Entrevista

Liberdade de informação: “Órgãos de comunicação enfraquecem quando vão a jogo com as redes sociais”

Diogo Pires Aurélio, professor na Universidade Nova de Lisboa, doutorado em Filosofia, alerta para as consequências da revolução da informação sobre a política, as universidades e o jornalismo.

Rui Gaudêncio

A sociedade contemporânea vive sob uma série de novas tensões geradas pela produção avassaladora de informação. A mediação, na qual se baseia a democracia representativa, está em risco, admite este académico. As implicações são de longo espectro e estão por medir.

Vivemos rodeados de informação e, ainda assim, é uma utopia. Como é possível?
A utopia da informação tem um impacto que, porventura, ainda não se mediu com todos os prós e os contras. A utopia da comunicação total tem consequências na economia, no modo de vida, na sociedade e, inclusivamente, no sistema político. Na utopia da comunicação total ou, se quiser, a utopia da transparência, só agora começam a aparecer reflexões sobre perversões implícitas à ideia de transparência. O que as pessoas viram na revolução da comunicação foram as vantagens para comunicar a nível pessoal, as vantagens a nível da economia e da finança, e para a investigação científica. Há quem diga que, com a ilusão de comunicar, nos estamos cada vez mais a isolar.

Isso é verdade?                                                            
Não creio que seja totalmente verdade. Os novos meios de comunicação aproximaram as pessoas. À imagem do metro, com as pessoas a consultarem os e-mails, posso contrapor a das famílias, todos os fins-de-semana, a contactarem com os filhos e netos que vivem nos Estados Unidos, em Berlim ou na Tailândia. A ideia do isolamento é muito relativa e as formas de comunicação alteraram-se, não só em termos de grau, mas da forma como se processam.

Falou de prós e contras. Estes são os prós?
Não chamaria prós mas é daí que temos que partir. Houve uma alteração estrutural e não apenas gradativa. A investigação que hoje fazemos é diferente. Há 30 anos, qualquer doutoramento fazia-se através da permanência no estrangeiro ou, então, de visitas a bibliotecas estrangeiras onde se faziam quilos e quilos de fotocópias. Neste momento, as próprias grandes bibliotecas têm tendencialmente todo o seu espólio, sobre o qual não recaem direitos de autor, digitalizado. Portanto, o manancial que temos à mão é diferente, altera a rapidez e as exigências.

Se não falamos de prós ou contras, em que situação estamos?
Estamos num palco e numa dimensão diferentes, que geram expectativas. Uma área onde essas expectativas foram porventura mais inflacionadas foi no mundo social e político. Os meios de comunicação trouxeram para a praça pública o debate sobre dois aspectos muito críticos. Por um lado, a democracia digital, por outro, a transparência total do Estado, que são desafios a um sistema que até há poucos anos viveu sob dois paradigmas: o da democracia representativa e o segredo de Estado. Qualquer desses elementos que integraram explicita ou tacitamente qualquer sistema político tornaram-se muito difíceis de gerir. O problema que isto levanta é a definição de uma fronteira entre a informação que o Estado deve ou não disponibilizar. Na eliminação da corrupção e na participação dos cidadãos diríamos que quanto mais transparência melhor. No entanto, o Estado, para fazer política, necessita sempre de alguma reserva sobre certas matérias. Seja a luta contra o terrorismo, o processo de preparação de algumas decisões -  a luta política faz-se, também, recorrendo a elementos de surpresa - requerem  doseamento na divulgação das informações. É por isso que o Estado se sente mais confortável com quanto menos informação der. Mas toda a legislação, sobretudo a nível europeu, obriga o Estado  a injectar transparência no sistema. Mais tarde ou mais cedo, as sociedades vão-se confrontar com limites para além dos quais é impossível fazer política.

Quais são esses limites?
Ainda não sabemos. Sobre isto não há teoria, em política há questões que só a prática revela. Não há dúvida que as novas tecnologias trouxeram um ganho à democracia, os ganhos em transparência não têm comparação.

A avalanche de informação, sem mediação, não contradiz o valor da transparência?
É esse exactamente o ponto. A transparência e a liberdade de expressão são um ganho enorme nas nossas democracias mas temos de atender ao outro pilar, a representação. A representação é, sobretudo, mediação. A democracia representativa é mediação. Mediação através dos partidos, da discussão parlamentar para apurar uma decisão única. Sobretudo as redes sociais fazem crer que os novos meios de comunicação permitem, não apenas, um ganho extraordinário de transparência mas, também, um salto a nível político: a passagem da democracia representativa para a democracia participativa que vai completar a primeira. Quando se fala de democracia participativa refere-se a discussão sistemática da maior parte de decisões possíveis pela maior parte dos cidadãos, que tem um extraordinário avanço com os novos meios de comunicação. Simplesmente, os meios de comunicação não permitem aquilo para que foi destinada a representação política: fazer a agregação das diversas exigências e diversos interesses. Porque o sistema político não pode responder a esse processo utópico de imaginar que uma colectividade pode decidir em conjunto mesmo que tivesse acesso a uma informação instantânea de tudo o que está em causa. Não é só uma questão de mais ou menos informação, mas porque para se chegar a uma decisão colectiva tem de se passar pela mediação. E é nessas fases de mediação que reside o político.

A mediação também é vector do jornalismo…
Também no jornalismo. Essa mediação precisa distanciar-se do ruído, distanciar-se da fala concomitante de todos os cidadãos. Uma cidadania para se afirmar politicamente nas decisões colectivas ou nos meios de comunicação tem de se colocar no plano superior ao das exigências, opiniões e sensações dos cidadãos.

Isso não é perverso?
A perversidade está no facto de as redes sociais porem em causa não só a própria credibilidade como a expansão dos meios de comunicação. Transformaram-se num concorrente, na medida em que a maioria das pessoas os coloca em pé de igualdade.

É uma nova ideologia?
Do ponto de vista técnico não lhe chamaria uma ideologia, porque uma ideologia engloba vários aspectos da vida humana. Diria que é mais uma utopia, uma utopia muito forte, muito convincente e para qual a sociedade ainda não se dotou dos elementos necessários para responder. Da mesma forma que os jornais estão a mudar, a integrar os meios tradicionais com os novos, também os sistemas políticos estão a ir ao encontro disso. O Facebook está-se a generalizar, a chamada democracia de proximidade procura reconciliar as pessoas com os mecanismos da representação.

Os cidadãos têm hoje mais liberdade de informação?
Não diria que reduz a liberdade de informação, mas reduz e prejudica o debate de que necessita qualquer sociedade para resolver os seus problemas. No século XX falou-se muito de espaço público, que agora é altamente penalizado e tende a deteriorar-se. A ideia de espaço público, com tudo que possa ter de elitismo, era a possibilidade das pessoas não terem só informação mas discutirem a informação. A simples informação não produz decisão. As decisões colectivas precisam de passar por fóruns de discussão.

Há uma ilusão?
Uma grande ilusão. É aí que reside a utopia do grande caudal de informação, imaginar que a qualidade do espaço público melhora pelo acesso indiscriminado à informação. Há acesso à informação, mas há redução dos pólos de tratamento da informação. A sociedade não se identifica com esses pólos, e essa é outra consequência do mundo das redes sociais, porque a grande massa dos cidadãos tende a igualizar tudo o que vê, tudo o que lê, a não hierarquizar.

Um tweet pode ter o mesmo valor que uma comunicação científica?
Tendencialmente, o que vai produzir uma certa mediocracia. De um ponto de vista formal, a tecnologia coloca uma miríade de informações com o mesmo aspecto. Existem blogues a dizer monstruosidades do ponto de vista do conhecimento com todos os protocolos científicos, que são mais apelativos do que os focos onde se faz esse conhecimento. Daí que tenda a sedimentar-se uma opinião pública muito assente no vago, nas ideias gerais e no imediato, no último telejornal, na última hora.

No conceito de última hora?
Exactamente, ele vem daí. Os alunos atribuem a mesma autoridade a qualquer tipo de foco. A autoridade da última hora tende a votar ao desinteresse a mediação, seja a política ou a do conhecimento.

Isso passa pelo fim da memória, o horror à especialização, porque os menos especialistas são mais baratos, e à banalização dos conteúdos?
Esse é o lado mais perverso. A produção de informação pelos órgãos de comunicação vai a jogo com as redes e o resultado global tende a enfraquecer. Há outra consequência tanto ou mais grave que os jornais, embora se dê menos por ela. O efeito devastador que tudo isto pode ter, a curto prazo, nas Ciências Sociais e nas Humanidades. Não é só o pouco conhecimento da história ou o desaparecimento das especialidades. São ciências muito frágeis à tentação do senso comum, da generalidade, à linguagem do dia-a-dia.

É uma deriva do facilitismo?
Exactamente. É muito fácil que uma Sociologia, uma Economia, uma Ciência Política ou Ciências da Comunicação sejam ocupadas pelo discurso do bom senso porque é o que as pessoas lêem nos jornais, vêm na rádio ouvem na televisão. Quando o trabalho da Universidade é desinstalar as pessoas do senso comum. No senso comum não há problemas. O senso comum tem respostas para tudo. Esse discurso trazido para as Ciências Sociais e as Humanidades é avassalador. O contributo das Universidades para o discurso do cidadão comum passa a ser zero, porque é apenas eco do que diz o senso comum, quando a função das Universidade era questionar, em cada momento, a linguagem que se usa na política e na conversação mais banal que temos.

Isso torna o cidadão mais manipulável?
A perda de sentido crítico na universidade é mau para a política porque a universidade deveria ser o respaldo para políticas mais ousadas que expunham programas não subjugadas ao senso comum que arrastam para o imediato. Em democracia predominam os votos individuais, mediáveis pelos partidos, e os partidos face a este desafio dos novos meios de comunicação tentam chegar mais facilmente ao eleitorado. Para o fazerem, tendem a dar uma importância aos especialistas dos processos de comunicação. Sejam as empresas de comunicação, os spin doctors, tudo isso tem grande importância hoje nos partidos políticos. Todas essas especialidades são iminentemente técnicas. Os partidos tendem a responder a essa fragmentação dos eleitores apresentando programas cada vez menos ideológicos, mais alargados, menos comprometedores, mais genéricos e flexíveis em função da situação eleitoral e do público-alvo. Ao fazerem isso, os partidos têm ganhos na conquista de votos, mas deixam perceber o seu lado excessivamente pragmático e arriscam a ser olhados, como já o são, como entidades que andam na luta pelo poder com menos empatia que os clubes de futebol. O descrédito existe também na actuação social dos políticos, não apenas nas instituições. 

A política do Twitter substituiu o espaço público?
Tende a substituir. A política do Twitter permite ao eleito ter presente as exigências e preferências dos seus eleitores, mas dá aos eleitores a convicção, a expectativa que as suas preferências serão atendidas. Ora, no momento da decisão, e isso é político, forçosamente uma parte das preferências não é atendida. Isto gera a utopia que a política pode atender mais reivindicações, mas só funciona numa eleição. Na próxima ida às urnas, virá a factura das promessas não cumpridas e o consequente descrédito. A política é fazer escolhas, é não atender a uma parte das exigências por não haver recursos suficientes.

O discurso dominante sai mais reforçado com o senso-comum, as generalidades?
Paradoxalmente, pareceria que a sociedade estaria muito mais crítica perante as ideologias de desconfiança face ao sistema. Curiosamente, está muito mais permeável à ideologia dominante, pela ignorância dos pólos de mediação, sejam universidades, meios de comunicação ou fundações. Tudo isso tem cada vez menos impacto na sociedade. O grande paradoxo da sociedade global é que ela tem cada vez mais informação, mais inovação, mais comunicação mas não encontrou em termos políticos os mecanismos para processar de forma virtuosa estas potencialidades. As plataformas de decisão estão por natureza condenadas a decepcionar.

Esta situação encerra perigos?
Todas as épocas têm perigos, todos os sistemas políticos conviveram com as suas ameaças, a crise da representação política, por exemplo, foi o tema principal que durante 20 anos se discutiu na República de Weimar. O que se alterou foi a mudança do espaço público o que leva a imaginar ser possível alterar completamente o sistema político, há mesmo quem fale de pós-democracia. Quanto a mim há uma certa precipitação semântica, as estruturas podem ser aperfeiçoadas, até porque o ambiente da comunicação não prestigia as estruturas intermédias, tende a banalizá-las. Quando a opinião científica, apurada através de critérios e metodologias utilizadas pela comunidade científica, é preterida por uma simples opinião de um telejornal, ou uma decisão política é encarada apenas no seu aspecto de preferência individual daquele partido ou deputado, a vida pública complica-se. A democracia representativa está assente num compromisso que advém da representação o que lhe confere certa estabilidade durante algum tempo, é o compromisso entre ganhadores e perdedores.

Estes são tempos sombrios?
A Europa já conheceu tempos piores, mas os desafios da última década são avassaladores. Há dez anos, uma parte da população estava convencida que a democracia que nasceu na Europa ia ser possível ao nível dos 28 Estados. Actualmente, o clube dos cépticos alargou-se. Estávamos convencidos, pelo efeito das novas tecnologias, que as organizações internacionais, a começar pela ONU, iam ter uma relevância maior nas nossas sociedades. O que se verifica é o oposto. Estávamos também convencidos que o hemisfério norte viveria por mais bons anos numa relativa tranquilidade, com democracia representativa, relacionando-se com o terceiro mundo através de investimento, ajudas económicas que permitia um retorno e expansão das economias do hemisfério norte. Tudo isso foi abalado. Não sabemos como as democracias se vão organizar nos próximos anos, já nem falo nas próximas décadas.

Existem as suas dúvidas quanto ao segredo de Estado e à transparência.
Repare que os Anonymous decretaram guerra ao autoproclamado Estado Islâmico e começaram a combater os seus sites, o que terá criado problemas aos serviços secretos que, entre outras fontes, se alimentavam daquela informação. Será que só em questões de segurança o segredo de Estado vai funcionar? Não sei como estas coisas se vão equilibrar, mas desconfio sempre de receitas definitivas, tem de se encontrar um meio-termo porque o pior é deixar decidir os poderes nas costas dos cidadãos.

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