O essencial da Operação Marquês
No dia em que passa um ano sobre a detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates, o PÚBLICO faz um balanço do caso, elencando as figuras que foram constituídas arguidas no processo até agora, os crimes em causa e as questões para as quais as investigação já conseguiu encontrar respostas. São também abordadas as suspeitas que continuam em aberto mais de dois anos após o inquérito-crime ter sido instaurado. A investigação a Sócrates começou já em 2013.
Os arguidos
Os nomes, os crimes e as medidas de coacção
José Sócrates
Ex-primeiro-ministro
Foi detido na noite de 21 de Novembro de 2014 no Aeroporto de Lisboa quando regressava de Paris. Ficou depois em prisão preventiva, na cadeia de Évora, entre 24 de Novembro e 4 de Setembro, altura em que regressou a casa em prisão domiciliária vigiado pela PSP. Foi libertado a 16 de Outubro, ficando proibido de sair do país e de contactar outros arguidos do processo. A investigação imputa-lhe crimes de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção passiva para acto ilícito.
Carlos Santos Silva
Empresário
Foi detido a 20 de Novembro de 2014. Esteve em prisão preventiva até 26 de Maio de 2015, altura em que passou a estar em prisão domiciliária. Foi libertado a 16 de Outubro, ficando proibido de sair do país e de contactar outros arguidos do processo. Está indiciado por fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção.
Joaquim Barroca Rodrigues
Vice-presidente do grupo Lena
Foi detido a 22 de Abril de 2015. Está em liberdade depois de ter prestado uma caução de 400 mil euros. Esteve em prisão preventiva no Hospital-Prisão de Caxias, tendo regressado a casa em prisão domiciliária até 23 de Julho. Indiciado por corrupção activa, branqueamento de capitais e fraude fiscal agravada.
Gonçalo Ferreira
Advogado
Detido a 20 de Novembro de 2014. Actualmente em liberdade, mas proibido de contactar os outros arguidos, de viajar para o estrangeiro e com obrigação de se apresentar duas vezes por semana no DCIAP. Indiciado por fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.
João Perna
Ex-motorista de José Sócrates
Detido a 20 de Novembro de 2014. Esteve em prisão preventiva entre 24 de Novembro e 23 de Dezembro de 2014 e em prisão domiciliária até 24 de Fevereiro de 2015. Agora está obrigado a apresentações periódicas na polícia. Indiciado por fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e detenção de arma proibida.
Armando Vara
Ex-ministro
Detido a 10 de Julho de 2015. Em prisão domiciliária de 15 de Julho a 16 de Outubro de 2015. Foi entretanto libertado mediante a prestação de uma caução de 300 mil euros. Está indiciado por corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Paulo Lalanda e Castro
Administrador da farmacêutica Octapharma
Sujeito a termo de identidade e residência. Indiciado por fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Inês Pontes do Rosário
Mulher de Carlos Santos Silva
Sujeita a termo de identidade e residência. Indiciada por branqueamento de capitais.
Diogo Gaspar Ferreira
Presidente do grupo que gere o empreendimento de Vale do Lobo
Sujeito a termo de identidade e residência.
Oceano Clube
Empresa que integra o empreendimento de Vale do Lobo
Rui Mão de Ferro
Empresário
Sujeito a termo de identidade e residência. Sócio de Carlos Santos Silva em várias empresas. Suspeita-se de que seria um dos testas de ferro do amigo de Sócrates, surgindo associado a vários negócios e à compra de grandes quantidades do livro com a tese de Sócrates sobre a tortura nas democracias.
Bárbara Vara
Filha de Armando Vara
Sujeita a termo de identidade e residência. Indiciada por fraude fiscal e branqueamento de capitais, terá sido cúmplice do pai, Armando Vara, na ocultação às finanças, entre 2006 e 2008, de mais de dois milhões de euros, através de uma intrincada rede de offshores e de inúmeras transferências bancárias.
Outros suspeitos
José Bernardo Pinto de Sousa
Ausente no estrangeiro, o primo de José Sócrates já antes referenciado no processo Freeport volta a aparecer neste caso. É o beneficiário de várias off-shores que transferiram montantes avultados para Carlos Santos Silva alguns dos quais passaram pelas contas de Joaquim Barroca.
Hélder Bataglia
Empresário administrador da ESCOM
Ausente no estrangeiro sendo alvo de um mandado internacional de captura. Controla várias sociedades offshore que terão transferido 12 milhões de euros no total para a contas de Joaquim Barroca, verbas que entretanto chegaram às contas Carlos Santos Silva.
O que está a ser investigado?
No centro da investigação estão os mais de 23 milhões de euros reunidos pelo amigo de infância de José Sócrates, Carlos Santos Silva, na Suíça e que este transferiu para Portugal, uma pequena parte em 2004 e a esmagadora maioria em 2010 e 2011. Nessa altura, o dinheiro foi declarado por Santos Silva a nível fiscal no âmbito dos Regimes Excepcionais de Regularização Tributária I e II. O Ministério Público tem estado a seguir o circuito do dinheiro reunido na Suíça e acredita que os milhões são na realidade de José Sócrates.
O facto de haver uma conta específica no BES - igualmente em nome de Santos Silva - que, quando o empresário assumia despesas em nome de Sócrates a partir de outras contas, compensava aqueles gastos é um dos argumentos usados pelo Ministério Público. A facilidade com que o ex-primeiro-ministro dispunha das verbas alheias fosse para pagar férias, despesas correntes, ou ter à sua disposição uma casa em Paris; a forma imperativa como pedia dinheiro ao amigo, sempre de forma camuflada como “fotocópias” ou “documentos” e as inúmeras entregas em dinheiro vivo que terão ocorrido recorrendo, muitas vezes, a intermediários são outras justificações apresentadas pelos procuradores.
Inicialmente o Ministério Público apontava as suspeitas de corrupção apenas para o grupo Lena, defendendo que vários milhões que chegaram às contas da Suíça eram a contrapartida pela intervenção de Sócrates, enquanto responsável político, no desenvolvimento dos negócios daquele grupo, nomeadamente a construção de casas pré-fabricadas na Venezuela, as concessões rodoviárias, o projecto do TGV e as obras do Parque Escolar.
Já este ano, a investigação conseguiu encontrar aquilo que considera ser a origem do dinheiro, mantendo as suspeitas de corrupção ligadas apenas a 2,9 milhões de euros que tiveram origem no grupo Lena e passaram pela conta do administrador do grupo, Joaquim Barroca. O facto de se ter descoberto que 12 milhões de euros que também passaram por aquelas contas terem tido origem em offshores controladas por Helder Batáglia, administrador da ESCOM, uma empresa do Grupo Espírito Santo, abriu uma nova frente de suspeitas, relacionadas com o empreendimento de Vale de Lobo, no Algarve.
Como Sócrates tentou evitar a detenção?
Sócrates estava em Paris quando o Ministério Público lançou a Operação Marquês, a 20 de Novembro do ano passado. Devia ter regressado nesse dia, mas adiara o regresso à última hora. Nessa noite foi detido o seu motorista, o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva e um colaborador deste, Gonçalo Trindade Ferreira.
A casa da sua ex-mulher e a residência e os escritórios do seu amigo foram alvos de buscas. Isso mesmo chegou ao conhecimento de Sócrates através de um telefonema do seu filho mais velho e também através de um encontro, nesse mesmo dia em Paris, com o administrador da Octapharma, Paulo Lalanda e Castro, que contratara Sócrates como consultor daquela multinacional. Isso mesmo é referido pelo juiz Carlos Alexandre no despacho que determina a prisão preventiva de Sócrates.
O magistrado escreve ainda que entre a noite de 20 de Novembro e a manhã de 21, o advogado João Araújo, que assistira às buscas em casa da ex-mulher de Sócrates, se desloca a Paris para se encontrar com o ex-primeiro-ministro, dando-lhe conta do teor dos mandados de busca e detenção já cumpridos.
Foi de Paris que João Araújo telefonou para Amadeu Guerra, director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, onde corre o inquérito, a manifestar a disponibilidade de Sócrates para ser ouvido a partir das 22h30 desse mesmo dia, numa estratégia que visava claramente evitar a detenção. Contudo, o email que Araújo mandou a formalizar essa disponibilidade só chegou aos servidores do Ministério Público uns dias mais tarde, já Sócrates estava preso preventivamente.
A polémica do email deu aso a várias diligências feitas pelo Ministério Público junto do operador que assegura a transmissão de dados, tendo este concluído que o atraso do email se deveu a problemas na transmissão do mesmo, possivelmente devido ao facto de ser sido enviado de Paris. O operador garante que o email entrou no seu servidor já com o tal atraso e foi imediatamente emitido para o email do DCIAP.
Que argumentos fundamentaram a prisão preventiva de Sócrates?
O desaparecimento do computador portátil de Sócrates e de duas pens que estavam na sua casa, em Lisboa, foram um dos principais argumentos usados pelo Ministério Público para demonstrar o perigo de Sócrates perturbar o inquérito, ocultando ou fazendo desaparecer provas ou criando artificialmente outras. Confrontado com esse facto durante o interrogatório, a defesa de Sócrates ajudou a localizar o portátil que, segundo alegou, a mãe de Sócrates teria mandado a empregada retirar da casa do ex-primeiro-ministro.
O computador e os dispositivos para armazenar informação digital acabaram por ir parar ao andar de um vizinho, onde a mesma empregada também trabalhava. O procurador argumentou ainda que Sócrates dispunha de meios financeiros e conhecimentos que lhe permitiam viver confortavelmente num país da América do Sul, sublinhando que havia uma viagem para o Brasil prevista para 24 de Novembro.
Havia, por isso, perigo de fuga e de perturbação do inquérito, riscos então validados pelo juiz Carlos Alexandre. Mais tarde, na revisão das medidas de coacção, foram acrescentados outros argumentos. É relatado um outro episódio relacionado uns quadros que terão desaparecido da casa de Sócrates.
As obras estariam ali no momento das buscas, mas quando a investigação encontrou provas que essas pinturas, no valor de 197 mil euros, tinham sido pagas por Santos Silva já não encontrou os quadros em casa de Sócrates. Foram localizadas em casa da empregada da mãe. Buscas feitas em Janeiro deste ano ao Hotel Sheraton Pine Cliffs, em Albufeira, onde Sócrates costumava passar férias, permitiram perceber que as estadias eram pagas em dinheiro apesar de, por vezes, chegarem aos 10 mil euros. Um facto que para o MP mostra a tentativa de esconder a origem dos fundos usados por Sócrates.
O Ministério Público fez questão de juntar ao processo as declarações de duas das inspectoras que acompanharam as buscas a casa de Sócrates a 22 de Novembro e atestaram que o ex-primeiro-ministro dissera a ambas que o seu portátil tinha ficado em Paris.
Porque foi Sócrates para casa e depois libertado?
Mais de nove meses após a detenção, o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, regressou a casa no início da noite de 4 de Setembro. Não fruto dos recursos, que foram sendo quase todos indeferidos, mas porque o juiz Carlos Alexandre decidiu alterar a medida de coacção de prisão preventiva para a prisão domiciliária, considerando que, nesta altura, estava diminuído o perigo de Sócrates vir a perturbar o inquérito.
Foi o procurador Rosário Teixeira quem propôs o regresso de Sócrates a casa, a uns dias do prazo máximo para revalidar a medida de coacção preventiva. Apesar de deixar Sócrates sair da cadeia, o Ministério Público invocou a existência de perigo de fuga, com o qual Carlos Alexandre não concordou.
Como Sócrates tinha vendido o seu apartamento na Rua Braamcamp, em Lisboa, foi para uma casa da sua ex-mulher, na rua Abade Faria, também na capital. A 16 de Outubro, Sócrates conseguiu a liberdade.
Ficou apenas proibido de sair de Portugal "sem prévia autorização" e de contactar outros arguidos. A nota da PGR acrescenta que o Ministério Público considerava "que se mostram consolidados os indícios recolhidos nos autos" logo, nesta fase da investigação, "diminuiu a susceptibilidade de perturbação da recolha e da conservação da prova".
Quais serão os próximos passos da investigação?
O prazo máximo do inquérito, ainda que indicativo, já foi ultrapassado. Por isso, seria expectável que o fim da investigação estivesse para breve. Contudo, posições assumidas por quem investiga o caso não parecem indicar isso. Paulo Silva, o coordenador da equipa de inspectores das Finanças destacada para o caso, expressou há semanas o seu desagrado face a uma orientação da “estrutura do Ministério Público” de que o processo deveria ser dividido em vários pequenos inquéritos para que a sua conclusão avance mais depressa e sejam deduzidas acusações.
O inspetor constata que só em Junho passado foram colocados à disposição da investigação os meios materiais para analisar os documentos e os mais de cinco milhões de ficheiros informáticos, noticiou o Diário de Notícias. E diz que só seria possível concluir a investigação durante o próximo ano. Na sequência desta informação, o procurador Rosário Teixeira pediu ao director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) que autorizasse o prolongamento da investigação.
Alegou que ainda há muito trabalho pela frente, já que ainda têm que ser ouvidas 20 testemunhas, lidos mil documentos e analisados 5.540.127 ficheiros informáticos, noticia o Observador. O director do DCIAP deu 30 dias a Rosário Teixeira para entregar um relatório com tudo o que existe contra os arguidos, bem como o que falta fazer na investigação.
Além de consolidar as suspeitas de corrupção, sustentadas praticamente em deduções feitas a partir dos fluxos financeiros detectados, o Ministério Público deverá aprofundar uma linha de investigação com pouco mais de dois meses.
Em Setembro passado, o Ministério Público começou a investigar o fracasso da OPA que a Sonae (grupo proprietário do PÚBLICO) fez sobre a PT, lançada em Fevereiro de 2006. A investigação quer perceber o papel da Caixa Geral de Depósitos, accionista da PT, no caso, já que Vara era administrador da operadora de telecomunicações em representação do banco público.