Vamos colocar este Sequeira no lugar certo

Quem é quem nesta Adoração

Alexandra Markl, Lucinda Canelas, Andrea Espadinha (design) e Miguel Cabral (design)

Domingos Sequeira transforma a estrela de Belém numa luz intensa e difusa. Era de dia ou de noite quando os magos do Oriente levaram presentes a Jesus? Uma boa pergunta para o dia de Reis.

Cartão: o estudo final da Adoração dos Magos é feito a carvão e giz praticamente à escala de 1x1 da pintura. Nele se vê como o pintor quis que a luz dominasse toda a composição.

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A Adoração dos Magos, pintada por Domingos Sequeira (1768-1837), põe em cena cerca de 150 figuras, numa das mais participadas composições sobre este tema da história da pintura europeia. Desse conjunto, são 60 as que ganham individualidade em primeiro plano, basicamente aquelas que foram estudadas em desenho antes da passagem à fase da pintura.

Para a preparação desta obra de 1828, o pintor começou por conceber um enorme cartão (98 x 136cm), desenhado a carvão e giz branco, com a mesma escala da pintura final. Nele já se encontram esboçadas as figuras mais importantes, nas atitudes que encontramos na versão a óleo.

Para a preparação desta obra de 1828, o pintor começou por conceber um enorme cartão (98 x 136cm), desenhado a carvão e giz branco, com a mesma escala da pintura final. Nele já se encontram esboçadas as figuras mais importantes, nas atitudes que encontramos na versão a óleo.

No método de trabalho que lhe é habitual, estudou depois cada uma dessas figuras isoladamente, ensaiando posturas, gestos ou expressões faciais. São conhecidas mais de duas dezenas e meia de folhas contendo estes estudos. O conjunto pretendia enriquecer o tema, contando estórias dentro da história e levando o espectador a surpreender-se com a variedade de detalhes. Como o núcleo de altos dignitários vestindo requintados e exóticos trajes que, à esquerda, parece discutir a natureza da luz (astrólogos?); o soldado que, esbracejando, obriga um grupo de jovens a sentar-se; ou o pastor que, em primeiro plano, se prepara para imolar (?) uma ovelha.

No centro da composição, o Menino ao colo da Mãe e acompanhado por São José recebe a homenagem dos três reis magos que vieram de longe prostrando-se a seus pés. Oferecem os preciosos presentes que trouxeram: ouro, incenso e mirra, todos com grande significado simbólico.

Em redor, junta-se uma pequena multidão acabada de chegar. Os séquitos são compostos maioritariamente por elementos masculinos, mas também há algumas mulheres. Entre os primeiros vêem-se altos dignitários ricamente trajados, pequenos pajens e demais acompanhantes. Ao fundo, alguns cavaleiros, camelos e um palanque puxado por um elefante lembram as longas viagens que todos tiveram de fazer para estarem presentes nesta homenagem ao Menino.

O episódio da visita dos magos é referido apenas no evangelho de Mateus, numa passagem breve, sem grandes detalhes. A identidade destes homens sábios foi depois sendo enriquecida, ao sabor da imaginação, por outros autores nos séculos seguintes e pela tradição popular, acrescentando pormenores ao episódio, sobretudo ao longo da Idade Média, período a partir do qual esta narrativa passa a ser uma das mais representadas nas artes plásticas europeias.

Sublinhe-se que o relato bíblico original falava da visita de “magos vindos do Oriente”. Só bastante mais tarde se passou a falar em reis. Também o seu número não estava inicialmente estabelecido.

Nos primeiros séculos do cristianismo variava consoante os autores, oscilando entre oito e três, e os seus nomes não estavam fixados. Só no século VI surge o primeiro texto que os nomeia como Belchior (ou Melchior), Gaspar e Baltasar, que virão a ser identificados, respectivamente, como rei da Pérsia, rei da Índia e rei dos árabes. A tradição medieval acabará por identificá-los como representantes da Europa, da Ásia e de África, os três continentes então conhecidos. Por isso Belchior passa a ser representado com traços europeus, Gaspar com fisionomia asiática (que não é visível nesta composição) e Baltasar como um rei negro. A presença das várias raças pretendia assinalar o universalismo do cristianismo.

O Evangelho de Mateus refere ainda que os magos foram conduzidos na viagem por uma estrela que lhes indicou o lugar onde nascera o Menino. Como este se encontrava na cidade de Belém, passou a ser conhecida como estrela de Belém. Nesta Adoração, Sequeira transforma-a numa luz muito intensa que ilumina o local, ficando a pairar a dúvida sobre a hora do dia ou da noite a que se teria dado o encontro de que fala o evangelista.

Também o contexto narrativo aparece aqui subtilmente alterado. Na Bíblia, este episódio acontece dois anos depois do nascimento de Jesus, enquanto a criança pintada por Sequeira é muito mais nova, aparentando poucos meses. Porém, a existência, em primeiro plano, de duas mulheres com crianças de colo remete-nos para a memória de que este episódio antecede a perseguição movida pelo rei Herodes, que conduzirá à fuga da Sagrada Família e à Matança dos Inocentes (episódio em que o monarca da Judeia ordena a execução de todos os meninos de Belém para, assim, evitar perder o trono para o recém-nascido a quem chamavam o rei dos judeus).

Igualmente, segundo a narrativa bíblica, o encontro entre Jesus e os magos dá-se na cidade de Belém, no interior da casa onde vive o Menino com Maria e José. Porém, de modo a acomodar a multidão que acompanha os reis, Sequeira representa a cena no exterior, junto a edifícios em ruínas, como era tradição na pintura ocidental. Estas ruínas têm grande significado simbólico, remetendo para a queda do mundo antigo (paganismo), que desaparece com a chegada do Redentor. Também esta obra do pintor português anuncia um tempo novo na arte.