado. Talvez por isso tenha sempre partido dele a ideia de cada um desses livros.

O desenrolar da história

Somos importadores atentos ao que se faz no mercado das referências. Uma consulta às páginas de livros de jornais como o Guardian ou o New York Times e à cabeça surgem biografias políticas. De Nelson Mandela, antes de mais. Recuperadas ou recentes a prometer contar tudo sobre a vida do Nobel da Paz de 1993, que foi Presidente da África do Sul, o homem que ajudou a abolir o apartheid, passou 27 anos preso e morreu no dia 5 do passado mês de Dezembro, aos 95 anos.

The Long Walk to Freedom (Um Longo Caminho para a Liberdade, da Planeta), a autobiografia assinada por Nelson Mandela, está no top da Amazon. Mandela, passados quase dois meses da sua morte, continua a ser um fenómeno global.
Muito menos popular, mais controversa, mas também desaparecida em 2013, Margareth Thatcher é nome que continua nos escaparates das livrarias, sobretudo em Inglaterra. Um título destaca-se: Margaret Thatcher: Not for Turning, o primeiro volume de uma biografia autorizada, 860 páginas escritas por Charles Moore, jornalista, ex-editor do Daily Telegraph, The Spectator e do jornal The Sunday Telegraph, que conta a vida da “Dama de Ferro” até à vitória inglesa no conflito com a Argentina sobre o domínio das Falklands, em 1982. Destaque ainda para Angela Merkel — The Authorized Biography, publicado nas vésperas da sua reeleição como chanceler da Alemanha, em Setembro passado, e assinado por Stefan Kornelius, jornalista, editor de política internacional do Süddeutsche Zeitung.

Ela actua na política actual. Há uma diferença. Os livros podem ser decisivos para o desenrolar da história. Distinguem-se dos que querem fixar memória e dos que são escritos a título póstumo. Têm um programa. Podem representar uma autarquia, um partido, e umas eleições legislativas ganhas. Terá sido pelo livro? Há perguntas a que nunca se saberá responder com exactidão. Mas há cenários onde o mais falível dos adivinhos acerta: a pouco mais de um ano de eleições presidenciais em Portugal irão aparecer autobiografias, biografias autorizadas ou não autorizadas, para-biografias de potenciais candidatos.

Em Portugal está a acontecer o que há muito vem acontecendo em países como França, Estados Unidos, Inglaterra, Brasil. Biografar politicamente é uma tendência. É difícil contabilizar as biografias de François Mitterrand, Nicolas Sarkozy, Hillary e Bill Clinton, Barack Obama, Tony Blair ou Lula da Silva. Elas ultrapassam as fronteiras do próprio país e, mais do que de uma figura, são reveladoras de uma época e de um programa para essa época.

Leia-se, a propósito, um texto publicado por Jill Abramson, directora do New York Times, em Novembro de 2012, numa recensão à biografia de Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos EUA e principal responsável pela Declaração de Independência e considerado o pai da democracia no país. O livro chama-se Thomas Jefferson: The Art of Power e é da autoria de Jon Meacham, ex-director da Newsweek, vencedor de um Pulitzer, actualmente editor na Random House, uma das maiores casas de livros do mundo. Escreve Abramson que as biografias políticas mais populares revelam menos sobre os seus protagonistas do que sobre o tempo em que esses livros foram publicados. E dá exemplos: Profiles in Courage, de John F. Kennedy, ganhou o Pulitzer em 1957, mas o que ficou dele foi a imagem de uma espécie de documento de campanha que preparou a ascensão do senador Kennedy à presidência. Tal como The Age of Jackson, de Arthur M. Schlesinger Jr., publicado em 1945, o ano da morte de Franklin D. Roosevelt, onde Andrew Jackson surge como o “corajoso” pai do New Deal. Mais um para a montra Pulitzer.

“Actualmente, os historiadores presidenciais têm recuado ainda mais na investigação, indo aos fundadores [da América], à procura de lições úteis para o debate actual ou [tentando] reexaminar essas personagens e a sua capacidade de liderança de modo a tentar clarificar as nossas próprias preocupações”, escreve Meacham antes de apresentar o “clube” ou escola a que pertence este The Age of Jackson, a Flawed Giant School, uma corrente formada por jornalistas que se tornaram historiadores, a que ele pertence, e a que se juntam nomes como Walter Isaacson, biógrafo de Benjamin Franklin, Evan Thomas, que tem escrito sobre Robert F. Kennedy e Dwight Eisenhower ou Jonathan Alter, sobre Roosevelt e o New Deal. O que os caracteriza? Centram-se em grandes protagonistas da História, apresentando-os nas suas fraquezas, no lado menos heróico e mais frágil, remetendo para o descrédito e a “falta de fé” de que são alvo os actuais dirigentes (no caso) da nação.

Mais uma vez, são os protagonistas à imagem da época em que é escrito o livros das vidas deles. Que época é esta?

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