Vamos colocar este Sequeira no lugar certo

A nova galeria do Museu de Arte Antiga foi feita para seduzir

A dois dias da inauguração da nova galeria de pintura e escultura portuguesas, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), há ainda muito a fazer. Escadotes, paletes, cavaletes e empilhadores partilham o espaço com alguns exemplares do melhor que a colecção tem para oferecer. Há operários de um lado para o outro, conservadores a acompanhar a instalação das obras e técnicos de restauro a ocupar-se de uma escultura em barro do século XVII. Muitas peças estão ainda cobertas, mas já dá para ver que os novos espaços – 16 salas no terceiro piso, fechadas há oito anos e que são reabertas esta quinta-feira – serão luminosos e que nas paredes e plintos há “estreias” que valem a pena.

Ao final da manhã esta azáfama dá lugar a uma paragem para que quase todos possam acompanhar a chegada da Adoração de Domingos Sequeira, uma pintura que passou a integrar a colecção do museu depois de uma bem sucedida campanha pública de angariação de fundos em que participaram milhares de cidadãos e centenas de empresas e outras entidades, ao lugar que vai ocupar daqui em diante. Há uma fila de repórteres de imagem com as suas câmaras apontadas aos técnicos que transportam o quadro ainda embrulhado e jornalistas de microfone e gravadores. António Filipe Pimentel, o director do museu, faz um compasso de espera para entrar em directo para a SIC. Na segunda linha, a equipa técnica do MNAA aguarda.

Quando penduram a obra entre outras duas deste artista que é um dos mais importantes pintores do século XIX português – Coroação da Virgem e o Retrato da Família do 1.º Visconde de Santarém – entra-se no jogo das comparações, partindo da imagem que se guarda da Adoração no início da campanha e o aspecto que ela tem agora, depois de dois meses de restauro.

Para Alexandra Markl, conservadora de desenho do MNAA e autora de uma tese de doutoramento sobre Domingos Sequeira, a intervenção “revelou outra pintura”. Onde antes havia uma luz dourada e um ambiente que fazia lembrar as obras do mestre holandês Rembrandt há hoje um “esplendor intenso”, uma “predominância de azuis e verdes”, diz ao PÚBLICO. Se antes Markl não conseguia decidir em que altura se passava esta Adoração, hoje não tem dúvidas de que é uma cena nocturna, como se sobre a Virgem e o Menino incidisse “uma espécie de sol da meia-noite”.

“O restauro trouxe-nos uma leitura completamente nova. Continua lá aquela luz mística, transcendente, com a arquitectura a desfazer-se nela, mas a pintura tem agora mais profundidade, as figuras ganharam volume, modelações mais definidas”, explica a conservadora, defendendo que se confirma que nesta obra o artista recorre a tudo o que aprendeu na academia italiana no final do século anterior. “Tecnicamente ele usa aqui toda a sua maestria, com uma paleta de cores claras que é própria do seu tempo, muito neoclássica.”

Quando chegou à oficina do museu, a pintura não apresentava nenhuns sinais preocupantes, garante Teresa Serra e Moura, a técnica de conservação e restauro de Arte Antiga que formou com Susana Campos a equipa que levou dois meses a devolver à Adoração aquele que terá sido o seu aspecto original. “Via-se bem que foi muito estimada pelos seus donos. A única coisa que tinha, para além de um repinte mínimo, era uma camada de verniz que estava muito oxidado, amarelecido, e que era preciso tirar.” Era esse verniz que dava à pintura o seu tom quente, mas que ao mesmo tempo lhe tirava leitura e escondia pormenores. “Agora que [o quadro] está restaurado podemos dizer que o verniz era como uma névoa que modificava a perspectiva e alterava as cores. Quando terminámos, nem queríamos acreditar.”

As técnicas do MNAA ficaram com um céu azul nas mãos e a informação que reuniram através dos exames técnicos a que a pintura foi submetida permitiu-lhes ficar a saber, entre outras coisas, que “Sequeira usou as suas próprias impressões digitais para dar textura aos tecidos dos mantos dos reis magos” e que “as alterações entre a camada subjacente e a visível são muito subtis”, que é como quem diz que o que ele desenha na tela é o que depois pinta.

Para o director, pendurar a Adoração na parede tem um significado especial. É o ponto final simbólico de um esforço colectivo que não se cansa de sublinhar, mas é também o cartão-de-visita de uma renovação que se quer cada vez mais alargada.

Uma atitude nova

A renovação das galerias de pintura e escultura portuguesas inaugura uma “nova forma de comunicar a colecção do museu”, disse aos jornalistas António Filipe Pimentel. Uma nova forma que mostra que o MNAA continua a ser um centro de conhecimento, estudo e investigação, onde os especialistas encontrarão sempre motivos de interesse, mas também uma “casa aberta ao público em geral”, com as suas colecções expostas de forma atraente e inclusiva.

Aquilo a que Pimentel chama uma “nova atitude museográfica”, condensada nas 16 salas que agora reabrem, deverá estender-se a todo o MNAA à medida que os restantes andares forem renovados. A desejada ampliação, defendida pelo primeiro-ministro, António Costa, em Maio, parece ainda distante, embora o director não tenha qualquer indicação de que, mesmo sendo o clima de poupança e estando à vista sanções vindas de Bruxelas, tenha sido abandonada. “Penso que continua em cima da mesa, mas essa pergunta [se vai ou não haver ampliação] é para o decisor político, não é para mim”, disse ao PÚBLICO.

Com ou sem ampliação no horizonte, as novas galerias garantem já uma “viagem no tempo” pela arte feita em Portugal, com uma série de peças nunca antes expostas no MNAA. Umas vieram de colecções privadas, como o Calvário, de Vasco Fernandes, que pertence à colecção da Fundação Millennium BCP, outras de acervos públicos nacionais (a maquete do monumento a D. Maria I, de João José de Aguiar, do Palácio Nacional de Queluz, por exemplo) e internacionais (expõe-se um S. Vicente de Frei Carlos, um depósito do Metropolitan Museum de Nova Iorque, o primeiro de um museu estrangeiro num museu português, segundo Pimentel). Mas há também obras saídas das reservas do MNAA, como Cristo com a Cruz às Costas, uma pintura de António Campelo, importante artista da segunda metade do século XVI que estudou em Roma com despesas pagas por D. João III quando na cidade ainda vivia Miguel Ângelo, uma Assunção (c. 1510-1520) do mesmo Vasco Fernandes, mais conhecido como "Grão Vasco", um Pentecostes do espanhol Fernão Gomes e um presépio do Convento de Santa Teresa de Jesus, em Carnide, que está em depósito no museu há 100 anos e que foi exposto na Sala do Tecto Pintado em 2011/2012 depois de ter sido alvo de um “trabalho de investigação notável” que permitiu montá-lo como se de um puzzle se tratasse.

A escultura vem primeiro

O percurso, que está organizado cronologicamente, começa com escultura porque, na colecção de Arte Antiga, ela é anterior à pintura (uma começa no século XIII, a outra só no XV), diz Maria João Vilhena, conservadora do museu. Mas, ao contrário do que se passava na anterior montagem, estão agora misturadas, estabelecendo um diálogo sempre que ele é possível e faz sentido, acrescenta o colega Joaquim Caetano, ao entrar numa pequena sala dominada por uma pintura de Francisco Henriques, um Pentecostes (c.1500-1518), em que podem ver-se também esculturas flamengas. “Este é um momento [século XVI] em que a pintura portuguesa muda muito por influência dos pintores flamengos que vêm trabalhar para Portugal. Juntar as duas coisas é natural”, explica o conservador de pintura, chamando a atenção, nas salas seguintes, para obras de Jorge Afonso e Gregório Lopes, para um retábulo do Mestre da Lourinhã e para o espaço inteiramente dedicado à produção de Frei Carlos (?-1540), um flamengo que professou no Espinheiro, em Évora, e que fundou neste mosteiro jerónimo a sua oficina.

No discurso expositivo começa-se com escultura, portanto, reconhece-se o domínio da pintura nos séculos XV e XVI, devolve-se o protagonismo à primeira no XVIII com a exuberância do barroco joanino e fecha-se com sete telas de Domingos Sequeira, já no XIX, num núcleo em que se vêem ainda obras de Vieira Portuense e Machado de Castro.

Pelo meio há um governador de Ormuz que sobreviveu ao terramoto de Lisboa emparedado (uma escultura do século XVI, de grande sofisticação, que representa D. Manuel de Lima e que terá saído de uma importante oficina de Coimbra), conta Vilhena, e duas salas consagradas a mulheres: uma em que se vêem apenas pinturas de Josefa d’Óbidos (1630-1684) e outra em que a protagonista é a rainha D. Leonor (1458-1525), mulher de D. João II e irmã de D. Manuel, ligada à fundação do Mosteiro da Madre de Deus, um centro da cultura da época, lê-se num pequeno texto de parede em que se fica também a saber que foi ela quem deu trabalho aos pintores Jorge Afonso e Cristóvão de Figueiredo, tendo comprado ainda obras de importantes artistas internacionais como o flamengo Quentin Metsys e os italianos Della Robbia.

A escultura vai agora estar exposta como nunca esteve, garante António Filipe Pimentel, mostrada escola a escola, para que se possa perceber como se trabalhava em Portugal naquela altura. “Um museu não é um acervo majestático”, diz. “Para montar uma galeria como esta é preciso encontrar um equilíbrio entre o que é uma exposição permanente e uma temporária. Antes as permanentes tinham tabelas [legendas de obras] muito técnicas, hoje não pode ser assim, é preciso ser mais sedutor.”

Entre as obras que se estreiam na exposição permanente estão algumas que o Estado comprou nos últimos anos para o MNAA, como um raro tríptico do século XV atribuído a um dos primitivos portugueses, conhecido como "o Mestre de Santa Clara", Narciso na Fonte (1797?), de Vieira Portuense, contemporâneo de Sequeira, e um baixo-relevo em bronze, de cerca de 1575, retratando o teólogo Diogo de Paiva de Andrade.

O tríptico do Mestre de Santa Clara vai fazer companhia aos Painéis de S. Vicente e a outras obras atribuídas a Nuno Gonçalves. As 58 personagens do monumental retrato colectivo de Nuno Gonçalves, a peça mais icónica de Arte Antiga, vão confrontar o visitante no centro da sala, quase como se pairassem.

Muitas das 250 obras agora expostas nas galerias renovadas, concluído que está um projecto orçado em 660 mil euros, foram alvo de limpeza e algumas foram mesmo restauradas, como o Retábulo de Santiago, do Mestre da Lourinhã, o Martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, que esteve dois anos nas mãos dos técnicos de conservação, o Pentecostes de Fernão Gomes e O Casamento Místico de Santa Catarina, escultura em barro pintado resgatada a uma quinta perto de Alenquer que foi um convento franciscano.

Este Casamento Místico, exposto no museu pela primeira vez, terá sido executado em meados do século XVII por dois frades franciscanos e corria o risco de se perder. Na história de arte portuguesa “é uma obra extremamente importante, porque é o link entre a escultura em barro do século XVI e a do século XVII mais conhecida, que é a do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça”, explica Maria João Vilhena. Para quem quiser vê-lo a partir desta quinta-feira, às 18h, o Piso 3 do museu tem um horário especial até sábado – só fecha às 23h.

Notícia alterada às 15h05 de dia 18 de Julho para corrigir o nome da técnica de conservação e restauro do Museu Nacional de Arte Antiga

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