Vamos colocar este Sequeira no lugar certo

Sequeira: o pintor a quem Portugal nunca chegou

Quem olha para a Adoração dos Magos que está agora em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, sabendo que é uma obra de fim de vida, dificilmente deixará de pensar no seu autor. Que tipo de homem seria? Que vida foi a que levou? Em que é que acreditava? E o que é que, afinal, nos diz a luz dourada que marca esta cena bíblica, uma das quatro que compõem um testamento singular, feito em forma de pintura?

Domingos António de Sequeira, pintor régio, por vezes professor a contragosto, artista de múltiplos interesses, foi, concordam os historiadores, um dos melhores da arte portuguesa do seu tempo. Esta Adoração, assim como as outras três obras que integram a chamada "série Palmela" – Descida da CruzAscensão e Juízo Final –, executada entre 1827 e o começo da década de 1830, reflecte a sua qualidade, mas também um pouco da sua maneira de ser, ou, pelo menos, do modo como encarava a arte e a vida, espreitando o futuro e recebendo-o até com algum do entusiasmo próprio da descoberta, mas sem nunca esquecer as lições do passado.

“Sequeira era um homem da tradição quando se tratava de pintar, mas era também um homem de ideias novas, se olharmos para a maneira como aderiu ao liberalismo e como procurou fazer carreira”, diz Alexandra Markl, conservadora de desenho de Arte Antiga, o museu que lançou em Outubro, com o PÚBLICO, uma campanha nacional de angariação de fundos para comprar esta Adoração.

Markl define-o como um “empreendedor” com um “forte sentido de liberdade” e lembra que o artista era tipicamente burguês no que toca à importância que dava ao dinheiro – é, aliás, um dos primeiros accionistas do Banco de Portugal – e aos seus investimentos. “Ele não é, nunca foi, um diletante. Tinha sempre muito presente que era preciso ganhar dinheiro para ter uma vida confortável, é um pragmático.” Um pragmatismo que lhe vem, provavelmente, de um começo que não fazia prever um percurso de sucessos. 

De pintor a monge?
Nascido em 1768 em Belém, numa família muito modesta, Domingos Sequeira (1768-1837) matriculou-se aos 13 anos na Aula Régia de Desenho e Figura, que acabava de abrir. Do estudo de desenho passou, cinco anos depois, para o da pintura, mas foi em Roma, para onde viajou em 1788, com uma bolsa da rainha, que cumpriu o período mais decisivo da sua formação artística, visitando galerias, copiando os mestres e retratando altos funcionários da corte portuguesa, escreve José-Augusto França em A Arte em Portugal no Século XIX. Logo nesta primeira estadia em Roma, lembra o historiador, que foi o primeiro, nos anos 1960, a dar a devida importância às quatro obras finais de Sequeira, o seu talento para o desenho não passou despercebido, trabalhando intensamente no atelier e na formação de outros artistas.

Considerando pequena a bolsa que lhe fora atribuída para viver numa cidade cada vez mais cara, regressou a Lisboa no final de 1795, depois de meio ano a viajar por Itália, cumprindo um roteiro que incluiu Veneza, Milão, Parma e Florença.

Ao chegar, confrontado com a pequenez do mercado nacional e com os preços que aqui praticavam os artistas, baixíssimos, quando comparados com aqueles a que estava habituado, é bem provável que tenha sentido vontade de voltar a Roma de imediato, diz Alexandra Markl, autora da mais recente tese de doutoramento sobre Sequeira. Mas não o fez. Ficou 30 anos. Trabalhou para a família real e foi recebendo encomendas de vários nobres, sobretudo ligados à família do marquês de Marialva, que tanto o protegia, chegando a trabalhar para William Beckford, escritor, político e crítico que foi um dos maiores coleccionadores da Inglaterra do seu tempo.

É neste período inicial do regresso a Lisboa que o artista tenta, sem sucesso, chegar a acordo com outros pintores activos em Portugal, como Pedro Alexandrino, para fazer subir os preços dos seus serviços. “Provavelmente deprimido”, decide dedicar-se à vida religiosa e entra para a Cartuxa de Laveiras. Permanece três anos entre os monges, mas não deixa de pintar, evocando a sua aprendizagem italiana, escreve José-Augusto França, que destaca entre as obras deste período S. Bruno em Oração (1798-1802).

Sai do mosteiro quando, em Julho de 1802, é nomeado pintor da corte, tal como Vieira Portuense (1765-1805), “seu rival dos tempos de Roma”, lembra o historiador de arte, um cargo que implicava a co-direcção dos trabalhos de decoração do Palácio Nacional da Ajuda. Sequeira não pôde recusá-lo, até porque o salário, dois contos de reis, era alto.

Alexandra Markl contesta que tenha havido uma “rivalidade” entre os dois pintores: “É verdade que coincidiram em muita coisa, mas não acho que se sentissem rivais. Essa ideia faz parte da intriga que há em todas as épocas, é algo que se construiu a partir do percurso de ambos.”

Sequeira acumulava, então, os trabalhos na Ajuda, onde terá feito muito pouco, defende a conservadora, com os de Mafra e as aulas de desenho à princesa Maria Teresa e à própria rainha, Carlota Joaquina. Retratos do príncipe regente D. João VI a cavalo ou no palácio de Lisboa marcam a sua carreira no início do século XIX, assim como uma série de pinturas históricas, algumas entretanto desaparecidas.

Quando os franceses invadem Portugal, o artista troca o Porto, para onde fora em 1805 para ocupar o lugar que Vieira Portuense tinha deixado vago na direcção da Aula de Desenho da Academia da Marinha, para regressar a uma Lisboa ocupada. Começa aqui um período conturbado em que, dada a sua proximidade ao conde de Forbin – oficial de destaque no exército de Napoleão, homem culto que viria a ser o director-geral dos museus de França – e ao próprio general Junot, que comanda as tropas francesas, para quem pinta uma alegoria (Junot Protegendo a Cidade de Lisboa, 1808) que desagradaria ao invasor, é visto como colaboracionista.

Por causa desta ligação, Sequeira é processado e está nove meses preso no Limoeiro. Quando recupera a liberdade, certamente graças aos amigos influentes, refugia-se no Porto. Segue-se um período de grande actividade, com retratos individuais e colectivos de relevo, segundo José-Augusto França, como o do cunhado J. B. Verde (1809) e o do conde Farrobo (1813), ou o dos filhos (1816) e o da família do visconde de Santarém (c. 1817).

Dedicado à revolução
Com a revolução liberal de 1820 o artista parece voltar a entusiasmar-se com o país, algo que, segundo Markl, é facilmente compreensível: "É aí que ele ganha liberdade para fazer o que quer, apesar de continuar a achar que a sua clientela é muito conservadora. Sequeira acredita que vai nascer um país novo, com uma burguesia mais culta, que poderá vir a alterar o perfil dos seus encomendadores.” Datam deste período a Alegoria à Constituição de 1822  e Portugal à beira do Abismo, mas também o projecto para um monumento no Rossio, medalhas comemorativas, mausoléus e o desenho para as primeiras notas do Banco de Portugal. Tudo reflexo da dedicação de Sequeira à causa da revolução (e à sua própria carreira).

“É claro que a maneira como Sequeira se comportou durante as Invasões lhe valeu muitas críticas, mas não acho que se possa dizer que ele era pró-francês. Era um homem profundamente nacionalista, mesmo que Portugal nunca lhe tivesse chegado e que sentisse uma certa amargura por nunca ter tido aqui a atenção e as oportunidades que ele achava que merecia ou que poderia ter tido em Roma”, defende a conservadora de desenho.

Mas, como os primeiros tempos do liberalismo foram conturbados e o artista tinha demasiado fresca a memória do Limoeiro, Domingos Sequeira decidiu sair do país. Para isso contou com a ajuda do marquês de Palmela, que à data fazia parte do governo e que terá ido pessoalmente a sua casa levar os passaportes. Partiu para Paris em Setembro de 1823, com uma passagem breve por Londres, instalando-se na capital francesa até 1826.

Aí chegado, e contando com a protecção do conde de Forbin, com quem havia passeado por Portugal – levou o oficial de Junot, por exemplo, ao Mosteiro da Batalha, onde registou no seu álbum de esboços uma pintura entretanto desaparecida que poderá muito bem ter sido executada pelo pintor flamengo Rogier van der Weyden –, mostra duas obras no Salão de Paris de 1824. Nesta exposição, transformada em “terreno de violenta batalha em que se afrontaram clássicos e românticos”, segundo José-Augusto França, o artista português apresentou Fuga para o Egipto A Morte de Camões, pinturas que foram recebidas de forma desigual, passando ao lado da maioria dos críticos, apesar do lugar de destaque que ocupavam.

De Paris Sequeira regressa a Roma, onde acabaria por morrer. Ele justifica-se escrevendo que deixa o país por estar doente e por causa do custo de vida, mas o historiador José-Augusto França defende que o factor decisivo terá sido a sua incapacidade para compreender o que se passava à sua volta, numa cidade “onde um novo gosto se estruturava”.

Sem receitas beatas
Alexandra Markl identifica quatro momentos-chave no percurso de Sequeira: os seus primeiros anos de formação em Roma, o regresso a Lisboa, o Salão de Paris de 1824, e os últimos anos na capital italiana, onde, apesar de nunca esquecer a sua aprendizagem, participa de forma muito activa no debate sobre os novos caminhos que a pintura haveria de seguir, com o neoclassicismo a chegar ao fim.

É essa mistura entre o antigo e o novo que, segundo a conservadora de desenho de Arte Antiga e o historiador e crítico José Luís Porfírio, que dirigiu o museu entre 1996 e 2004, marca as quatro pinturas da série Palmela – deveriam ser cinco, segundo José-Augusto França, mas a Glória ficou por fazer –, duas delas inacabadas (Ascensão e Juízo Final).

Porfírio não tem dúvidas de que este “testamento” de Sequeira é um reflexo da sua qualidade como pintor e da capacidade que sempre teve de olhar para a frente: “Nestas pinturas há um regresso ao passado, a uma tradição tardo-barroca, mas há também um certo visionarismo, qualquer coisa que já nos faz pensar em [William] Turner e [Caspar David] Friedrich. Não há como negar que ele anda à procura de qualquer coisa nova, de qualquer coisa que nunca fez. Infelizmente ele não teve tempo nem saúde para ver onde o levariam estes novos caminhos... Não sei, sequer, se ele teria unhas para uma total renovação, mas o que sei é que estas quatro pinturas provam que ele não acaba a obra numa rigidez absoluta, acaba em transformação.”

Uma transformação que o artista escolhe fazer sem esquecer que é um homem de fé, embora viva em Roma na melhor das liberdades, dentro do que lhe permite a sua disciplina católica, nota o também crítico de arte. “Estas pinturas são obras de um crente, mas não são feitas segundo uma receita beata.”

Na Adoração, precisa José Luís Porfírio, sente-se o peso do romantismo em toda aquela emoção, mesmo se os acabamentos são muito clássicos. “O resplendor de luz que cria desfaz, em parte, as figuras, mas nota-se que ele não tem ainda experiência, ou coragem, para desfazer tudo”, diz, acrescentando que Sequeira nunca foi um revolucionário, nem na arte nem na vida. Agustina Bessa-Luís chama-lhe “lacaio”, lembra o historiador que não vai tão longe, mas faz questão de dizer que Sequeira era um “oportunista, politicamente”.

Alexandra Markl concorda que a Adoração, tal como a Descida da Cruz, ainda tem muito de passado, mas garante que nas duas obras que ficaram inacabadas, sobretudo no Juízo, é um tempo novo que se sente. Se nas duas primeiras há um grande intimismo, com uma “luz muito mística” que “escorre sobre as figuras” e nos faz pensar em Rembrandt (1606-1669), no Juízo tudo muda: “O Juízo não tem nada que ver com nada. Nele o planeamento e a luz são muito mais inovadores, têm mais que ver com Turner, o presente e o futuro, do que com Rembrandt, o passado. A composição é feita em dois planos e é a luz que divide a pintura ao meio. É uma obra que celebra o encontro entre a tradição e o contemporâneo”, diz a autora da mais recente tese de doutoramento sobre Domingos Sequeira.

Porfírio defende que os rasgos de maior inovação Sequeira guardava-os para o desenho, que pode ser visto como o seu “melhor diário”. É nele que é mais impulsivo, mais imaginativo, mas parte desse arrojo passa depois para a pintura, já que ambos se complementam. O primeiro é, aliás, uma maneira de chegar à segunda – embora o artista o valorizasse, via-o sobretudo como um instrumento de experimentação. “Há desenhos quase abstractos em que aproveita a mancha, o borrão... É natural que durante muito tempo se tenha dito que o Sequeira era melhor a pintar do que a desenhar, porque uma sensibilidade do século XX adere muito rapidamente a esta espontaneidade, aos desenhos quase ilegíveis do ponto de vista figurativo.” À “imaginação a nascer da matéria”.

Markl acredita que o artista se apercebe que estas quatro obras serão as últimas. Tinha 60 anos quando as começou e ainda lhe sobrava energia para uma vida social intensa, sempre com a filha e o genro ao seu lado. Mas, pouco a pouco, a doença instala-se e, embora não possa adivinhar como nem quando, sente a morte a chegar, diz a historiadora.

Porfírio, que defende que Sequeira é um bom pintor na Europa, mas não é um génio, como Turner, reconhece que, também no caso dele, a morte vem cedo de mais, quando o artista começava verdadeiramente a tentar uma coisa nova. “Se tivesse tido mais tempo, podia ter sido melhor pintor.” Podia ter chegado ao futuro.

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Auto-retrato, desenho a lápis Cortesia do Museu Nacional de Arte Antiga