Guia simples para quem se perdeu no processo da Operação Marquês
Por Mariana Oliveira
A investigação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates começou há mais de três anos e desde então já se noticiaram várias frentes de investigação. O PÚBLICO responde às principais perguntas sobre o caso para que saiba o que está em causa neste processo.
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José Sócrates recebeu quanto?
Directamente e em nome de José Sócrates não foi detectada a recepção de qualquer quantia com origem ilícita. No entanto, o Ministério Público acredita que os 23 milhões de euros que o amigo de longa data do ex-primeiro-ministro, Carlos Santos Silva, reuniu em contas em nome de offshores controladas por si, na Suiça, são na realidade de Sócrates e fruto de corrupção. O facto de haver uma conta específica no BES — igualmente em nome de Santos Silva — que era usada pelo empresário para compensar as despesas assumidas em nome de Sócrates a partir de outras contas, é um dos argumentos usados pelo Ministério Público.
A facilidade com que o ex-primeiro-ministro dispunha das verbas alheias fosse para pagar férias, despesas correntes, ou ter à sua disposição uma casa em Paris; a forma imperativa como pedia dinheiro ao amigo, sempre de forma camuflada como “fotocópias” ou “documentos” e as inúmeras entregas em dinheiro vivo que terão ocorrido recorrendo, muitas vezes, a intermediários são outros indícios apresentados pelos procuradores para defender que o dinheiro é na realidade de Sócrates. O ex-primeiro-ministro sempre negou ser o dono desse dinheiro, admitindo que recebeu verbas do amigo. Mas insiste que foram meros empréstimos e que uma parte deles já se encontra paga. Nunca foi capaz, no entanto, de contabilizar o valor exacto desses empréstimos.
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Se Sócrates foi o corrompido, quem foi o corruptor?
Na tese do Ministério Público há três grupos de corruptores activos, que terão pago os tais 23 milhões de euros. O antigo presidente do Banco Espírito Santo e líder do grupo com o mesmo nome, Ricardo Salgado terá pago a esmagadora maioria das ‘luvas’ para que Sócrates favorecesse os interesses daquele universo empresarial. O grupo Lena terá entregue ao testa-de-ferro de Sócrates cerca de três milhões de euros como contrapartida pela intervenção do ex-primeiro-ministro, enquanto responsável político, no desenvolvimento dos negócios daquele grupo, nomeadamente a construção de casas pré-fabricadas na Venezuela, as concessões rodoviárias, o projecto do TGV e as obras do Parque Escolar. Por fim, três accionistas do empreendimento turístico de Vale do Lobo, no Algarve, são suspeitos de corromperem Sócrates, através de um cidadão holandês que comprou ali um lote de terreno e transferiu dois milhões de euros para uma conta controlada por Joaquim Barroca, de onde terá saído um milhão para Armando Vara e outro para Carlos Santos Silva. As alegadas ‘luvas’ pretendiam compensar o favorecimento de Vale do Lobo nas condições de obtenção de um empréstimo avultado na Caixa Geral de Depósitos, que permitiu a um conjunto de accionistas comprar o resort.
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O ex-governante é acusado exactamente de quê?
Sócrates é suspeito de três tipos de crimes: corrupção passiva, fraude fiscal e branqueamento de capitais. A corrupção já está explicada na pergunta anterior. A fraude fiscal está relacionada com o facto de o ex-primeiro-ministro nunca ter declarado como rendimento os 23 milhões de euros, fugindo assim à cobrança de impostos. O mesmo não aconteceu com Carlos Santos Silva, que transferiu para Portugal a esmagadora maioria dos 23 milhões em 2010 e 2011. Nessa altura, o dinheiro foi declarado por Santos Silva a nível fiscal no âmbito dos Regimes Excepcionais de Regularização Tributária I e II, o que isentaria o visado de qualquer crime fiscal. No entanto, o Ministério Público argumenta que como o dinheiro é na realidade de Sócrates, este não pode beneficiar dessa amnistia. O branqueamento de capitais está associado aos esquemas que terão sido montados para dissimular ou esconder a origem ilícita do dinheiro, seja criando contratos fictícios que davam uma aparente legalidade às verbas, seja pela utilização de intermediários e sociedades offshores que dificultam perceber a origem do dinheiro.
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Como é que Sócrates explica tanto dinheiro?
Como Sócrates nega ser o real dono do dinheiro, remete qualquer explicação sobre o mesmo para o seu amigo Carlos Santos Silva e para os negócios deste empresário.
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E há provas mesmo?
A estratégia da investigação, que começou em Julho de 2013, numa altura em que a maioria dos crimes já teriam sido cometidos, foi seguir o rasto do dinheiro reunido na Suíça, tentando perceber qual a sua origem. Reconstituir o circuito das verbas foi muitas vezes extremamente difícil, já que foram utilizados contas de passagem só para despistar o rasto do dinheiro. Além disso, as transferências eram sempre feitas para contas de sociedades sediadas em paraísos fiscais, muitas vezes pouco cooperantes com as autoridades judiciais, o que dificulta perceber quem são os reais beneficiários do dinheiro. Tal obrigou o Ministério Público a emitir múltiplas cartas rogatórias - um instrumento para pedir oficialmente elementos de prova a entidades estrangeiras – o que costuma ser moroso e não ter sucesso garantido, já que nem sempre as diligências solicitadas são cumpridas. Só depois de reconstituir o circuito do dinheiro, o Ministério Público tentou consolidar as suspeitas sobre o que teria motivado aqueles pagamentos, ou seja, concretizar os alegados actos de corrupção. Tal fez com que algumas linhas de investigação tenham sido afastadas em detrimento de outras que começavam a consolidar-se. Ouviram-se testemunhas, cruzaram-se datas de factos com datas de pagamentos, usaram-se algumas escutas telefónicas. No entanto, como é comum neste tipo de crimes (em que nenhuma das partes tem interesse na descoberta da verdade), a prova não é directa, mas indiciária. Ou seja, parte-se de um facto conhecido para inferir outros. Um conjunto de indícios, que isoladamente seriam circunstanciais, são usados para fazer a prova de factos. Só quando os juízes consideram que essa prova, ainda que indirecta, permite afastar a presunção de inocência é que se consegue uma condenação.
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Há alguém ainda com medidas de coacção mais graves?
Nesta fase da investigação já caducaram a esmagadora maioria das medidas de coacção, nomeadamente as proibições de contactos e de ausência para o estrangeiro sem autorização. As prisões preventivas e domiciliárias foram substituídas antes de terminar o prazo máximo. Neste momento, as medidas de coacção mais gravosa que se mantém são as cauções. O ex-ministro socialista Armando Vara continua com 300 mil euros retidos e Joaquim Barroca, ex-vice-presidente do grupo Lena, com 400 mil euros. Todos continuam sujeitos ao simples termo de identidade e residência – obrigação do arguido indicar uma morada para ser notificado, tendo de comparecer perante as autoridades sempre que tal seja solicitado.
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Quem são as testemunhas-chave para o Ministério Público?
Não há propriamente testemunhas-chave. Mas os depoimentos de alguns arguidos como do empresário luso-angolano Hélder Bataglia são importantes para o Ministério Público chegar a quem fez pagamentos ao amigo de longa data de Sócrates. Foram as declarações deste suspeito que permitiram associar o dinheiro que chegou às contas de Santos Silva a Ricardo Salgado, ex-presidente do Banco Espírito Santo e líder do grupo com o mesmo nome. Bataglia contou no último interrogatório, no início de Janeiro, que Salgado lhe pediu se podia “fazer um favor, porque tinha uns compromissos em que tinha de pagar cerca de 12 milhões de euros”. Questionado sobre se tinha conhecimento de que o destinatário era Santos Silva, o empresário diz que sim. “Ele [Salgado] perguntou-me se conhecia o Carlos Santos Silva e que era para entregar ao Carlos Santos Silva, exactamente”, citou a revista Sábado. O depoimento do empresário Paulo Azevedo, presidente da Sonae (proprietária do PÚBLICO), sobre a dualidade assumida por Sócrates na altura da OPA sobre a PT, também é destacada pelo próprio Ministério Público. O antigo ministro das Finanças de Sócrates, Campos e Cunha, que já disse no Parlamento que Sócrates fez pressão para afastar a administração da Caixa Geral de Depósitos presidida por Vítor Martins, foi ouvido pelos investigadores muito antes das primeiras declarações públicas sobre este assunto. Campos e Cunha referiu expressamente que Sócrates lhe sugeriu “os nomes de Santos Ferreira e António Vara", que acabaram por ser escolhidos após a sua saída. Esta questão é relevante para o alegado pagamento de luvas para favorecer o empreendimento de Vale do Lobo nas condições de num empréstimo de perto de 200 milhões de euros concedido pela Caixa-Geral de Depósitos.
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Uma vez deduzida a acusação, o Ministério Público pode juntar factos novos?
Não. A acusação é que fixa os factos que são objecto do processo. Podem é em julgamento ser apresentadas novas provas que comprovem os factos alegados, mas sempre com a justificação do que motivou a apresentação tardia daquele elemento. No julgamento o Ministério Público ou o próprio tribunal pode, perante a prova produzida em audiência, pedir uma alteração não substancial dos factos, alterando, por exemplo, a data de uma reunião ou de uma transferência. Mas se as defesas considerarem que a mudança é determinante podem opor-se.
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O que é que ainda falta?
Essencialmente faltam duas cartas rogatórias. Uma remetida às autoridades angolanas, a pedir a constituição como arguido de José Bernardo Pinto de Sousa, empresário e primo de José Sócrates, já antes referenciado no processo Freeport. É o beneficiário de várias offshores que transferiram montantes avultados para Carlos Santos Silva alguns dos quais passaram pelas contas de Joaquim Barroca. Tal pode levar o Ministério Público a autonomizar o processo relativamente a este arguido, uma estratégia que pode ser usada relativamente a aspectos que não estejam suficientemente comprovados. Está ainda pendente uma outra carta rogatória remetida para a Suíça. O Ministério Público é obrigado a confrontar todos os arguidos com os factos relevantes recolhidos durante a investigação, o que justifica esta última ronda de interrogatórios.
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Por que é que demorou tanto?
Como já se explicou antes a forma como estes circuitos financeiros são montados, com a inclusão de intermediários – com vista a dificultar reconstituir o rasto do dinheiro – e a utilização de sociedade sediadas em paraísos fiscais dispersas pelo mundo complica muito o trabalho dos investigadores. Nem todas as offshores colaboram com as autoridades judiciais, o que pode impedir saber quem são os reais beneficiários do dinheiro. A dispersão de informação essencial obriga o Ministério Público a emitir múltiplas cartas rogatórias o que costuma ser moroso e não ter sucesso garantido.
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Quando é que o julgamento começa?
Nesta fase ainda não é sequer certo que haverá um julgamento. Parece certo que o Ministério Público vai proferir uma acusação, mas após fazê-lo o processo ainda deverá passar por uma fase facultativa, a instrução, que será praticamente inevitável num caso com 25 arguidos (basta um pedir a instrução para que ela se realize). Nesta fase, um juiz de instrução vai analisar as provas apresentados pelo Ministério Público e pelas defesas, e decidir se existem indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento. Isto com base num juízo de probabilidade, se o juiz considerar mais provável a condenação deverá remeter o arguido para julgamento, se considerar mais provável a absolvição deve arquivar o caso.