“Poucochinho”, “refugiado”, “medalhas” e “Marte” foram palavras do ano do PÚBLICO

Recuperámos a palavra “poucochinho” quando o PS perdeu as eleições, descodificámos “refugiado” lembrando que “fugir da guerra não é (simplesmente) emigrar”, falámos de “medalhas” pelo bom desempenho de Portugal nos Jogos Europeus e escrevemos sobre “Marte” quando se lhe descobriu o “mar”.

Seguem-se as palavras divulgadas semanalmente na Revista 2 durante o ano de 2015. Começamos pelo fim e com o “fim”.

Dezembro

Dia 27 Fim

Um objectivo e um desfecho

“Momento último ou parte final de alguma coisa”, regista o dicionário para explicar o primeiro significado de “fim”. Seguem-se dois sinónimos: “termo” e “final”. Mais adiante, fala-se em “desenlace”, “remate”, “desfecho”. E dá-se um exemplo: “O Apocalipse, livro da Bíblia, fala-nos do fim dos tempos.”

Na semana que passou, houve pelo menos dois “fins” a assinalar, embora de natureza bastante diferente: o “fim” do Outono e o “fim” do bipartidarismo em Espanha.

O solstício de Inverno ocorreu “no dia 22 de Dezembro às 04h 48m”, de acordo com o Observatório Astronómico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Este instante marca o início do Inverno no hemisfério norte, estação mais fria do ano”, explicam no site.

Sobre as eleições em Espanha, escreveu-se no editorial do PÚBLICO: “Só em Janeiro teremos uma resposta sobre como vai o sistema político espanhol reinventar-se perante os resultados das eleições de domingo. O bipartidarismo acabou e há hoje um novo desenho, que ainda não sabemos como ficará.”

 “Fim” também significa “objectivo” e “finalidade”. São várias as expressões que integram aquela palavra: “ao fim e ao cabo” (afinal); “a fim de” (com o objectivo de); “por fim” (por último); “no fim de contas” (na realidade); “pôr fim a” (acabar com alguma coisa).

O “fim” do ano aproxima-se e o “fim” da Revista 2 já chegou. Esta é a última edição. Obrigada por ter estado desse lado das páginas (e do ecrã).

Dia 20 Banco (take 2)

Já vimos este filme

Desde 2011 que andamos a evitar repetir “palavras da semana”, ainda que a actualidade teime em “repor” temas e dramas. Desta vez aceitámos regressar ao “banco”. Decifrámo-lo na edição de 6 de Abril de 2014, sob o título “Instituição bancária e assento dos réus”. O banco era outro, era o BPN, mas podia ser o BES. Agora, é o Banif que justifica nova consulta ao dicionário e ao noticiário, já que as suas acções perderam na segunda-feira mais de 40% na bolsa de Lisboa, mas na quinta-feira subiram 45,45%. E a CMVM suspendeu a negociação por perigo de especulação.

“Banco” é uma “instituição financeira cuja actividade principal consiste em receber depósitos e conceder créditos”. Lembremos os protagonistas de então: Cavaco Silva, Dias Loureiro, primeiros-ministros e ministros das Finanças desde Durão Barroso até Teixeira dos Santos e Vítor Constâncio. Protagonistas por omissão, incompetência e competência, mas na dissimulação dos problemas da banca.

Com o BES, o processo e o resultado não diferiram muito. Hoje, o banco em crise é outro e os responsáveis também, os lesados serão os mesmos: os contribuintes. Já vimos este filme.

António Costa aprendeu depressa a ser primeiro-ministro e a sossegar uma parte do povo — os depositantes do Banif “não têm ameaçado um cêntimo” — e a lamentar a sorte da outra — “infelizmente, esta garantia que podemos dar aos depositantes não é a mesma que podemos dar aos contribuintes”.

Prometeu um “novo desenho institucional” para o Banco de Portugal “responder às necessidades de intervenção”. E sossegou (ou calou) mais um contribuinte: Catarina Martins, sua aliada do BE.

Dia 13 Inveja

Um sentimento muito feio

“Despeito e frustração por querer e não ter os bens, as vantagens ou os sucessos alheios”, assim se define “inveja”, que o Boss AC lembra, cantando, ser “um sentimento muito feio”.

Cavaco Silva sentiu-a durante a semana e disse-o: “Nós invejamos a taxa de crescimento económico que recentemente a Irlanda tem vindo a alcançar. Quando ouvimos falar em 5 ou 6 por cento de crescimento económico, não há país na União Europeia que não tenha inveja da Irlanda.” Falava na conferência de imprensa conjunta com Michael Higgins, Presidente da República da Irlanda, no Palácio de Belém, na quarta-feira.

Certamente, não estaria a “morder-se” ou a “roer-se de inveja”, isto é, “furioso e desesperado por não suportar o sucesso de alguém”, mas talvez padecesse do “desejo de posse de algo considerado bom ou vantajoso” ou gostasse “de usufruir de uma situação semelhante à de outrem”.

“Inveja” e “cobiça” são sinónimos, mas também se pode entender por “admiração”. Queremos acreditar que era este último o sentimento que o Presidente português desejava transmitir ao chefe de Estado que o visitava. Preferíamos antes que tivesse “invejado” o desafio proposto por Higgins, o de “desacelerar as injustiças sociais”, e não se concentrasse apenas no PIB.

Canta o Boss AC: “A inveja é um sentimento muito feio/ Mete na cabeça que não ’tou aqui a competir num torneio/ Não é andar aos empurrões para ver quem chega primeiro.” Vale para a política e para o hip hop.

Dia 6 Clima

Condições atmosféricas, sociais e morais

Diz a enciclopédia geográfica que “clima” corresponde a “condições atmosféricas médias de uma região, especialmente no que respeita à temperatura e à precipitação, incluindo as variações sazonais que resultam da sucessão encadeada de tipos de tempo”.

A Cimeira do Clima, que começou em Paris na segunda-feira, pretende acautelar as mudanças climáticas não de uma região, mas de todas. Para isso, tentará aprovar um acordo entre os Estados para evitar que a temperatura da Terra suba mais de 2ºC até 2100.

O dicionário enumera e explica os vários tipos de clima (cujas características estão a tornar-se menos definidas devido aos “maus tratos” ao meio ambiente): “clima continental”, “de monção”, “de montanha”, “desértico”, “equatorial”, “temperado” (o nosso) e “tropical”.

O litoral português não será o mesmo no futuro, podendo ficar “debaixo de água” parte da linha costeira que hoje conhecemos (Aveiro, Costa de Caparica e Algarve).

Num momento em que se quer acreditar que há vontade genuína de salvar a Terra (nunca se esteve tão perto de um acordo desde o Protocolo de Quioto, em 1997), é divulgado um estudo da Universidade de Yale (EUA) a revelar que a petrolífera Exxon Mobil financia organizações para duvidarem de que o aquecimento global é real e causado pelos humanos. Chega-se então à definição de “clima” enquanto “atmosfera social, psicológica e moral” e ao triste exemplo de “clima desagradável, de desconfiança mútua”.

Novembro

Dia 29 Posse

Dar ou tomar, investir ou ser investido

Ao terceiro significado, conforme o dicionário, “posse” traduz-se por: “Investidura num cargo e cerimónia correspondente.” Em menos de um mês, Portugal assistiu a duas “posses” de dois governos: um liderado por Pedro Passos Coelho, a 30 de Outubro (PSD-CDS), e outro com António Costa à cabeça, a 26 de Novembro (PS, mas com as variantes de bastidores PS-PCP, PS-BE, PS-Verdes).

Primeiro de três exemplos que o dicionário regista: “O Presidente dá posse aos membros do governo.” Não se menciona, nem era esperado, com que estado de espírito o Presidente o faz (no caso de Cavaco Silva, desconfia-se). Nem com que estado de espírito os membros do governo o assumem (no caso dos socialistas, percebe-se).

“Dar posse” significa exactamente “investir num cargo ou função”, pelo que “tomar posse” corresponde a “ser formalmente investido num cargo ou função”. Já “tomar posse de” quer dizer “apropriar-se de alguma coisa” ou “invadir”. Dada a agitação pela mudança que se está a operar na vida política portuguesa, alguns tenderão a confundir os significados.

“Posses” corresponde a “haveres”, “meios de vida” e… “cabedais”, mas também a “poder”. No Brasil, “área correspondente a uma légua quadrada”.

“Posse” dada e tomada, a democracia continuará em Portugal o seu percurso. Como a política (e tudo) se faz de processos e resultados, o país terá de aguardar até poder ficar na “posse” destes últimos (resultados). Sobre os primeiros (processos) já está esclarecido.

Dia 22 Guerra

Maldito substantivo que inventámos

Podíamos ter escolhido “terror” ou “horror” como Palavra da Semana, mas “guerra” pressupõe tudo isso, seja ela inesperada ou planeada. Assim fala o dicionário, quando descodifica esse maldito substantivo feminino singular que a humanidade inventou, recriou, sofisticou e legitimou em cada momento de acordo com os seus interesses: “Conflito armado entre duas ou mais nações ou entre grupos partidários de uma mesma nação, com o fim de impor supremacia política ou de assegurar interesses materiais ou ideológicos.”

Depois dos ataques de 13 de Novembro em Paris, a palavra “guerra” tem vindo a repetir-se todos os dias. A ela se juntam “tiros”, “bombardeamentos”, “mortos”, “atentados”, “bombistas”, “ataques”.

Na quinta-feira, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, voltou a dizer: “Nós estamos em guerra.” Quando diz “nós”, sabemos bem a quem se refere. Descreveu ainda o tipo de “conflito” que agora se vive: “Esta não é uma guerra tradicional, mas uma nova guerra, onde o terror é a primeira e única arma.”

Bastante espaço ocupam as explicações dos dicionários para “guerra”. E registam tantas formas desta “disputa”, “luta”, “perseguição sanguinária”. Eis algumas: “guerra civil”, “colonial”, “bacteriológica”, “aberta”, “santa”. Há ainda a expressão: “Na guerra como na guerra.” Traduz-se assim: “Fórmula de resignação ou de cinismo com que se aceitam ou se pretendem justificar excessos, abusos, violências praticados em guerra ou até em outras circunstâncias.”

Só se encontrou uma definição que se possa dizer pacífica: “Jogo de bilhar entre três jogadores.”

Dia 8 Deus

Ser divino que nem sempre é amigo

“Princípio supremo que as religiões consideram superior à natureza”, regista um dicionário antigo sobre a palavra “Deus”. E acrescenta: “Ser infinito, perfeito, criador e conservador do universo.”

“Deus” foi ao Algarve e provocou cheias, “porque nem sempre é amigo”, segundo o ministro da Administração Interna, João Calvão da Silva. Já se lhe conhecia a ligação ao “Espírito Santo” (via “todo-poderoso” Ricardo Salgado), mas desconhecia-se-lhe os dotes para homilia. Ei-la: “A fúria da natureza não foi nossa amiga. Deus nem sempre é amigo. Também acha que de vez em quando nos dá uns períodos de provação. Em quase todo o lado, excepto em Albufeira, o nível autárquico foi suficiente de acordo com as medidas. E só não foi suficiente aqui em Albufeira, porque a força da natureza, na fúria demoníaca, embora os ingleses digam que é um acto de Deus, an act of God, a gente tem traduzir de outra maneira...” Seja.

“Na religião cristã”, escreve-se noutro dicionário, “Deus” corresponde a “cada uma das três pessoas da Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Na quinta-feira, também Paulo Portas, vice-primeiro-ministro, invocou o “Altíssimo”, ao dizer à Antena 1: “Graças a Deus tenho quem me substitua no Conselho de Ministros.”

Numa altura em que muitos portugueses andam ao “deus-dará” (“à toa”) por não saber quem os irá governar, talvez só lhes reste mesmo acreditar numa “entidade divina”. Se à esquerda chove, à direita troveja. Assim, se tem fé, reze; se não tem, reze também.

Dia 1 Governo

Entre o leme e o arranjinho

Substantivo masculino que significa “acção de governar ou dirigir uma embarcação, de manobrar o leme, os remos, as máquinas, para a encaminhar convenientemente”. O dicionário regista ainda outra definição para “governo” antes de chegarmos àquela que nos traz aqui: “Acção de dirigir, de guiar uma cavalgadura, um veículo ou outro aparelho que se move.” Finalmente, “poder executivo ou conjunto das pessoas que administram superiormente um Estado, uma província, uma companhia”.

A coligação PSD-CDS apresentou na terça-feira o novo “governo”, por muitos considerado como apenas “remodelação governamental”, já que as novidades foram poucas. No PÚBLICO escreveu-se: “Passos Coelho apresentou um novo governo que se mantém, na sua essência, só com dois independentes e dois ministérios novos — Cultura, Igualdade e Cidadania; e Modernização Administrativa."

Suspeita-se de que a vida deste governo seja curta. António Costa chamou-lhe “provisório”. O dicionário nada diz sobre “governo provisório” ou “de gestão”, mas tem alguns sinónimos para a palavra: “arranjinho” ou “bicoca”. E um inesperado, “amante da prostituta”.

Depois de ser chumbado o governo, como se prevê, não se sabe o que se segue. Espera-se que não venha outro “mau governo”, que significa “não se manter o navio ao rumo que se quer, ou por incompetência do homem do leme ou pelo estado do mar ou ainda pelas formas do navio, o que constitui um defeito permanente”.

“Governo” e “leme” são portanto a mesma coisa. “Governalho” também.

Outubro

Dia 25 Poder

Direito de mandar

A gramática é generosa com a palavra “poder”: verbo transitivo, intransitivo, auxiliar e ainda substantivo masculino. O dicionário também, já que lhe dedica um espaço alargado para explicações. Foi preciso percorrer muitos sentidos até alcançar o que queríamos ver descrito: “Governo de um Estado.” Isto porque estávamos à espera de saber qual seria o nosso. (Não o Estado, mas o Governo.)

Resumindo, enquanto verbo, “poder” significa “ter possibilidade ou autorização para”, “dispor de autoridade”, “ter influência para”, mas também “estar arriscado ou exposto a”. Já como substantivo, encontrámos “potência”, “vigor do corpo ou da alma”, “domínio”, “posse”, “império”, “soberania”.

Foi um dicionário de 1940 que nos deu o título, “direito de mandar”. Também ali se registava “poder” como “ter fôrça para” (assim, com acento circunflexo). Mas um mais recente recordou-nos que “manda quem pode”. E mais disse: “O Governo de um país e as respectivas instituições.” Logo seguido da frase: “O poder foi legitimado pelo voto.”

“Poder” também se define como: “Faculdade ou possibilidade de desenvolver uma acção, de desencadear um processo ou obter um resultado.” Divertimo-nos com o exemplo: “Nem todos têm o poder persuasivo daquele charlatão.”

No momento em que escrevemos, ainda o ainda... “todo-poderoso” Presidente da República não tinha exercido o “poder” de atribuir o “poder” a um dos líderes partidários que poderiam vir a tê-lo.

“Aguentar” é sinónimo da Palavra da Semana que escolhemos. Espera-se que, quando este texto for publicado, alguém já tenha sido indigitado primeiro-ministro. Perdão pela coloquialidade, mas já não se “pode”.

Dia 18 Nobel

Premiar a coragem e a Primavera

De apelido passou a nome de prémio, instituído desde 1901 e “atribuído anualmente às pessoas que se destacaram pelo seu contributo no domínio da Física, Medicina, Literatura, Química, Economia e Paz”. Nos últimos dias, foram revelados os prémios Nobel deste ano nas categorias Economia, Literatura e Paz. Um dicionário comum explica que “nobel” corresponde a “pessoa galardoada com esse prémio”. E dá um exemplo: “José Saramago é um nobel da literatura.”

Alfred Bernhard Nobel (1833-96) foi, segundo um dicionário enciclopédico, um “químico sueco, inventor da dinamite [1876]”, que “estabeleceu, em testamento, o valioso prémio que tem o seu nome, em favor das obras literárias, científicas e filantrópicas de todo o mundo”.

Falando em Economia, a categoria que mais tardiamente entrou nas distinções (1969), a Academia Sueca achou por bem distinguir o britânico Angus Deaton, que viu valorizada a sua sensibilidade em estudar a pobreza e em mostrar como fugir dela.

Na Literatura, a coragem da bielorrussa Svetlana Alexievich fê-la merecer o lugar de 14.ª mulher com este prémio. Escreveu “livros sobre as mulheres na II Guerra, os soldados soviéticos mortos no Afeganistão, as consequências do acidente nuclear de Chernobyl ou a criação e sobrevivência do Homo sovieticus.”

Na Paz, venceu um quarteto tunisino: sindicato da União Geral dos Trabalhadores, Confederação da Indústria, Comércio e Artesanato, Liga dos Direitos Humanos e Ordem Nacional dos Advogados. Juntos formaram o Quarteto de Diálogo, no Verão de 2013. Disse o comité Nobel que esta “aliança de organizações da sociedade civil evitou o ruir da Primavera Árabe na Tunísia”. E acrescentou a importância “do valor do diálogo e o sentido da pertença nacional”. Talvez se pudesse aplicar esta atitude noutras geografias. Mesmo sendo Outono.

Dia 11 Poucochinho

Entre nada e coisa nenhuma

“Muito pouco”, “nadinha”, regista o dicionário sobre a palavra que jamais se dissociará de António Costa, “poucochinho”. Quando resolveu disputar a liderança do PS, em 2014, e depois de o partido ter vencido, com António José Seguro, dois actos eleitorais (autárquicas e europeias), foi este o discurso: “Eu sei que muitas vezes se diz que por um se ganha e por um se perde. É verdade, no futebol é assim. Na política não é assim. É que a diferença faz muita diferença, na política. É que quem ganha por poucochinho é capaz de poucochinho. E o que nós temos de fazer não é poucochinho. O que nós temos de fazer é uma grande mudança.” Pois.

O dicionário também fala em “pouquinho” e “poucachinho”. Graça Franco, na Rádio Renascença, escolheu “apoucar-lhe” ainda mais o sentido, chamando “poucochíssimo” ao “estrondoso falhanço” do PS: “Perante a perda de mais de 752 mil votos pela coligação, acabou a noite com mais 172 mil do que o pior resultado de sempre conseguido por Sócrates, em plena bancarrota (…). É obra. Não chega a ser poucochinho, é simplesmente poucochíssimo!”

Ainda assim, o secretário-geral declarou na noite das eleições legislativas: “Manifestamente, não me vou demitir.” Pedro Santos Guerreiro resumiu bem, no Expresso (“O Lobo Mau e o Poucochinho Vermelho”), as palavras do ainda líder: “O discurso de derrota de António Costa, sendo surreal, foi suficientemente ambíguo para dar para tudo. Mesmo tudo. Incluindo o nada.” Coisa nenhuma, manifestamente.

Dia 4 Marte

Qual será a cor do mar marciano?

Conhecido como “planeta vermelho” (esperemos que a Comissão Nacional de Eleições não veja aqui qualquer apelo ao sentido de voto), Marte define-se como “planeta primário exterior do sistema solar, entre a Terra e Júpiter, menor que a Terra, com dois satélites (Deimos e Fobos) e que faz uma rotação completa em 24 horas, 37 minutos e 23 segundos, e uma translação em torno do Sol em um ano e 322 dias médios, aproximadamente”.

O dicionário não poderia adivinhar que há “mar” em Marte, já que esta informação foi revelada apenas na passada segunda-feira. “Cientistas da NASA anunciam descoberta de água salgada a escorrer em Marte”, foi título de notícia no PÚBLICO. Aí se dava conta de um artigo publicado na revista Nature Geoscience: “Uma equipa de cientistas descobriu a existência actual de água salgada que escorre sazonalmente na superfície do planeta vermelho (…) Esta conclusão é o resultado de análises de estrias escuras descobertas em 2011, que surgem e desaparecem todos os anos, e tem implicações para a procura de vida em Marte.” Mas não se fala nos tons desse possível mar.

Hoje, num canto do “planeta azul” (esperemos que a Comissão Nacional de Eleições não veja aqui qualquer apelo…), decide-se a cor, não do mar, mas do país que o Atlântico rodeia a ocidente e a sul.

A política também tem cor. Se o resultado não agradar aos derrotados, poderão sempre começar a considerar Marte como um novo destino de emigração (esperemos que a Comissão Nacional de Eleições não veja aqui...).

Setembro

Dia 27 Falsear

O “carro do povo” a enganar o povo

“Cometer traição” é o primeiro sentido que o dicionário atribui ao verbo “falsear”. Seguem-se outros, como “ser falso para com alguém”, “atraiçoar”, “enganar”, “iludir”. Há até registado um exemplo que serve na perfeição para ilustrar o que se passou por estes dias com a fraude da Volkswagen (em português, “carro do povo”). É ele: “Falsear uma informação.”

A história: a empresa alemã criou, nos EUA, um esquema fraudulento que consiste em instalar um software em carros a gasóleo que faz com que estes emitam menos gases poluentes quando são sujeitos a testes. E assim enganou o povo. “Fizemos asneira”, disse o director-geral da Volkswagen América. Melhor seria ter dito “fomos desonestos”.

Em português, “asneira” tem um sentido demasiado suave para o que se passou, já que se explica como “um acto ou dito errado ou imprudente” ou tão-só “um disparate”. Admitimos, no entanto, que em alemão possa ter um significado mais próximo da gravidade da atitude dos empresários (e estarmos nós “lost in translation”).

Mais definições de “falsear”: “deturpar ideias”, “tornar falso”. Outros sinónimos: “desvirtuar”, “falsificar”, “adulterar”. Foi esta a atitude condenável da criadora do mítico “Carocha”. Condenável para quem a palavra “valores” vai além da que se converte em moeda.

O dicionário oferece-nos ainda uma inesperada explicação: “Colocar mal a extremidade dos membros, pisando em falso. ‘Falseou o pé e caiu’.” Na credibilidade e na bolsa de valores...

Dia 20 Escola

Nem música nem sexo

“Escola” é uma “instituição pública ou privada de ensino colectivo, onde são ministradas matérias de carácter geral ou especializado”. Setembro é o mês em que as escolas retomam como podem o seu funcionamento normal. Mas se a data de recomeço varia, há outro tipo de variações para este ano lectivo.

Variação 1: cortes no financiamento aos conservatórios impedem formação de turmas do 5.º ano, o primeiro do ensino articulado de música. Disse o ministro Nuno Crato: “Não há desinvestimento nenhum no ensino artístico.” O montante é “exactamente o mesmo do ano passado”, 55 milhões de euros. A directora pedagógica da Academia de Amadores de Música, Cristina Berruchi, tem outro entendimento: “O montante pode ser o mesmo, mas é mentira dizer que não existe uma redução do financiamento a várias instituições. Nós tivemos um corte de 17,7% e, das 13 escolas de ensino especializado de música da zona de Lisboa, há uma que teve uma redução de 40%.”

Variação 2: os métodos contraceptivos e as doenças sexualmente transmissíveis não são temas prioritários de Ciências Naturais nas metas curriculares do 9.º ano. “Gravíssimo”, disse o presidente da Associação de Planeamento da Família. O ministério lembrou ser “a Educação para a Saúde, e especificamente a Educação Sexual, de abordagem obrigatória e transversal em diferentes anos de escolaridade e disciplinas, por transcender a mera questão do sistema reprodutivo, da contracepção e das doenças sexualmente transmissíveis”.

“Ter a escola toda” significa “ser sabido, ser manhoso”. Um dicionário antigo regista a expressão “mandar alguém à escola”, isto é, “fazer-lhe sentir a sua ignorância”. Mesmo que seja doutorado.

Dia 13 Debate

Perdemos todos

O dicionário espera que um “debate” seja a “análise de um tema, assunto ou problema, que pressupõe uma discussão durante a qual os participantes apontam os seus pontos de vista”. É o mesmo que nós esperamos de um “frente-a-frente”, mesmo que em televisão os ponham mais de lado que de frente, obrigando um a olhar para a direita e outro para a esquerda. Um bom exercício.

A “disputa” (a que chamaram “duelo”) entre Pedro Passos Coelho e António Costa, cabeças de lista de candidatura às legislativas de 4 de Outubro — pela coligação PSD-CDS e pelo PS, respectivamente —, aconteceu na noite de quarta-feira.

As reacções podem ser aferidas através de vários artigos que insistem (irritantemente) em comparar debates a desafios de futebol. Quem ganhou, quem perdeu? Resultados ao intervalo? Empataram? Não é de bola que se trata, senhores. Trata-se do futuro. O nosso. E, tanto a avaliar pelo que ficou claro como pelo que não foi esclarecido, perdemos todos.

A “discussão” foi seguida por 3,3 milhões de espectadores. Muitos mais dos que há um ano assistiram (meio milhão) à “contenda” entre José Seguro e António Costa. Este, depois dos bons resultados do PS nas eleições europeias sob a liderança do outro, sentiu um apelo: Portugal precisava dele. Agora, dá-se o inverso. Tal como Passos Coelho, o socialista precisa de Portugal.

Na quarta-feira, ouviu-se por várias vezes o conceito de “austeritário”. Um neologismo que não encontrámos no dicionário, só na memória. E gostaríamos de esquecê-lo.

Depois do debate entre os dois candidatos a primeiro-ministro, muitos indecisos continuaram a pensar “venha o Diabo e escolha”. Mas o Diabo não tem cartão de eleitor.

Dia 6 Refugiado

Fugir da guerra não é (simplesmente) emigrar

“Pessoa que, na sequência de perturbações políticas ou de conflitos bélicos, teve de abandonar o seu local de residência habitual ou o seu país, procurando acolhimento noutra região ou noutro país”, assim se define a palavra “refugiado”, que tardou a entrar nas notícias sobre “migrações” para a Europa.

Depois do cemitério em que o Mediterrâneo se transformou (“o naufrágio da humanidade”), do horror de pessoas asfixiadas num porão e num camião abandonado, as atenções viraram-se também para a estação ferroviária de Keleti, em Budapeste, e para o desespero de quem, vindo sobretudo da Síria, quer partir rumo à Alemanha, à Áustria e ao sonho de viver em paz.

 Já um “migrante” define-se apenas como “o que muda de país ou de região”. Um “emigrante”, segundo o dicionário, é uma “pessoa que vai procurar trabalho ou outro modo de vida num país diferente daquele onde nasceu”.

O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados já tinha alertado para as “consequências graves” de se falar de forma indiscriminada sobre “migrantes” e “refugiados”. Sobre estes últimos, disse o porta-voz, Adrien Edwards: “São pessoas que fogem de perseguições ou de conflitos armados” e, para elas, “a recusa de asilo tem, potencialmente, consequências fatais”. Explicou que os países “lidam com os migrantes de acordo com a sua lei interna e com os refugiados segundo a legislação nacional e internacional”, lembrou que “a Convenção dos Refugiados de 1951 define quem é refugiado e delimita os direitos básicos que os Estados lhe devem garantir”. E sublinhou: “As palavras importam.” Mas isso o leitor sabe, ou não estaria aí desse lado a ler-nos.

Agosto

Dia 30 Carta

Epístola, segundo António Costa, aos indecisos

Uma “carta” é “uma mensagem escrita que se dirige a alguém ou se recebe de alguém”. Quando se fala em “carta aberta”, a definição completa-se: “A que é dirigida em particular a alguém, mas ao mesmo tempo tornada pública ao ser divulgada num jornal.” Ou noutra publicação ou nas redes sociais (que o dicionário desconhecia).

Foi via Facebook que António Costa começou por dirigir a primeira de várias “epístolas” aos eleitores indecisos. Para “manter viva a chama de uma ‘campanha de proximidade’ com o eleitorado”, escreveu-se no PÚBLICO, no dia em que foi o escolhido para divulgar a terceira “missiva” do líder do PS. O segundo “escrito” teve publicação no Diário de Notícias, na terça-feira.

Falemos apenas destas três “cartas”: na primeira, apelou à participação dos cidadãos nas eleições; na segunda, convidou o eleitorado a “descobrir e valorizar as Índias e os Brasis que temos em nós”; na terceira, lembrou a importância do conhecimento e da inovação para o desenvolvimento. (Vinde a nós, tende confiança, acreditai no conhecimento e será vosso o reino da salvação...)

“Carta” também é nome de peixe. Informa o dicionário ser o “peixe-carta” o “pleuronecto de Portugal”: como o linguado, “de forma chata”.

Há muitas expressões em sentido figurado com “cartas”. Brinquemos: até que seja eleito e possa “dar as cartas” (ter poder para pôr e dispor sobre algo), um candidato deve “pôr as cartas na mesa” (falar claro, frontalmente), isto para não arriscar “ser uma carta fora do baralho” (não ter valor ou préstimo). No entanto, não poderá ter a certeza de vencer, mesmo que resolva “deitar as cartas” (praticar adivinhação, através da forma como as cartas de jogar se apresentam ao cartomante).

Ganhe quem ganhar, os eleitores continuarão a tentar “levar a carta ao Garcia”. Isto é, a “desenrascar-se”.

Dia 23 Incendiário

Queimado por dentro?

“Pessoa que provoca intencionalmente um incêndio”, explica, sem cerimónia, o dicionário quando chegamos à palavra “incendiário”. Não fala em idades, mas não se espera que quem “põe fogo” tenha 12, 13 ou mesmo 16 anos, como nos casos que foram noticiados nos últimos dias.

“GNR identificou 68 menores suspeitos de fogos florestais desde 2013”, foi título no PÚBLICO de quarta-feira, num texto onde se podia ler que, “desde 2013, a GNR, a polícia mais presente nas áreas rurais, identificou 68 menores de 18 anos suspeitos de atearem incêndios florestais”.

Num outro artigo, dava-se conta de que um adolescente com 13 anos já era “suspeito de ter ateado pelo menos sete incêndios que no Verão passado consumiram centenas de hectares na Covilhã”. Divulgava-se ainda que, também no Verão de 2014, “a PJ identificou pelo menos quatro menores alegadamente autores de incêndios: três de 16 anos, em São João da Madeira, e um de apenas 12 anos em Espinho”.

Problemas de “saúde mental”, “limitações cognitivas” e “famílias disfuncionais” são as explicações dos especialistas, para quem “o perfil e as motivações não divergem entre adultos e menores”.

Queimados por dentro (como eles?), ficamos sem saber o que pensar ou sentir.

“Incendiário”, enquanto adjectivo e em sentido figurado, pode significar “excitante”, “que causa entusiasmo”. Mas seria criminoso falar nisso enquanto a floresta arde.

Dia 16 Cartaz

Eu é que sou a presidente da junta

Definição simples de “cartaz”: “Anúncio em ponto grande que se fixa nos lugares públicos.” Definição complexa: “Anúncio publicitário ou de propaganda, com concepção e realização gráfica segundo uma técnica e uma linguagem específicas e procura de efeito estético, cujos elementos principais são: dimensões, formato, imagem, cor e texto.”

Os cartazes do PS falharam em dois desses elementos: texto e imagem. No texto, como notou Bagão Félix, “o amadorismo foi de tal monta que nem sequer foram capazes de articular os cartazes com os últimos números do desemprego (...) (e logo com o ‘azar’ de, pela primeira vez, a taxa de desemprego ser inferior à última do Governo PS de 2011!). E a própria tabuada traiu os criadores, ao falarem de se ter caído no desemprego… há 5 anos!”. Na imagem, como se noticiou, “a polémica nasceu com a afixação de quatro cartazes temáticos para ilustrar o lado humano do desemprego, só que três dos quatro retratados contestaram a utilização das fotos”. Todos funcionários da Junta de Freguesia de Arroios, em Lisboa.

A (há muito) mediática presidente da junta, Margarida Martins (socialista, ex-presidente da Abraço e ex-porteira do Frágil), disse ter “partilhado os respectivos contactos dos colaboradores com a organização da campanha do PS” e atribuiu a responsabilidade à “organização de campanha do partido”.

Do grego, kártes, “papel”, e do árabe, qirtás, “folha de papel”, a arte de cartaz “remonta ao séc. XVII”. Houve, portanto, bastante tempo para a aprender. No PS, a responsabilidade vai-se agora repartindo entre o cabeça de cartaz e a cabeça... do cartaz.

“Estar em cartaz” significa “estar em exibição”. Mesmo que desastrosa.

Dia 9 Sul

Descer em latitude

Diz o dicionário enciclopédico que “Sul” é “um dos quatro pontos cardeais”, mas também é “o meio-dia” e “o ponto do horizonte directamente oposto ao Norte e que nos fica à direita quando estamos voltados para o nascente”. Mais se acrescenta: “Região ou regiões situadas a sul.” Na nossa geografia, Algarve.

Agosto começou e esse foi o rumo de muitas famílias portuguesas, que cedo começaram a descer em latitude. Logo no dia 1, diziam as rádios que estava difícil transitar na auto-estrada que leva àquele destino. Contra ou a favor das portagens, a verdade é que os automobilistas continuam a desprezar a velhinha estrada que também desagua no Algarve. Aí, circulava-se sem complicações.

Se a ideia era chegar depressa ao Sul, os da “estrada lenta” conseguiram andar mais depressa e instalar-se primeiro no litoral “meridional” do país, para finalmente gozarem as férias do Verão de 2015.

“Sul”, no Brasil, abrange a região que vai do estado do Espírito Santo até ao Rio Grande do Sul. Também é nome de vento, o que sopra dessa direcção e é muito quente. Pode chamar-se-lhe “suão”. Para sinónimo de “Sul”, encontrou-se “pólo austral”.

O ponto mais a sul de Portugal continental é o cabo de Santa Maria (36°57’N 7°53’O), em Faro. Se incluirmos as ilhas, é a ponta do Sul (30°2’N 16°2’O), no ilhéu de Fora (ilhas Selvagens), arquipélago da Madeira.

Boas férias, em qualquer latitude.

Dia 2 Bicicleta

Pedalar na função pública

Do francês bicyclette, mas também do latim bis, “duas vezes”, a que se junta, do grego, kyklos, “círculo, roda”. Uma “bicicleta” é um “velocípede de duas rodas, de igual diâmetro, sendo a da retaguarda accionada por um sistema de pedais que actua sobre uma corrente”. Faz maravilhas pela saúde e pelo ambiente. Por isso, os funcionários públicos foram convidados a usar este veículo. Se já havia mobilidade na função pública, agora faz-se de bicicleta, quando não de carrinho…

Esta sugestão integra-se num conjunto de medidas para reduzir em 20% as emissões de C02 dos automóveis do Estado e também os gastos com combustível. É o programa para a mobilidade sustentável Eco.com.

O dicionário explica que uma “bicicleta de montanha” está “especialmente preparada para percorrer caminhos e estradas de montanha” e que uma “todo-o-terreno” está “preparada para resistir a todo o tipo de obstáculos”. Talvez seja esta a mais indicada para a função pública, sempre acusada de todos os males e sujeita a percursos espinhosos. Toca então a pedalar.

Menos tortuosos e mais felizes se tornam os caminhos de quem beneficia em África da iniciativa World Bicycle Relief, em que a distribuição de bicicletas por famílias em espaço rural resulta num grande aumento da qualidade de vida das populações. (E qualquer um de nós pode ajudar.)

No futebol, “bicicleta” “é o mesmo que puxada ou puxeta, porém, estilizada pela atitude do jogador”. “No turfe [corridas de cavalos], diz-se do jóquei que não usa os estribos.” Em Pernambuco, no Brasil, pode chamar-se-lhe “gangorra”. Coloquialmente, a palavra é usada como sinónimo de “esposa”. Com carinho.

Julho

Dia 26 Legislatura

No final, deram-nos música

Terminou na quarta-feira, com pompa e ópera, a XII Legislatura Portuguesa. Na escadaria onde não há muito tempo se lançaram pedras (15 de Outubro de 2012), escutou-se Verdi, Bizet, Keil, Donizetti, Wagner e Borodine. Foi a última vez que esta “assembleia legislativa” (um dos significados de “legislatura”) nos deu música.

Regista o dicionário que “legislatura” é a “duração das sessões de uma câmara legislativa” ou, por outras palavras, o “exercício do mandato de uma assembleia legislativa”. Explicação adicional: “Na Constituição portuguesa, uma legislatura tem a duração de quatro anos.” Penosos para alguns cidadãos, gloriosos para alguns governantes. Por agora, acabou-se.

Nesta XII Legislatura, marcada por austeridade, desemprego, “decisões irrevogáveis” e “contos de crianças”, o Parlamento “ganhou” mais uns meses para além dos quatro anos regulamentares, já que resultou de eleições antecipadas, que aconteceram a 5 Junho de 2011. Em situação normal, as eleições fazem-se entre 14 de Setembro e 14 de Outubro. (As próximas já estão marcadas para 4 de Outubro.) Mesmo com tempo “extra”, o último dia da legislatura foi de “maratona de negociações”, desta vez à volta do código civil, violência doméstica, interrupção voluntária da gravidez e enquadramento orçamental. A mais polémica teve que ver com a alteração da lei do aborto.

Lá dentro, gritou-se “vergonha”. Cá fora, gritou-se “bravo”. Mas a música era outra. E a audiência também.

Dia 19 Acordos

Belicismo nuclear e financeiro

Plural de “acordo”, que quer dizer “entendimento recíproco”. Dois “acordos” mereceram a atenção do mundo por estes dias. Um Irão sem armas nucleares e uma União Europeia sem expulsões (da zona euro). O Irão está satisfeito, a UE (ou seja, a Alemanha), não.

Parece piada o registo de um dicionário enciclopédico para o vocábulo “acordo”, ao traduzi-lo por “concórdia”, “harmonia”. A explicação de uma enciclopédia geográfica também faz sorrir (cinicamente): “Se os continentes têm especialidades, as da Europa parecem ser os sistemas políticos e económicos. A noção de democracia nasceu na Europa.”

Na quinta-feira, quando a Revista 2 entra na gráfica, o que se sabia sobre estes dois “entendimentos” era que “o acordo de controlo nuclear agradou a quase todos, sendo Israel e o Partido Republicano norte-americano duas das excepções”; já quanto ao acordo com a Grécia, era esta a notícia: “Um empréstimo de emergência aos bancos gregos irá ser reforçado em 900 milhões de euros ao longo de uma semana, criando a expectativa de que as instituições financeiras possam voltar a abrir brevemente.” Uns estão aliviados, outros preocupados e quase todos zangados. “Imposição” e “humilhação” foram palavras pronunciadas e escritas por aqueles que em tempos acreditaram num projecto comunitário que seria “a casa da democracia”.

Juntando as duas “aprovações”, poder-se-ia recuperar o slogan de outros tempos, agora não sobre armas nucleares, mas sobre belicismo financeiro. “Acordo? Não, obrigado.” Ou adaptar a canção de Lena d’Água, sem preocupações de métrica ou rima: “Antes combativo hoje do que submisso amanhã.”

Como escreveu José Vítor Malheiros, “a União Europeia passou de ‘clube das democracias’ a uma ditadura financeira”. Não, obrigado.

Dia 12 Nação

O estado do Estado entre pecados e pragas

Uma “nação” é uma “comunidade humana que possui identidade, mais ou menos forte, de origem, história, língua, costumes, religião”, mas também é uma “comunidade política autónoma, subordinada a um poder central e que ocupa um território com limites definidos”. Como sinónimos de “nação”, os dicionários registam “povo” e “Estado”.

Todos os anos, o Parlamento debate o “estado da nação”, ou seja, avalia o estado a que o Estado chegou. O de 2015 aconteceu na quarta-feira. Dantes, durava dois dias, mas a presença do chefe de Governo na Assembleia da República banalizou-se desde que o regimento parlamentar impôs debates quinzenais.

Em final de legislatura, o confronto entre Governo e oposição teve a “bênção” das Sagradas Escrituras. O PS acusou o Governo de “sete pecados capitais” e o primeiro-ministro responsabilizou-o por “dez pragas” deixadas ao país. O PCP lembrou que os partidos no Governo não souberam ser “insecticidas” e o PEV perguntou se o PSD não seria ele próprio uma “praga”.

Falou-se de desemprego, precariedade, pobreza, mapa judiciário, parcerias público-privadas, TGV, pactos de estabilidade e crescimento, défices orçamentais, BPN, troika e (claro) da Grécia.

Mantendo-nos no registo bíblico, “nações” pode significar “os pagãos” ou “os gentios”. Um dicionário regista as locuções pelas quais se designa S. Paulo: “Doutor das nações, apóstolo das nações.” Mas é do Brasil que, mais uma vez, nos chega a surpresa sobre o sentido da palavra que escolhemos para a semana que passou: “manada”.

Dia 5 Referendo

Direito que assiste a todos e assusta alguns

Do latim, referendum. “Direito, consagrado juridicamente, que assiste a cada cidadão de ser ouvido, por meio de voto, em matérias de interesse nacional”, regista o dicionário.

O conceito de “referendo” é repetente nesta rubrica (Palavra da Semana). A sua anterior descodificação data de 6 de Novembro de 2011, quando era a Irlanda que equacionava a sua permanência na zona euro. A revista de domingo tinha outro nome (Pública), a Europa tinha o mesmo. No entanto, nem uma nem outra são o que eram. Os referendos também não.

Na quinta-feira (dia de fecho da Revista 2), mantinha-se a marcação para hoje (domingo) de um referendo na Grécia, para que os cidadãos decidissem acatar ou não as condições dos credores, vulgo troika: Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia.

Reuniões interrompidas, negociações encerradas, bancos fechados, negociações retomadas, propostas para cá, acertos para lá, correcções daqui, contas dali, acordos e desacordos, dramatizações e cálculos, manipulações e receios. Até um crowdfunding (em português, “fazer uma vaquinha”) foi lançado por um britânico para ajudar “o primo grego”. Assim foram os últimos dias da “família” europeia.

Hoje, o povo grego terá de escolher entre o “sim” e o “não” às medidas que os credores querem ver aplicadas no país e que o Governo não quis aceitar sem primeiro o consultar. E a afluência às urnas deve ser expressiva, “faça chuva ou faça sol”.

Junho

Dia 28 Vendido

A privatização (ou não) de um país

Faixas com a palavra “vendido” foram recentemente afixadas em edifícios, em Lisboa, contra os processos de privatização em curso pelo Governo.

“Vendido” é o particípio passado do verbo “vender”, que significa “ceder por uma determinada quantia”.

Assembleia da República, Centro Cultural de Belém, Terminal 2 do Aeroporto de Lisboa, estações do Metro, balcões de atendimento da Segurança Social e dos CTT e alguns bancos foram “vendidos” pelo movimento Agir (a que está ligado outro, “Eu não me vendo”). Segundo o seu dirigente, Nuno Ramos de Almeida, “o Governo vendeu tudo o que podia, por tuta e meia” e “prepara-se para entregar a Carris e o Metro, depois de vender a TAP por 10 milhões de euros”. O que preocupa os activistas é a “perda de soberania do Estado português” e a “venda ao desbarato das empresas públicas”.

Na quarta-feira, este era um dos títulos do PÚBLICO: “Assinada a venda da TAP, ‘uma história anunciada desde finais dos anos 90’”. A venda da transportadora aérea tem sido muito contestada por funcionários, mas as mais recentes greves de pilotos não contaram com a simpatia dos cidadãos.

O professor de Direito Agostinho Guedes resume assim o ser-se a favor ou não das privatizações: “A questão não é saber se certa empresa é lucrativa ou não, se está ou não num sector dito estratégico, se o Estado gere melhor ou pior, se o Estado precisa mais ou menos de dinheiro. A questão é saber se queremos para Portugal um regime que tem a pretensão de tudo controlar e tudo decidir ou um regime baseado na liberdade política e na liberdade económica. Este é o debate. O resto é atirar areia para os olhos dos eleitores.”

Como verbo transitivo, “vender” também significa “alienar”, “trair”. Como pronominal, pode querer dizer “praticar, por interesse, actos indignos” e ainda “alienar a sua liberdade por certo preço”. Voilá.

Dia 21 Medalhas

Há desporto para além do futebol

Plural de “medalha”, substantivo feminino que significa, entre outras coisas, “chapa metálica, gravada e revestida a ouro, prata ou bronze e que é atribuída, respectivamente, ao primeiro, ao segundo ou ao terceiro prémio de uma competição desportiva, de um concurso ou de um outro certame”.

O dicionário dá como exemplo as Olimpíadas (“nos Jogos Olímpicos, todos os atletas aspiram a uma medalha”), mas nós queremos referir-nos à primeira edição dos Jogos Europeus que decorrem em Bacu (Azerbaijão).

Entre seis mil atletas de 50 países, os portugueses conseguiram (até quinta-feira) conquistar seis medalhas: duas de ouro — no taekwondo em -58kg (Rui Bragança) e no ténis de mesa por equipas (Marcos Freitas, Tiago Apolónia e João Geraldo) — e quatro de prata — no triatlo (João Silva), na canoagem em K1 1000 e 5000 (Fernando Pimenta) e no tiro com pistola de ar comprimido a 10 metros (João Costa).

Embora o espaço e tempo mediáticos dedicados ao futebol e até mesmo à cerimónia de apresentação do novo treinador do Benfica tenham sido superiores, os leitores online partilharam e comentaram muito mais as vitórias dos atletas nos Europeus.

Talvez estejam cansados de “bola”. Exemplo no site do PÚBLICO no dia 15 de Junho: a notícia “Prata para o canoísta Fernando Pimenta nos Jogos Europeus” foi partilhada por 11.654 leitores, enquanto o texto “Rui Vitória foi apresentado rodeado de troféus mas não quis comprometer-se” obteve apenas 1322 partilhas.

“O reverso da medalha” é uma expressão comum que significa “o lado mau de qualquer coisa”. Do desporto, por exemplo.

Dia 14 Pulseira

Adorno no pulso e dispositivo no tornozelo

“Em forma de corrente, aro ou fita”, uma “pulseira”, regista o dicionário, é um “adorno que se usa em volta do pulso”. Este substantivo feminino tem como sinónimo “bracelete”. Mas não foi sobre este tipo de pulseiras que se falou nos últimos dias, mas sim das “electrónicas”. E estas vêm descodificadas nos dicionários online, mas ainda em muito poucos dos editados em papel.

A saber: “Dispositivo, usado geralmente no tornozelo, que transmite sinais em radiofrequência e permite a vigilância de determinada pessoa em local previamente definido.” O ex-primeiro-ministro José Sócrates, que se encontra em prisão preventiva, opôs-se à substituição desta pela obrigação de permanecer na sua habitação com vigilância electrónica. Ou seja, recusou o uso de pulseira electrónica em prisão domiciliária.

O recluso 44 do Estabelecimento Prisional de Évora justificou assim a decisão: “Estas ‘meias-libertações’ não têm outro objectivo que não seja disfarçar o erro original e o sucessivo falhanço: depois de seis meses de prisão, nem factos, nem provas, nem acusação.” E acrescentou, bem ao seu estilo: “Nas situações mais difíceis, há sempre uma escolha. A minha é esta: digo não.”

Resultado: sem pulseira no tornozelo, não pode ir para casa. Assim decidiu o juiz Carlos Alexandre, após o recuo do Ministério Público perante esta medida de coacção. “Vingança mesquinha”, disse o advogado João Araújo; “ilegalidade”, disse o penalista Paulo Sá e Cunha.

“Pulseira”, para os brasileiros, é também um “ornato” ou um “enfeite”. Sem transmissores.

Dia 7 Treinador

Vestir e despir a camisola

À terceira explicação, diz o dicionário que um treinador é “o técnico que treina um desportista ou uma equipa de desportistas”. Não escolhe um desporto em particular, nem um clube. Jorge Jesus, sim. O até aqui “instrutor” de futebol no Sport Lisboa e Benfica escolheu passar a ser o “mister” no Sporting Clube de Portugal. Ou, se se quiser, decidiu deslocar-se da Luz para Alvalade (pela 2.ª Circular). Em tempos, Jorge Jesus foi jogador do Sporting. Agora, a casa torna. Volta portanto a vestir uma camisola que já havia despido.

Na quinta-feira, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários pedia esclarecimentos urgentes às sociedades anónimas desportivas (SAD) dos dois clubes, obrigadas que estão, por serem cotadas em bolsa, a comunicar ao mercado informação relevante, como a contratação de treinadores. Oficialmente, nada havia sido comunicado. Conhecia-se, sim, as palavras irónicas do director de comunicação do Benfica, João Gabriel, no Twitter: “Sou grato a Jesus! Para o ano, vamos ter treinador comprometido com o Benfica e não apenas com o seu ego e conta bancária.” O preço de vestir nova camisola parece oscilar entre os cinco milhões de euros de prémio de assinatura (segundo a TSF) e os seis milhões de euros brutos anuais (segundo os jornais). A passagem de vermelho a verde será financeiramente apoiada pelo “empresário angolano Álvaro Sobrinho e por patrocinadores da Guiné Equatorial”, escreveu-se.

Personagem peculiar, desde o nome ao penteado e ao discurso, Jorge Jesus é um alvo recorrente nas redes sociais. Desde que se soube da transferência, o treinador voltou a protagonizar muitas mensagens, com mais ou menos humor. Como esta: “Ai Jesus que lá vou eu.” Pela 2.ª Circular.

Maio

Dia 31 Federação

Rimar com sucessão e corrupção

Para os dicionários, “federação” é uma “união, sob uma autoridade comum, de vários sindicatos, clubes desportivos, associações”. Também pode ser uma associação de Estados, com um Governo central, mas não foi desse tipo de “federação” que se falou nestes últimos dias. Por isso, vamos à bola. De futebol, bem entendido. Porque há outros desportos com esféricos de diferentes tamanhos. E interesses.

No dia 27, noticiou-se: “Detenção de sete responsáveis da FIFA tem como alvo futebol na América Latina”. A Federação Internacional de Futebol viu serem acusadas de corrupção pela justiça norte-americana 14 pessoas da sua associação. Entre elas, nove altos responsáveis. “América Latina está no centro das atenções, mas investigações atingem Mundiais na Rússia e Qatar”, escreveu-se no PÚBLICO.

As operações aconteceram na véspera da conferência anual da FIFA e a dois dias das eleições para a sucessão do seu actual presidente, que ali está instalado desde 1998. Se o universo fosse a política, chamar-se-ia “dinossauro” a Joseph Blatter.

No dia de fecho da Revista 2, havia manobras para que este não se recandidatasse e para que as várias federações internacionais votassem no seu adversário, o príncipe jordano Ali bin al Hussein.

A manobra maior era a de que o “dinossauro” se demitisse e as eleições fossem adiadas por seis meses. Aí, a protagonista era a UEFA, que tem como presidente Michel Platini. Em seis meses, todos nos esqueceríamos disto.

Ainda se admiram que há quem “não vá à bola” com a bola. De futebol, bem entendido.

Dia 24 Violência

Ver ou não ver, eis a diferença

Violência na escola, no estádio, na cidade, no mar. Figueira da Foz, Guimarães, Salvaterra, Indonésia. Quatro episódios que ocuparam por estes dias os noticiários, as conversas, as emoções e as reacções. “Acto de violentar”, “brutalidade”, “opressão”, “crueldade” são alguns dos significados que os dicionários registam para a triste palavra desta semana, “violência”.

O primeiro caso não é recente (do jovem esbofeteado por colegas de escola), mas só agora foi visto. E é lamentável ter sido dado a conhecer por todo o lado com os rostos a descoberto. Para quem já tinha sido vítima, foi uma violência sobre outra.

O segundo (do homem agredido por polícia em frente aos filhos depois de um jogo de futebol) foi no domingo passado e visto imediatamente. E repetido e repetido e repetido. Não é banalização da violência, é exaustão. (E procura de audiências.)

Sobre o crime de Salvaterra de Magos (jovem de 17 anos mata outro de 14) é uma violência falar.

O quarto (dos migrantes à deriva ao largo da Indonésia) foi e continua a ser o mais invisível. Houve alguns salvamentos e relatos de que os ocupantes de um barco, que se estava a afundar, estariam “em vias de se matar uns aos outros (…) Como o barco tinha peso a mais, quiseram desembaraçar-se de uma parte das pessoas, que estavam provavelmente a procurar defender-se”.

Já foram avistados 7000 migrantes à deriva. De cada vez que os barcos tentaram aproximar-se de terra, foram rebocados de novo para alto-mar. “Desumanidade”, conclui o dicionário. Nós também.

Dia 17 Acordo

(Des)entendimento ortográfico

Explica o dicionário que “acordo” significa “entendimento recíproco” e também “parecer favorável”. O mesmo é dizer “aprovação”, “consentimento”.

No dia 13 de Maio, impôs-se oficialmente a adopção do Acordo Ortográfico de 1990. Em teoria, estamos a falar (e sobretudo a escrever) de “concordância”, “assentimento”, “convenção”, “pacto”. Na prática, nem tanto. E não é teimosia, é apreço pela legibilidade e compreensão.

“O comboio para o Porto para em Coimbra.” Percebeu o que se queria dizer? O segundo “para” significa “pára”. Agora imagine o que fazer a este slogan de um clube desportivo que até aqui gritava: “Ninguém pára o Vitória!” A versão oficial será: “Ninguém para o Vitória!” Se o desempenho atlético não os salvar, o contexto linguístico ainda menos.

Outro exemplo: “Passar a mão pelo pelo.” Esta é mais óbvia, mas ainda assim… que mal fazia deixar o acento circunflexo no “pêlo”?

O “acordo” de que aqui se fala valoriza a fonética e subestima a etimologia. É um critério discutível, mas que já de pouco adianta discutir. Os organismos oficiais vão continuar a redigir de acordo com o acordo (e tantas vezes tão mal que nem se percebe de acordo com quê), as editoras prosseguirão na produção de dicionários (facturando de acordo) e os alunos serão avaliados segundo as novas regras ortográficas (mesmo com professores em desacordo).

“Tino”, “juízo”, “reflexão” também são traduções de “acordo”. Mas o sentido que mais nos agrada nada tem que ver com isto: “Instrumento italiano, espécie de rabecão, de doze a quinze cordas, que tangidas simultaneamente produziam sons acordes.” Outra música, portanto. “Alto e para... o baile.”

Dia 10 Biografia

A vida dele dava uma sms

Todos sabemos a definição de “biografia” que o dicionário contempla em primeiro lugar: “História da vida de alguém.” E cada um de nós tem uma história única e irrepetível. Mesmo que se traduza na mais enfadonha das existências.

Divulgá-la ou não já tem que ver com o discernimento que o candidato a biografado tem sobre a sua importância relativa no universo. Se decidir tornar pública a sua vidinha, ficamos perante o segundo sentido registado no dicionário: “Obra que narra a vida de uma pessoa.” Mesmo que o leitor adormeça ao terceiro parágrafo.

Numa pesquisa no Google, escrevemos “biografia” (sem mais) e aparece-nos por esta ordem os seguintes resultados: “Sophia de Mello Breyner”, “Alves Redol”, “Miguel Torga”, “Alice Vieira”. Sabemos que o motor de busca também sabe os nossos interesses, mas logo nos apetece ir inteirar-nos melhor de outras vidas do que aquela que a actualidade impõe: a de Pedro Passos Coelho. É mais um momento em que amaldiçoamos a troca do conhecimento pela informação. Mas trabalhamos num jornal, como conta a nossa triste “autobiografia”…

Nova tentativa no Google, acrescentando “Pedro” à palavra que aqui nos traz. Primeiros resultados: “Pedro Chagas Freitas”, “Pedro Passos Coelho”, “Pedro Abrunhosa”, “Pedro Tochas”.

Somos o Que Escolhemos Ser é o título da biografia do actual primeiro-ministro, da autoria de Sofia Aureliano, assessora do grupo parlamentar social-democrata. Mas também podia corresponder a um romance sobre a vida de António Costa, da autoria de um qualquer assessor do grupo parlamentar socialista. Se o primeiro poderia fazer uma sinopse à volta da sms do seu parceiro Paulo Portas, o segundo poderia assinar a sua própria sentença em linguagem abreviada. Ambos com a salvaguarda de que tudo é “irrevogável”.

Dia 3 Sismo

Quando a terra treme

“Abalo ou tremor de terra causado pela deslocação das placas tectónicas da Terra”, lê-se num dicionário comum. A Enciclopédia Geográfica dá mais pormenores que ajudam a perceber o recente sismo no Nepal: “As zonas de maior intensidade sísmica, ou cinturas sísmicas, coincidem com muita frequência com margens de placas, o que sugere estarem essas zonas intimamente relacionadas com a tectónica das placas. Uma das cinturas, o chamado Anel de Fogo, rodeia o oceano Pacífico. A segunda cintura estende-se para oeste através da China, ao longo dos Himalaias, e do Irão e depois para norte e sul do Mediterrâneo.”

Foi na “zona de colisão” entre a placa tectónica indiana e a placa eurasiática que ocorreu o abalo de magnitude 7,8 (escala de Richter). Yann Klinger, do Centro Nacional de Investigação Científica francês, explicou à AFP: “A placa indiana desloca-se para norte ao ritmo de quatro centímetros por ano”, enfiando-se cada vez mais um pouco por baixo da eurasiática. A este fenómeno chama-se “subducção”.

Milhares de mortos (estima-se que se alcance os 10 mil) e de desalojados, com mais de um milhão de pessoas a precisar de ajuda alimentar, foi o resultado desta “vibração da crosta terrestre”. Katmandu deslocou-se uns metros e viu a sua morfologia alterada. “A zona em redor de Katmandu terá ‘escorregado uns três metros para sul’ (...) [e] a região da capital nepalesa ganhou cerca de 50 centímetros de altitude enquanto uma outra zona, mais a norte, desceu 50 centímetros”, noticiou-se na quarta-feira.

Há duas maneiras de medir um sismo — pela sua intensidade (efeitos e estragos, escala de Mercalli) e pela sua magnitude (amplitude das ondas sísmicas, escala de Richter). Desconhece-se ainda escala capaz de medir o desespero, a perda e o sofrimento.

Abril

Dia 26 Auditoria

Os magistrados também se auditam

Uma “auditoria” é a “análise e avaliação do estado contabilístico de uma empresa ou instituição feita por um especialista em assuntos financeiros e económicos”. Esse especialista, o “auditor”, é “um magistrado que se pronuncia, num tribunal ou repartição, sobre a legalidade dos actos ou a interpretação das leis, num caso concreto”.

Mas os magistrados também se auditam. E nem sempre corre bem. “Auditoria revela descontrolo financeiro no Tribunal Constitucional”, noticiou-se na quarta-feira. O Tribunal de Contas, o “auditor”, destacou “o facto de o sistema de controlo interno do tribunal fiscalizado ser ‘deficiente’, de não existir um manual de procedimentos de controlo interno, assim como o de não se registar o cumprimento dos ‘princípios e regras orçamentais’ relativamente a 1,4 milhões de euros no âmbito da ‘contabilização da receita e da despesa no orçamento’”.

Irregularidades no pagamento do subsídio de refeição (“que os juízes recebem em acumulação com as ajudas de custo”), na atribuição de veículos a 13 juízes-conselheiros (“o Tribunal de Contas salienta que apenas o presidente e o vice-presidente do Tribunal Constitucional têm direito a veículo oficial”) e na concessão do bar (“explorado por particulares sem contrato de arrendamento, autorização e mesmo sem pagar renda”) foram algumas das conclusões.

O tribunal auditado registou “com preocupação” que o tribunal auditor emitisse “recomendações aparentemente assentes em deficiente compreensão do seu estatuto constitucional próprio, do qual decorre a sua autonomia administrativa e financeira”.

Um “auditor” é também um “ouvidor” ou “ouvinte”. Um “auditado” pode sempre dizer o que quiser e até falar muito bem, mas tem de saber fazer contas. Sobretudo com dinheiros públicos.

Dia 19 Naufrágio

Morrer a fugir da morte

“Perda de uma embarcação por acidente no mar” é a definição de “naufrágio”, a Palavra da Semana. Gostaríamos que fosse mais feliz do que a da semana anterior, “desumanidade”, mas o mundo não deixa.

Eis a notícia que ditou a escolha: “Era um dia calmo quando o barco se lançou à água de um porto na Líbia para fazer mais ou menos 300 quilómetros até ao Sul de Itália. A rota é uma das mais procuradas e uma das mais mortíferas. Não foi a única embarcação a ir; mas, em menos de 24 horas, ficou em apuros. Os detalhes são escassos, mas pensa-se que a causa do naufrágio possa ter sido que, ao ver um navio comercial perto, a maioria dos passageiros foi para um dos lados, levando o barco a virar-se. Quando a guarda costeira italiana chegou, resgatou 145 pessoas, levou nove cadáveres, e desde então não foram encontrados mais corpos ou sobreviventes. Podem ter morrido entre 350 e 400 pessoas.”

Sinónimos de naufrágio: “desgraça”, mas também “fracasso”. Têm fracassado as operações de resgate. Primeiro, a italiana Mare Nostrum; depois, a europeia Tritão. O negócio e a tragédia continuam. A desumanidade também.

“O medo de morrer não é dissuasor”, comentou a porta-voz do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados na Europa do Sul, Carlotta Sami. O desespero foi registado pelo diário The Guardian, na voz de um sírio que se prepara para sair do Egipto. “Mesmo se houvesse uma decisão dos Governos de afundar os barcos com migrantes, ainda haveria pessoas a ir de barco, porque muitos consideram-se já mortos.”

Desde Janeiro, 900 pessoas terão perdido a vida a tentar entrar por mar na Europa. A alternativa é morrer na outra margem.

Dia 12 Desumanidade

Violência em várias geografias

Diz o sábio dicionário que “desumanidade” significa “comportamento desumano” e “acção que está repleta de selvajaria e violência”. Não faltam exemplos reais, recentes e em várias geografias. “Atrocidade”, “barbaridade”, “brutalidade” e “crueldade” são alguns dos sinónimos que qualquer um de nós reconhece, mesmo que (felizmente) nunca os tenha presenciado ou vivido.

O assassinato de estudantes na Universidade de Garissa, Quénia (pouco nos importa se eram cristãos ou não) e a “impiedade” em Yarmouk, perto de Damasco (pouco nos importa que nome dão à sua fé e em que deus acreditam) fazem-nos ter vergonha de pertencer a uma espécie de que se esperava um estádio bastante superior à da “animalidade” natural da sobrevivência.

“Por causa da escalada nos conflitos, os refugiados palestinianos estão praticamente isolados em casa, como explicou na segunda-feira Christopher Gunness, da UNRWA. ‘A situação em Yarmouk desceu aos mais baixos níveis da desumanidade’, disse ao New York Times”,  noticiou-se por estes dias.

Outra notícia reveladora da “despiedade” dos nossos tempos: “Um sobrevivente repetiu para as câmaras da televisão a ameaça dos jihadistas: ‘Se encontrarmos algum de vocês a ajudar o Aknaf [Beit al-Maqdis] ou o Governo, cortamos-vos as cabeças.”

Como não queremos também nós render-nos à “barbárie” e desistir da espécie humana, agarramo-nos a exemplos como este, que o Expresso noticiou: “John Mwangi Maina (...) tinha 20 anos. Foi morto quando decidiu voltar à universidade para salvar a sua namorada, que ficou presa dentro do estabelecimento de ensino.” A humanidade há-de prevalecer. Sempre.

Dia 5 Créditos

Quando 4 é igual a 36

“Créditos” há muitos, mas alguns valem mais do que outros. E não é só nos bancos, na educação também. Miguel Relvas e outros ex-alunos da Universidade Lusófona sabem disso e nesta semana voltaram a ser notícia.

“O Ministério da Educação e da Ciência deu instruções à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para ‘declarar, em 152 processos, a nulidade dos actos’ de atribuição de créditos/equivalências a alunos que frequentaram a instituição desde 2006. E para proceder à ‘cassação de diplomas e certificados’. Um dos processos em causa é o do ex-ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares Miguel Relvas, que se licenciou na Lusófona, em 2007”, escreveu-se no PÚBLICO.

No dicionário, o significado que aqui se adequa para a palavra “crédito” surge em 9.º lugar e diz assim: “Unidade de valor que, em certos cursos, corresponde a um certo número de horas de trabalho realizado ou de formação concluída.” Exemplo dado: “O curso corresponde a vinte créditos.”

Na Universidade Lusófona, para a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais do ex-governante, e ao abrigo do sistema interno de reconhecimento e creditação de competências, 4 foi igual a 36. (Miguel Relvas realizou quatro cadeiras de um plano de estudos de 36.)

Torna-se difícil dar “crédito” (“confiança que alguém ou alguma coisa nos inspiram que leva a que se acredite na sua validade”) a uma formação assim.

Há outro exemplo registado, “político de reconhecido crédito”, que ilustra a explicação “capacidade adquirida num certo domínio de actividade”, “credibilidade”. Mas aí os protagonistas são outros.

Março

Dia 29 Destruir

Despenhar um avião com vidas dentro

Não é o primeiro significado que o dicionário regista para a palavra “destruir”, mas é o que trazemos para aqui: “Causar a morte, matar, exterminar.” Na terça-feira, um piloto de 28 anos, aos comandos de um Airbus A320, quis “destruir o avião”, segundo afirmou o procurador-geral de Marselha. E conseguiu.

Fez despenhar o aparelho nos Alpes franceses e assim “eliminou” 150 vidas. Andreas Lubitz terá também “destruído” parte da vida dos familiares que aguardavam a chegada dos passageiros. Como a dos pais dos 16 jovens estudantes alemães do ensino secundário, que regressavam de uma viagem de intercâmbio escolar. E certamente conseguiu “desfazer” a alegria de todos os familiares e amigos das vítimas.

“Deitar abaixo o que está construído”, “derrubar”, “arrasar”, “devastar”, “fazer desaparecer” são outras explicações para o verbo “destruir”. Mas não será fácil explicar o sentido desta “destruição” voluntária por parte de alguém também tão jovem ainda.

Na quinta-feira, o jornal Le Monde recordou uma dezena de dramas desta natureza na aviação civil, naquilo a que chamou “assassinato-suicídio”: “O exemplo mais célebre data de 31 de Outubro de 1999, quando o voo 990 da companhia da companhia egípcia Egyptair se despenhou ao largo da costa de Massachusetts com 217 pessoas a bordo.”

Em nenhum dos casos se ficou a saber as motivações mais profundas dos pilotos. Se políticas ou psicológicas. O resultado sabe-se. Destrói.

Dia 22 Lista

Rol de contribuintes VIP e de pedófilos

Uma “lista” é, antes de mais, uma “faixa”, “risca” ou “tira estreita e comprida”. E vem do alemão, lista (que se escreve tal qual). Vamos abster-nos de falar da de Schindler, pois pode cair mal na União Europeia. O dicionário acaba por chegar à definição que queremos trazer para aqui e espelha os últimos dias da agitação político-mediática portuguesa.

“Lista” é uma “série mais ou menos extensa de nomes de pessoas ou coisas postos por escrito uns após outros”, mas também “catálogo”, “rol”. Até quinta-feira havia duas demissões provocadas pela chamada “lista VIP” de contribuintes, com existência confirmada, segunda a Visão, por Vítor Lourenço, chefe dos serviços de auditoria: “Nós, a AT [Autoridade Tributária], criámos um grupo associado a pessoas com cargos políticos, mais mediatizadas. Existe um pacote de identificação de pessoas, a que chamamos, entre aspas, VIP, em que nós identificamos online eventuais acessos indevidos.”

A lista VIP fez outra vítima: José Maria Pires, subdirector-geral dos Impostos, que pediu a demissão na quarta-feira. “Paulo Ralha (...) defendeu que há fortes indícios de que a lista VIP foi entregue pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, ao director da Segurança Informática.”

Outra “lista” esteve na ribalta, defendida por Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça: “Deve haver uma referenciação em função de um grau de perigosidade, um sistema semelhante à Lei de Megan.” Ou seja, legislação que obriga as autoridades à divulgação junto da população da localização de pedófilos condenados por crimes sexuais contra crianças.

“Listra” é sinónimo de “lista”: “Sinal preto que se estende desde a cernelha até à cauda do cavalo.” Próprio das cavalgaduras.

Dia 15 Dívida

Passiva, pública e de gratidão

Palavra de origem latina, debita, que se traduz por “coisa que se deve”. Há vários tipos de dívida: “activa” (a que nos é devida), “consolidada” (a que vence juros sem prazo para reembolso do capital), “flutuante” (a que tem vencimento determinado), “pública” (a do Estado) e, por último, “passiva” (a que devemos).

Foi uma dívida deste tipo (“passiva” e que durou cinco anos), à Segurança Social e às Finanças, que Pedro Passos Coelho teve dificuldade em justificar na quarta-feira no Parlamento. Na verdade, até nem teve muita dificuldade, já que “passiva” foi também a atitude do maior partido da oposição, o Partido Socialista.

O seu líder, António Costa, considerou estar “tudo esclarecido” sobre as contribuições do primeiro-ministro. Talvez este lhe fique com uma “dívida de gratidão”, isto é, “dever moral por favor ou bem recebido”. Ou talvez aquele queira capitalizar esta “dívida” mais adiante, em campanha eleitoral.

“(...) o chefe de Governo referiu-se aos seus atrasos no pagamento das contribuições à Segurança Social como ‘falhas’. E assumiu: ‘Lamento profundamente não ter tido conhecimento’ desses pagamentos enquanto trabalhador independente nos anos 1990. ‘Não tenho nenhuma situação por regularizar seja em matéria fiscal ou de Segurança Social’”, escreveu-se no PÚBLICO. E também se deu conhecimento do que disse Ferro Rodrigues: “Fez mal ao não ter aproveitado para pedir desculpa a Portugal, aos seus eleitores, aos portugueses.” E pronto, vá lá à sua vidinha, sr. primeiro-ministro.

Em sentido figurado, uma “dívida” é um “dever”, mas também uma “ofensa, de que se espera tirar desforra”. Em certas circunstâncias, diz-se que é “pecado”. Mesmo se não se é crente.

Dia 8 Geografia

O território comanda a vida

“A geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.” Esta frase do geógrafo Yves Lacoste tornou-se título de livro em 1976. Polémico pela verdade que encerra, foi considerado subversivo pelos académicos franceses, que, para não pronunciarem a frase, se referiam à obra como “o livro da capa azul”.

Concordando-se ou não com a linha ideológica deste académico nascido em Marrocos, o certo é que o seu trabalho derrubou o paradigma da geografia regional francesa e transformou-o num dos principais teóricos da geografia moderna.

E o que diz o dicionário enciclopédico sobre “geografia”? “Ciência que estuda, descreve e explica a superfície terrestre, a distribuição espacial e as relações recíprocas dos fenómenos físicos, biológicos e sociais que nela ocorrem.” Parece pacífico.

Um dicionário comum fala em “descrição quanto às raças, línguas, instituições (geografia política), quanto à história (geografia histórica) e quanto à Terra, nas suas relações com os outros corpos do sistema planetário (geografia matemática)”.

Pela enciclopédia, também se fica a saber que a “geografia” nasceu na Grécia (sempre a Grécia...), “quando os gregos estabeleceram a geometria matemática, afirmaram a redondeza da Terra e mediram o arco de meridiano (Eratóstenes)”. Estava-se no séc. III a. C.

Deste então, a Terra manteve a sua “redondeza”, mas pouco mais. As fronteiras andaram para lá e para cá, com o território a comandar a vida dos países e dos povos. Quase sempre com muito sofrimento.

E numa altura em que parecia que a globalização ia esbater as fronteiras, mais muros se ergueram. Nem todos visíveis.

Dia 1 Isenção

Há a boa (para jovens) e a má (para clubes de futebol)

A “isenção” de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde para todos os menores de 18 anos foi uma boa notícia da semana. A “isenção” de taxas e compensações urbanísticas que a Câmara de Lisboa propôs que fosse concedida ao Benfica foi má. A informação em si não é desta semana, mas o valor real da “dispensa” pretendida por António Costa sim: 4,6 milhões de euros, segundo Helena Roseta.

Em concreto, “isenção” significa, para um dos dicionários consultados, “acto de isentar, eximir ou dispensar de algo”. O exemplo dado está algo ultrapassado, porque ainda fala em “sisa”: “Dispensa do imposto de sisa.” Mentalmente, qualquer cidadão que seja proprietário de uma habitação ou refém de uma hipoteca pode substituir a palavra “sisa” pela sigla “IMI”: Imposto Municipal sobre Imóveis. E é muito provável que já não esteja “isento” (“desobrigado”) de o pagar.

Já a 17 de Fevereiro José Vítor Malheiros escrevia no PÚBLICO: “Os perdões e as isenções foram concedidos porque o Benfica é uma organização poderosa, influente, e a lei não é igual para todos. Há uma lei para um pequeno proprietário que faz uma obra ilegal e é obrigado a pagar multas e a demolir o que construiu e outra para uma grande empresa como o Benfica.” Ser um candidato a primeiro-ministro a legitimar a diferença de tratamento não nos “isenta” de desconforto.

Há um significado para “isenção” que remete para “equidade”, “imparcialidade”. A dualidade de sentidos fica bem expressa nesta circunstância. A falta de “isenção” (no sentido de “justo”) levou à “isenção” (“libertação”) de taxas.

Última explicação: “Autonomia parcial ou total de algumas ordens ou instituições religiosas em relação à autoridade do Ordinário do lugar.”

Fevereiro

Dia 22 Extensão

Esticar o tempo

“Acção de aumentar alguma coisa, de a tornar maior ou de a espalhar por uma superfície mais ampla, mais vasta.” Eis o primeiro significado de “extensão” que o dicionário regista. Seguem-se outras definições relacionadas com espaço, mas era de tempo que andávamos à procura, para aqui falarmos da “extensão do prazo dos empréstimos” pedida pela Grécia ao Eurogrupo. E encontrámos: “Intervalo de tempo em que algo ocorre, duração.”

Notícia no dia de fecho da Revista 2: “A Grécia enviou nesta quinta-feira a Bruxelas o pedido de extensão, por seis meses, dos empréstimos internacionais. A notícia foi confirmada pelo presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, na sua conta de Twitter: ‘Recebi o pedido grego para uma extensão de seis meses’, disse o responsável holandês, que revelou ainda o agendamento de uma nova reunião do Eurogrupo esta sexta-feira para discutir a proposta.”

Hoje já se saberá a resposta ao pedido. Logo na quinta-feira, a Alemanha, como se previa, considerou a “proposta insuficiente”, mas o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, acolheu bem o texto do Governo grego. E disse: “Pecámos contra a dignidade dos povos, especialmente na Grécia, em Portugal e também na Irlanda. Eu era presidente do Eurogrupo e pareço estúpido em dizer isto, mas há que retirar lições da história e não repetir os erros.”

Voltando ao dicionário, há uma frase que se adequa a este contexto político: “As consequências estão aí em toda a sua extensão.” Ou seja, “em toda a sua amplitude”. No espaço e no tempo.

Dia 15 Fuga

Partir sem regresso prometido

“Retirada apressada e desordenada de populações devido a ameaça ou perigo iminente”, é uma das explicações do dicionário para a palavra “fuga”. Outra: “Abandono rápido de um local onde se está habitualmente, para escapar a alguém ou a alguma coisa.” Terá sido esta a opção desesperada de milhares de civis ucranianos após a tentativa de tomada pelos separatistas do “importante nó ferroviário a nordeste de Donetsk”, nos últimos dias. Uma nação a tentar equilibrar-se no trapézio que sempre balança entre a Europa e a Rússia. Hoje, domingo, será dia de baixar as armas, segundo as notícias de quinta-feira: “Um cessar-fogo vai entrar em vigor na Ucrânia no próximo dia 15, anunciou o Presidente russo, Vladimir Putin, no fim de uma maratona negocial em Minsk. O Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, diz que a Ucrânia deverá recuperar o controlo sobre a fronteira conjunta até ao final do ano.”

Não foi uma “fuga de informação”, ou seja, não se tratou da “acção de deixar escapar algo que se devia manter secreto”. Foi uma declaração pública, decorrente de um encontro promovido pelo chefe de Estado francês, François Hollande, e pela chanceler alemã, Angela Merkel. Mas logo foram avisando que não houve “consenso em todos os pontos” e que “grandes obstáculos” ficaram por ultrapassar.

Não está portanto garantido um regresso feliz aos que saíram em “debandada”.

“Fuga” também significa “subterfúgio” ou “acção de se esquivar, de uma forma subtil, ao cumprimento de uma obrigação”.

O melhor de todos os sentidos é o de “composição musical que resulta da combinação de linhas melódicas que se imitam, iniciando-se com um tema principal apresentado e desenvolvido por cada uma das vozes, segundo regras definidas (contraponto)”.

J.S. Bach foi mestre da “fuga”. Escutá-lo é promessa de regresso feliz.

Dia 8 Ameaça

Vontade de fazer mal e perigo iminente

“Ele que se cuide.” É isto uma ameaça? Diz o dicionário: “Palavra, gesto ou acto com que se exprime a vontade de fazer mal a alguém, caso não faça o que se pretende.” E mais acrescenta sobre (e não sob) “ameaça” — palavra de origem latina: “Manifestação, sinal que leva a acreditar que algo de desagradável ou temível pode ocorrer.” E ainda: “Advertência.”

Quem fez um “aviso” assim na terça-feira, via Diário de Notícias, foi Mário Soares, ex-Presidente da República, ao juiz Carlos Alexandre, por este ter ordenado a prisão preventiva de José Sócrates, ex-primeiro-ministro. Provavelmente, quis alertá-lo para a possibilidade de também ele poder vir a ser “ex”-magistrado.

“Carlos Alexandre que se cuide”, escreveu. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) não gostou e em comunicado fez saber que “os juízes portugueses não podem silenciar a ameaça proferida”. Crime (eventualmente), disseram: “O presidente da ASJP, Mouraz Lopes, admite que, ‘como é lógico e evidente lendo a lei’, as declarações de Soares poderão eventualmente configurar um crime de coacção sobre um titular de um órgão de soberania.”

O verbo “ameaçar”, ao terceiro sentido, conforme o dicionário, quer dizer: “Dar mostras de que algo de desagradável ou de temível pode acontecer.” Daí o conselho do ex-Presidente.

Sinónimos: “Intimidar” e “amedrontar”. Na linguagem europeia e em se tratando de negociações do BCE com a Grécia e outros “países falidos”, opta-se pelo verbo “pressionar”. Parece mais civilizado. É uma ameaça de gravata.

Dia 1 Grego

Que é ininteligível (para alguns)

“Não percebo nada de mecânica. Isso para mim é grego.” Esta é uma das frases que o dicionário escolhe para mostrar o sentido de “grego” como algo “que é ininteligível, inacessível”. Facilmente se consegue imaginar Angela Merkel a dizer esta frase, não a propósito de mecânica, mas de democracia. Mais ainda se imagina Passos Coelho, que perante a “incompreensão” do programa de Alexis Tsipras, vencedor das eleições na Grécia, logo disse tratar-se de “um conto de crianças”. (Pobre de quem não escutou histórias para a infância no tempo certo e escolheu criar mais tarde mundos de faz-de-conta.)

O adjectivo “grego” significa também “da Grécia moderna, país da Europa”. E ainda “da antiga Grécia”. Exemplos: “Os filósofos gregos”; “mitologia grega”; “tragédia grega”. Este último muito vaticinado desde que o Syriza chegou ao Governo. Alguns europeus ficaram expectantes (ansiosos…) pelo momento da “tragédia”. Ora porque se aliou ao partido conservador e nacionalista Gregos Independentes, numa espécie de desconfiança perante quem quer “agradar a gregos e a troianos”, ora porque se mostrou determinado a cumprir promessas eleitorais centradas nas pessoas comuns. E não em bancos. O que remete para outra frase feita: “Ver-se grego para” (experimentar grande dificuldade em resolver alguma coisa, ver-se atrapalhado).

Na quinta-feira, o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, disse sobre o encontro com Tsipras: “Raramente senti durante o meu mandato que tive uma discussão tão construtiva e aberta.” Como se escreveu por estes dias, talvez o mantra do novo primeiro-ministro da Grécia esteja certo: “A esperança começa hoje.” Para gregos e troianos.

Janeiro

Dia 25 Urgências

Lugares de emergências adiadas

Plural de “urgência”, a palavra associa-se imediatamente a hospital e a necessidade imperativa e urgente de tratamento. Mas nem sempre corre como se espera. Nem no dicionário. O sentido de “caso muito grave, que necessita de intervenção médica imediata, pronta” é o terceiro registo a surgir. O que, em procedimento hospitalar, corresponderia a “pulseira amarela” (as prioritárias são a vermelha e a laranja).

Num outro dicionário, “serviço de um hospital onde se prestam cuidados médicos e cirúrgicos com carácter de emergência” aparece só em sexto lugar. Portanto, para lá de qualquer cor (a escala cromática dos hospitais só vai até azul, antecedendo-lhe a pulseira verde).

“Pressão nas urgências obriga Ministério da Saúde a reabrir 569 camas”, foi título de notícia na terça-feira. Isto depois de, em poucas semanas, ocorrerem oito mortes em serviços de urgência de vários hospitais, alegadamente por períodos de espera acima do recomendado. Emergências adiadas.

Leal da Costa, secretário de Estado adjunto da Saúde, disse: “Lamentamos todas as mortes e não deixaremos de encontrar eventuais falhas sistémicas ou pessoais que serão devidamente corrigidas.” Mas recusou falar em “período de emergência ou caos generalizado” e informou que “há mais 471 camas prontas”.

“Urgência” também significa “aperto”, “pressa”.

O ministro da Saúde, Paulo Macedo, terá de voltar ao Parlamento para explicar novas medidas para o melhor funcionamento das urgências. Espera-se que diminua a espera.

Dia 18 Massacre

A geografia conta (ou não?)

Escreve o dicionário como primeiro significado do substantivo masculino singular “massacre”: “Acto ou efeito de massacrar.” Seguem-se quatro sinónimos, todos cruéis: “mortandade”, “carnificina”, “matança”, “chacina”. A palavra vem do francês, com idêntica grafia (“massacre”) e sentido. Mas não é de França que queremos falar. Menos ainda de Paris: ça suffit. Isto é: chega. É à Nigéria que daremos “tempo de antena”. Modesto, ainda assim.

“Islamistas da Nigéria poderão ter matado 2000 pessoas na tomada de Baga”, foi um dos títulos de segunda-feira. Dia em que muitos europeus e americanos (vulgo, “o mundo”) se comoviam ainda com o ataque à redacção do jornal satírico Charlie Hebdo.

Ignatius Kaigama, arcebispo nigeriano, pediu: “É necessário que essa atitude [reacção à violência aos atentados em Paris] exista não apenas quando se trata da Europa, mas também quando se trata da Nigéria, do Níger, dos Camarões e de outros países pobres.” Pois.

A afirmação aconteceu após mais um fim-de-semana sangrento. “Três mulheres-kamikaze (entre elas, uma criança de dez anos) mataram pelo menos 23 pessoas no Nordeste do país, onde o Boko Haram [o nome significa ‘contra a educação ocidental’] controla uma vasta região .”

O que de facto se passou é sempre difícil de saber. Em certas latitudes, ainda mais, mas escreveu-se: “Uma coisa parece certa, e confirmada por fontes governamentais citadas pelo Washington Post: Baga, que tinha uma população de 10 mil pessoas, já não existe.”

O dicionário dá exemplos concretos de frases comuns. Como esta: “Não foi um combate, foi um massacre de pessoas inocentes.” Pois.

Dia 11 Sátira

Por humor se mata, por humor se morre

“Processo ou técnica literária que combina o tom jocoso ou irónico e prazenteiro com a crítica às instituições, aos indivíduos, às ideias ou aos costumes”, lê-se no dicionário, que logo dá um exemplo: “Um jornal dedicado à crítica e à sátira.” Como o Charlie Hebdo, alvo de um ataque na quarta-feira em Paris. Morreram 12 pessoas.

Comparando com outros ataques e tragédias, pode até parecer desproporcionado o negro de tantas capas de jornais. Não aconteceu, por exemplo, quando, no final de 2014, uma escola no Paquistão sofreu um também bárbaro atentado. Morreram 140 pessoas, a maior parte crianças e adolescentes.

Mas o episódio de Paris tem um peso simbólico maior para as redacções. Foi “um atentado à liberdade”, “um assalto à democracia”, um “crime contra a liberdade”, a “liberdade assassinada”, escreveu-se em diferentes manchetes de publicações de vários países ocidentais. Outras, mais assertivas, ditaram o futuro, “eles não matarão a liberdade”, “continuemos o combate”, “viva a liberdade”.

Na definição de “sátira”, o dicionário não fala especificamente de cartoon, mas de “obra crítica, picante, irónica ou jocosa”. Os irmãos Kouachi e Hamyd Mouradi (autores do atentado) não souberam perceber o que isso é. O pior é que não estão sozinhos.

Em resposta às mortes, em particular às do director e desenhador Stéphane Charbonnier (Charb) e dos cartoonistas Jean Cabu, Georges Wolinski e Bernard Verlhac (Tignous), dezenas de ilustradores responderam com as suas armas: o desenho, a criatividade e o humor. Sem medo. Lápis e canetas são os elementos que mais se repetem nas imagens, divulgadas nas redes sociais com a hashtag #JeSuisCharlie. Mas também se reproduz a ideia de que o humor mata. E tudo isto porque “Deus é grande”. Ninguém diria.

Dia 4 Memória

O que fica do que passa

A frase que, em tempos, Eduardo Prado Coelho escolheu para as suas crónicas no PÚBLICO veio-nos à “memória” precisamente quando queríamos falar dela. É plágio, sim senhor. Apenas possível pela “capacidade de conservar e de evocar experiências e conhecimentos de eventos passados, que se manifesta nos hábitos e nas lembranças”, como explica o dicionário quando define este substantivo feminino singular.

“Lembrança” e “recordação” são sinónimos de “memória”. Nos finais de ano, não se consegue escapar às listagens de acontecimentos relevantes: os de “boa memória” (que deixaram recordação positiva) e os de “má memória” (recordação triste ou desagradável).

Talvez o cronista que mais se esforça por nos manter sempre a “memória” activa seja José Pacheco Pereira, a que junta o exercício da reconstituição cronológica. “Tenho insistido nesta questão da cronologia rigorosa, até porque ela nos ensina muitas coisas sobre como é que evoluiu o processo nestes seis anos de lixo e, por isso, altera a nossa percepção sobre as relações de causa e efeito. Não é uma tarefa que possa ser feita apenas puxando pela memória, porque a poluição do que aconteceu por interpretações políticas a posteriori é grande”, escreveu a 27 de Dezembro. E lembrou “a perda de memória que os media trazem à sociedade”.

“Memória de grilo”, “de galo” e “de pintainho” significam “memória fraca”. No Alentejo, a palavra também quer dizer “vento frio e cortante, vulgarmente conhecido por barbeiro”.

Um dos sinónimos de “memória” é “memorando”. Mas esse é para esquecer.

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