O ano correu muito bem a...

Paulo Lima: O antropólogo que conquistou a UNESCO com o chocalho

Alentejano antropólogo, filho de pastores e pescadores, que coordenou as duas últimas candidaturas à UNESCO, alerta que o país que Michel Giacometti percorreu nos anos de 1960 a 1980 em recolhas etno-musicais já não existe. Quem detém este património está hoje circunscrito a lares e centros de dia.

“A UNESCO viu nas duas candidaturas portuguesas factores de coesão e de combate à exclusão social” Adriano Miranda

Apesar dos anos envolvidos na investigação, todo o processo de candidatura foi realizado em apenas três semanas. E neste espaço de tempo “fomos de Alcáçovas a Bragança e à ilha Terceira nos Açores, preenchemos o formulário da UNESCO, e numa tarde fizemos o filme, que foi considerado um dos melhores que esteve presente na cerimónia na Namíbia”, descreve Paulo Lima, salientando que “uma candidatura é um formulário em que cada questão tem um número de palavras. Temos de ser sintéticos e dizer claramente qual é o objectivo do nosso projecto de candidatura” assinala.

Não se trata de uma corrida ao prémio, nem uma competição à procura do primeiro lugar. “O importante é saber em que medida a candidatura proposta pode contribuir para o diálogo entre culturas”. No fundo, o que motiva os proponentes da candidatura “é chamar a atenção para um mundo em mudança e para um conjunto de valores que entretanto se perderam” realça o antropólogo. 

Paulo Lima interpreta a extinção da arte chocalheira como “o fim de uma civilização, de uma paisagem sonora, da pastorícia e da transumância” consequência directa do desaparecimento ou da enorme redução de raças de cavalos, burros, borregos, porcos, ovelhas e cabras.

Durante milénios houve uma relação pendular entre o norte e o sul da Península Ibérica. E o único lugar onde havia pastos de inverno era nos campos de Ourique. Eram aos milhões as cabeças de gado que circulavam pelo território. Hoje, imagem semelhante é impossível de observar. O antropólogo recorda-se, em criança, de ver milhares de cabeças de gado a circular de um lado para o outro.

Esta paisagem foi sacrificada “à agro-indústria e às lógicas que prevalecem sob o argumento da produção alimentar”, critica Paulo Lima, visando a extensão do olival e vinha no Alentejo. “Deixámos de dar atenção a esta coisa tão simples que é cuidar e manter raças autóctones”, prossegue o antropólogo frisando que uma das vertentes que os move nesta candidatura “é o património cultural-genético”. E lembra como a opinião pública se tornou mais sensível à salvaguarda de espécies selvagens, como o lince, o abutre negro, a águia-real, entre outras, mas desconhece que existem raças de ovinos e bovinos quase extintas com apenas poucas centenas de exemplares, como é o caso das ovelhas churra e campaniça ou a raça garvonesa de bovinos.

“Não podemos deixar acabar o património genético, a paisagem sonora baseada na pastorícia”, o universo pecuário que sustentava o fabrico de chocalho que tinha uma função idêntica à que representa nos dias de hoje o GPS, reafirma Paulo Lima, frisando que esta preocupação “calou muito fundo na UNESCO.”   

Durante os próximos cinco anos este organismo vai observar se a integração do chocalho na lista do património imaterial continua a justificar-se. Não se trata, como certamente muitos pensarão, de um galardão simbólico e permanente. A UNESCO suporta as suas decisões numa razão de fundo: o que é que o mundo ganha com a classificação das propostas que lhe são apresentadas.

Já em relação ao cante, o desafio imediato passa pela elaboração de um pequeno manual que faculte aos professores um instrumento de ensino às crianças das escolas. “A mim o que me preocupa não é saber se as pessoas cantam bem ou mal. O importante é que as pessoas cantem em colectivo retomando uma referência cultural que já desapareceu em muitos lugares do Alentejo” assinala Paulo Lima, frisando que o cante é “única forma” que os mais velhos têm para se juntarem fugindo ao isolamento. “A UNESCO viu nas duas candidaturas portuguesas factores de coesão e de combate à exclusão social”, assinala o antropólogo para realçar as “profundas alterações” que estão a verificar-se nas comunidades do interior ao longo das últimas décadas.

E descreve um quadro que retrata a realidade actual no Alentejo pedindo que se faça uma reflexão. “Imagine que você tem a sua vida num dado lugar e na sua casa. Aos 60 ou 70 anos obrigam-no a partilhar quartos com mais pessoas que não conhece, longe do lugar onde vivia, sujeito à redução brutal dos seus pertences que ficam circunscritos a um armário.”

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