O amor não será pronunciado morto

I

Havia mais fragilidade naquela noite. Não se via ninguém na rua. À meia-noite de 25 de Dezembro já as luzes das casas se apagavam e o escuro engolia o calor das janelas felizes.

Ela fechou a capela com a chave. Alguém poderia entrar, desajeitá-lo. O pai estava morto havia exactamente um dia e, no entanto, chegando a casa depois do curto caminho, ele vivia.

O único fantasma pairando nas noites que se seguiram, noites às quais se tinha convencionado chamar de festas qualquer que fosse a ocasião de cada um, era o de uma menina. Reconhecia-a.

II

Antes disso, foi ele um menino. Conseguia imaginá-lo: grande demais, largo sem ser gordo, as orelhas um pouco cómicas e os olhos redondos de olhar afectuoso.

Vinha caminhando pela estrada, estava perto do rio, e quando deu conta, estava junto da cobra. Era comprida, para a idade dele era desmesurada. A cobra deitou-lhe a língua de fora.

Conseguiu correr, mas quando chegou a casa tinha a língua presa e as palavras custavam a sair.

III

- O quê, pai?

viu o menino por instantes, e isso assustou-a um pouco

- pai, o que disseste?

lembrou-se da gaguez que aparecia de vez em quando ao pai como uma má memória de infância, mas aquela meninice parecia-lhe diferente e perigosa. Ela estava na cozinha, largou o que fazia, veio junto dele

- pai, o que tens?

- Não tenho nada

respondeu, recomposto. O irmão disse-lhe

- o pai está bem, preocupas-te demais

mas nos dias que se seguiram, a gaguez instalou-se e o pai foi deixando de falar. Quando, subindo um dia ao quarto, o pai gesticulou, desesperado

- pai, tenha calma, explique devagar

as palavras ele já nem as conseguia escrever no papel que ela foi buscar apressada e a tudo o que ela perguntou

- é isto? Aquilo?

ele acenava um

- não

era a única palavra que ficava clara e ela nunca soube o que é que o pai lhe quis dizer. Essas palavras que não entendeu foram as suas últimas. Ela fez-lhe a barba, lavou-o, vestiu-o. O pai já não saiu para o hospital pelo próprio pé. Os bombeiros transportaram como um problema aquele porte que tinha sido imponente e vantajoso toda a vida. Parecia-lhe então importante falar com a mãe

- mãe? O pai vai ficar internado, mãe

e a mãe despediu-se dele. Sentada direita no sofá, a mãe viu-o ser levado, esticado sobre a maca, pelas portas envidraçadas da sala de estar, e não tornou a perguntar

- o pai, como está?

e a mãe não voltou a vê-lo, nem morto. Foi a mãe que naqueles últimos dias foi preparando o Natal, a comida - doces, apenas as rabanadas, mas o polvo e o bacalhau à moda de Viana do Castelo, frito em azeite, como se o pai pudesse ainda apreciar a ceia, fazendo gosto na tradição de família do norte. A casa estava enfeitada de cima a baixo havia muito, tentando conjurar os desejos mais bonitos para todos.

No hospital uns raminhos de plástico e umas bolas vermelhas enfeitavam as enfermarias sem ofender a doença ou a solidão dos velhos sem família. A privacidade era a de uma cortina que se abria e fechava ao lado da cama. Embora não falasse, o pai não tinha desaparecido

- pai, ouves-me?

e naquele silêncio onde se escuta o arfar dos doentes, ela continuou dizendo que o amava muito e que

- estou aqui

e talvez

- és o melhor pai do mundo

dito com a maior sinceridade, com a maior sinceridade podia ter dito

- és o melhor homem do mundo

e continuou a falar, qualquer palavra que fosse, o importante era o tom e a sua mão acompanhando o som, e então, nesse mesmo silêncio, onde muito ao longe se ouviriam programas histéricos de televisão, o pai deu mostras de que a escutava, e ela, vendo o rosto dele molhar-se, não disse mais nada.

Na véspera de Natal, ele cuspiu sangue, uma coisa de mártir, que ela tentou apanhar com lenços de papel. Vieram os médicos e os enfermeiros, fecharam as cortinas, voltaram a abrir, e um médico apontando para o pai, já composto como se não se tivesse passado nada de grotesco, baixinho

- está por horas

disse

- não há nada a fazer

acrescentou

- ele vai ficar tranquilo aqui. Vá para casa

disse, e ela ficou mais algum tempo prolongando o período da visita, e depois foi. Em casa, as horas passavam uma a uma. À mesa de Natal, ela trocava olhares com o marido; com o resto da família dissimulava a espera. À hora em que aconteceu alguém terá dito “morreu”, que pode ou não ter sido a mesma pessoa que terá escrito “morreu às zero horas e um minuto”, que pode ou não ter sido a mesma pessoa que lhe telefonou, depois de a deixar passar a consoada, na manhã de dia de Natal, dizendo que o pai já não era o pai.

Se alguém lhe tivesse dito, naquele dia de natal, que noutro sítio do hospital com certeza um bebé teria nascido à mesma hora, de 24 para 25 de Dezembro, tal e qual o menino Jesus, isso não a teria consolado. Não a consolava a naturalidade de tudo aquilo, de o pai ter 85 anos e finalmente provar que era mortal, nem a consolava a religião. Se aquilo era um deus: há tantos milhões de anos sempre o mesmo; os homens, em muito menos tempo, tinham enfrentado melhor a morte. Também não a atormentava a coincidência do momento da morte. A única coisa que lhe fazia diferença era a ideia de que o amor não podia ser pronunciado morto às zero-zero-horas-zero-um-minutos de 24 para 25 de Dezembro

- o amor é.

IV

Os Natais no número 37 da Rua da Sociedade Farmacêutica, onde cresceu, eram exuberantes. Apareciam ainda mais amigos do que no resto do ano; o pai, último de 12 filhos, gostava de ter a casa cheia. Tinha um negócio de automóveis e assentava-lhe bem conhecer muita gente. Ele próprio gostava de conduzir e tinha em tempos feito corridas em carros que ela conhecia apenas das fotografias. Quando ela nasceu ele já tinha 41 anos mas nunca lhe pareceria velho. Era também condutor dos bombeiros voluntários de Lisboa e existia no apartamento um telefone ligado directamente ao quartel que sempre esperavam que não tocasse durante o Natal.

Naquele tempo, todos os vizinhos se conheciam, frequentavam-se, era um prédio de uma burguesia confortável mas não demasiado pretensiosa, e ela gostava especialmente de convidar na altura do Natal, para retribuir os convites de Hanukkah, a amiga judia da família de refugiados da Alemanha.

Nem quando o pai quase perdeu o negócio, o Natal perdeu o brilho. Havia uma ligação entre a alegria e a beleza e também entre a ternura e a beleza que o pai lhe mostrava e que ela via principalmente nas noites felizes de festa.

V

Pareceu-lhe evidente então o que tinha anteriormente apenas ouvido dizer: que só se passava a ser inteiramente adulto depois dos pais morrerem. Era, portanto, evidente que aquela menina, que a acompanhava ainda, desapareceria rapidamente depois daquele natal.

Na noite de 25 de Dezembro, a sua mãe e a sua filha ficaram em casa, e vieram vários amigos fazer companhia, a ela e ao marido, no velório. Deram abraços. Conversaram sussurrando.

Quando deixou o pai fechado na capela e começou a empreender a custo o curto caminho para casa, não lhe ocorria já que era Natal. E demorou algum tempo a perceber como as perdas eram egoístas, como o sofrimento mudava tudo, e que se tinha esquecido, como era hábito naqueles dias, de pensar nos outros.

Esta é a história do Natal de 91 de Manuela Bettencourt. Foi contada na sala da casa onde vive com o marido em São João do Estoril e onde os pais viveram até morrer. A mãe morreu três anos depois do pai.

Numa mesa com várias fotografias, vê-se Manuela mais nova, magra e alta, de cabelo escuro. Numa delas vê-se bem o pai, já completamente careca mas parecendo ainda um homem forte. Atrás, no sítio onde ele costumava ler numa poltrona de pele, agora não há sequer um lugar para sentar.

Na sala há uma árvore de Natal encantadora e, sobre a lareira, alguns pais natais pintados por ela mesma. Voltou a fazer decorações de Natal depois de a sua neta nascer.