Morreu-lhe o Campeão, estava a comer e caiu para o lado. Logo o Campeão, o filho do 77 com a Azul 98, o irmão da Boazona. O filho de 13 anos comunicou-lhe a notícia através de uma chamada por Skype, quando João Ferreira estava em Angola, numa das temporadas de trabalho que lá teve de ir fazer depois de ter ficado desempregado do matadouro. Ficou triste com a notícia, com o estar longe, tinha saudades do pombal, dos seus pombos. O que vale é que o Campeão continua. Numa tigelinha de barro estão neste momento dois pequeninos ovos brancos de onde sairão daí a poucos dias netos do Campeão. Mas vai demorar tempo até que se perceba se sairão ao avô, um pombo que lhes trouxe tantas alegrias.
Parece que se está a falar de um familiar de João Ferreira e do filho. Os três pombais que têm a poucos metros da sua vivenda, na vila ribatejana de Riachos, são uma numerosa família paralela à de João Ferreira, que é casado e tem dois filhos. Ali vivem cerca de 80 pombos com uma intrincada árvore genealógica de familiares vivos e mortos que ele sabe de cor até pelo menos à terceira geração. Cada pombo é ele próprio e a sua história, mais a dos seus pais, irmãos, avós, bisavós e trisavós. O filho, que tem o mesmo nome do pai, domina-a até à segunda geração.
Diz o ditado popular que a família não se escolhe, como quem diz que tem de se aceitar, mesmo quando da sua forma de funcionar vêm dissabores. Dentro do pombal não é assim que funciona. Aqui João Ferreira, 50 anos, tem o poder de premiar os que lhe dão alegrias, "os que nos dão tristeza vão à vida".
Os columbófilos são uma espécie de deuses do pombal. São eles que decidem que pombos vivem, quais são “eliminados” ou “anulados”, verbos que se usam em vez do verbo matar. São eles que decidem quem tem filhos de quem – João Ferreira tem neste momento fechados num cubículo gradeado o Gabi e a Fantasma para que acasalem e, de preferência, tenham filhos que saiam à mãe, uma pomba que se destacou em provas de meio-fundo.
São complicadíssimas as estratégias reprodutivas com vista à eterna busca pelo “pombo perfeito”, como lhe chama José Jacinto, o presidente da Federação Portuguesa de Columbofilia, que também é de Riachos. Diz que teve entre os seus pombos uma aproximação a este ideal, o 834, porque juntava "beleza anatómica" e era um ganhador nas provas onde entrava. Há as de velocidade, em que os pombos percorrem 150 a 300 quilómetros, as de meio-fundo (301 a 500 quilómetros) e as de fundo (501 a 850 quilómetros).
Depois, os que lhes trazem “alegrias” – que neste desporto se traduz em títulos e “bons filhos” – têm recompensas. Um dos pombais de João Ferreira é uma espécie de lar de idosos, há uma ave com 18 anos, que já não voa em provas e já perdeu a capacidade de reproduzir. É como o pombo Armstrong. “Já não faz nada." São os privilegiados porque têm direito a morrer de velhice nas casas que sempre foram as deles e onde regressam sempre. “Fizeram história no pombal. Têm o direito de morrer de morte natural”, explica José Jacinto.
O ritmo de vida anual de José Jacinto, que é gestor de empresas, está marcado pelo calendário da columbofilia, que se divide em quatro como as estações, mas não coincide com elas.
Quando fala da época das provas (de Janeiro a Julho) quase parece um apaixonado, descreve a ansiedade nos “dias da espera” dos pombos: “Uma pessoa nesses dias nem dorme, vai-se um bocadinho à cama.” Nesses dias, às 5h30 já ele está a olhar para o céu, com tudo pronto, a água com fortificante, uma comida especial, mais mole, para ser mais fácil mastigarem depois da longa viagem, e o respectivo companheiro ou companheiro de cada um dos "atletas" prontos para o que seja.
É a melhor parte do ano para José Jacinto, não é como agora, em que se está parado. “Sinto um vazio.” José Jacinto segura um pombo na mão e abre-o como se tivesse na mão dois leques incompletos. Para um columbófilo chama-se a esta época, que pode ir de Junho a Novembro, “o tempo da muda”. É quando estão à espera que lhes voltem a crescer as asas e possam de novo voltar a voar por eles.
“Em Riachos havia o futebol e os pombos”
Ouvir falar com tamanho desvelo de pombos pode parecer estranho. Afinal, há por todo lado sugestões para melhor afugentar ou matar estas aves. Há lojas a vender suportes com picos que parecem instrumentos de tortura, o termo técnico é "espigões antipombos". Existe legislação só para proibir e penalizar os que alimentam pombos, faz-se "milho anticoncepcional" para impedir que se reproduzam. Há empresas que se especializaram “em controlo antipombos-especialistas em controlo de pragas”. O presidente de uma câmara municipal do país comunica, em tom vitorioso, que “já foram apanhados e abatidos mais de mil pombos”, com respectiva explicação sobre o método que leva ao sucesso: “Foram instaladas caixas-armadilha, com engodo, para atrair os pombos, que são depois abatidos em câmara de gás CO2, seguindo para incineração.”
Uma das razões por que a columbofilia é mal compreendida assenta num mal-entendido. Confundem os seus, os pombos correio, com esses. Os columbófilos falam dos pombos de cidade como familiares indesejados que vivem lá longe, com quem eles não se dão e não se querem dar, “não têm nada a ver com os nossos, não prestam”. Os da cidade são descritos como sendo enfezados, “as penas cheias de óleo, tipo mecânicos”, “são portadores de doenças que denigrem os nossos animais”, "vivem sempre no mesmo sítio, andam para aí”, e são eles os primeiros a chamar-lhes “os ratos dos céus”.
Já os pombos deles são descritos como tendo penas abundantes e lustrosas, massa muscular, grande resistência à fadiga e uma capacidade, que permanece até hoje misteriosa, de regressar ao sítio de onde vieram, de regressar às suas casas que, aqui em Riachos, também são as dos seus donos e treinadores, enumera o presidente da federação.
Para a maioria da sociedade, este desporto que deve o seu nome ao gosto pelos pombos (do latim columbu, ou pombo) e que, segundo a federação, mobiliza 18 mil praticantes federados, é um mundo desconhecido. José Jacinto admite que os columbófilos vivem numa espécie “de gueto”. Nas últimas décadas Portugal mudou-se para as cidades e eles e os seus pombos vivem sobretudo no campo. É um desporto tendencialmente rural ameaçado “pelas tendências do mundo moderno”, refere José Jacinto.
As corridas de pombos fazem-se em Portugal há 60 anos, arreigaram-se num tempo em que o país vivia nas aldeias, em que não eram tantas as solicitações dos jovens (consolas, Internet), que é como quem diz que não eram quase nenhumas – “em Riachos havia o futebol e os pombos”, lembra José Jacinto. Era no tempo em que ir a Lisboa era um evento anual e dava direito “a cortar o cabelo e a levar roupa melhorada”.
Talvez por isso a média de idades do praticantes ande pelos 60 anos e haja perigo de desaparecer, por carestia de jovens praticantes. É preciso dedicar tempo, ter paciência, gostar de contemplação. Não se marcam golos, nada é imediato, não se fica em forma, é preciso esperar. Um pombo campeão só se revela uns três anos depois do seu nascimento.
Como é que se cativa um adolescente a apreciar um desporto em que o clímax passa por passar horas a olhar para o céu? Em que não ganha quem chega primeiro (é por médias entre o tempo e distância percorrida)? Em que não há ídolos? Não passa na televisão? Não se fica em boa forma física porque os atletas são os pombos? E ainda é por cima é preciso andar-lhes a limpar a casa e a dar-lhes de comer?
Em Riachos o filho de João é o único praticante da sua idade, 13 anos, mas a sua ligação aos pombos por vezes parece mais uma ligação ao pai do que às aves. O pai João faz por estreitar este laço que os une, fazendo pontes com o mundo do filho, como ele fez com o seu. Até lhe arranjou um videojogo de columbofilia, o Pigeon Manager, como o que existe para futebol, em que treinam os pombos, escolhem os mais aptos para as provas, também escolhem quem tem filhos com quem. Mas é tudo virtual. Ainda jogaram os dois durante uns tempos mas depois perderam os dois a paciência. Preferem os pombais reais.
Junto à vivenda da família há um compartimento estreito repleto de prémios, anilhas dentro de caixas que parecem de jóias de luxo, faixas de cetim com as classificações escritas a dourado, um palmarés que só pai e filho compreendem. “Aqui só entro eu e o João”. Só eles vão ficar à espera para saber se os pombos que saírem daqueles dois pequenos ovos brancos estão ou não destinados a darem-lhes alegrias, só eles saberão se alguns dos dois vai sair ao avô, o Campeão.
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