A Europa democrática: a nova utopia?

Entre os riscos que a Europa corre, o maior será "o desenvolvimento do egoísmo alemão", escreve o ex-director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia e actual comissário das conferências de Serralves "Tendências Mundiais 2030"

Reuters

“A map of the world that does not include Utopia is not worth even glancing at, for it leaves out the one country at which Humanity is always landing. And when Humanity lands there, it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is the realisation of Utopias.” 

Oscar Wilde

 

Quando se comemoram os 500 anos da publicação da Utopia de Thomas More, é natural que se revisite o tema, recorrendo à imaginação para pensar o futuro. Qual pode ser, nesta segunda década do século XXI, o projeto com potencial de mobilização dos cidadãos europeus; qual pode ser a nova utopia que galvanize as reformas radicais, a revolução, que a União Europeia necessita de levar a cabo? Esta questão é tanto mais pertinente quanto vivemos um período de crise profunda na Europa, com desafios existenciais à utopia europeia.

Faço parte de uma geração que acreditou nas duas grandes utopias do século XX: a comunista, que fracassou no final do século, e a da integração europeia, hoje claramente em risco.

O comunismo era a utopia da construção de uma sociedade justa, sem exploração do homem pelo homem – recordando A Internacional, «uma terra sem amos». A utopia comunista, que Thomas More inspirou, fracassou muito antes da implosão da União Soviética. Para a minha geração, o comunismo soviético já não era um ideal pelo qual valesse a pena lutar. O carácter ditatorial do regime tornou-se evidente com a repressão sistemática dos dissidentes e a invasão de Praga pela URSS, que coincidiu com o movimento libertário de Maio de 68, fez do «sovietismo» uma outra forma de imperialismo. A revolução cultural chinesa parecia o prolongamento asiático das manifestações estudantis ocidentais. As lutas pelo poder na China, porém, permitiram ver a enormidade da ilusão, muito antes do massacre dos jovens que defendiam a liberdade em Tiananmen. Aprendemos que a ideia da sociedade perfeita, do paraíso na terra, que as utopias facilitam, é uma perigosa quimera, berço do totalitarismo.

 A utopia europeia era bem mais antiga, magistralmente enunciada por Victor Hugo, em 1849. Para o poeta, viria o dia em que as nações do continente, sem perderem as suas «qualidades específicas e a sua individualidade, se uniriam numa unidade superior e constituiriam a fraternidade europeia», onde os únicos campos de batalha “seriam os do comércio e das ideias”.

Após o final da II Guerra Mundial e a constatação da catástrofe gerada pelo nacionalismo extremo, o processo europeu centrou-se na construção de uma potência civil, deslegitimando a política de potência entre os Estados membros e tornando as guerras europeias impensáveis. Depois de um milénio de guerras, a utopia da paz realizava-se. Era a “paz perpétua” de Kant que, começando a nível regional, tenderia a alargar-se ao mundo (e daí também a impossibilidade de definir os limites do alargamento da União Europeia).

 A paz intra-europeia foi, e ainda é, o grande objectivo, promovido pela solidariedade e a associação entre os Estados, só possível entre países democráticos, o que implicava, por isso, a intransigente defesa dos direitos humanos, da unidade na diversidade e da coesão social. Não se tratava de construir uma nova superpotência, inspirada pelo modelo dos Estados Unidos; bem pelo contrário, tratava-se de uma construção pós soberana. O pressuposto era que seriam os Estados, apoiados em instituições comuns, os actores centrais dessa utopia.

Foi este modelo que, sobretudo após o final da Guerra Fria e o Tratado de Maastricht, a Europa procurou promover na ordem mundial, apoiando as organizações internacionais, tanto multilaterais como regionais, e defendendo a definição e aplicação de regras e normas comuns: recordemos, por exemplo, a criação do Tribunal Penal Internacional e a ambiciosa agenda ambiental, da Cimeira da Terra ao Protocolo de Quioto.

No final do século XX, o fracasso da utopia comunista permitiu à utopia europeia afirmar-se, sem rival, e mobilizar já não apenas as elites políticas, empresariais e burocráticas mas sectores cada vez mais vastos da sociedade civil nas várias Europas, de que a geração Erasmus é o exemplo.

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