Tiago gostava de lutar contra o Homem-Aranha

O corpo derrotado de Red Eagle foi arrastado para fora do ringue, queixa-se de forma óbvia de dores na cabeça, parece arrasado. Quem o pôs naquele estado? Lobo Ibérico, maior que ele, lutador com ar feroz, máscara azul e prateada com orelhas pontiagudas. Mas o público não parece satisfeito com a aparente derrota. Insultam Lobo que por sua vez, de tão irado, empurra o árbitro. “Faz jogo limpo, pá”, ouve-se na plateia, que puxa pelo homem no chão, “dá cabo do caniche”.

E haverá uma reviravolta. Red Eagle, que parece o mais fraco, o mais pequeno, em dois tempos consegue deixar Lobo fora de jogo.

No wrestling é tudo a fingir. Está-se sempre a ouvir essa acusação que parece uma descoberta que desqualifica o que ali se está a passar. Porquê é que tão difícil porem de lado essas categorias, a fingir, a sério, espectáculo ou desporto? É a fingir e é a sério, é desporto e é espectáculo, diz o wrestler Red Eagle.

Esqueçam que cada combate de wrestling pode ter uma história pré-definida, que alguém pode ter decidido de antemão quem são os bons e os vilões, que aquelas pessoas no ringue têm outros nomes e outras vidas.

Não pensem, deixem-se ir, baixem as guardas e acreditem. Façam como ele. Dentro do ringue Tiago Milheiro é Red Eagle e Red Eagle é, na verdade, o Tiago Malheiro “mas mil vezes aumentado. A minha personagem é um super-herói que nunca desiste.”

O que se pede a todos os que vão assistir a um espectáculo de wrestling parece ser, afinal, o que se chama em ficção “suspensão da descrença” – é que acreditem provisoriamente no que não é verdade, no que não parece ser verdade. E nisso as crianças são as maiores, por isso “são o melhor público que os wrestlers podem pedir”, diz Tiago Milheiro – “não me chame Tiago –, diz Red Eagle.

Foi quando era adolescente que tudo começou. A sua geração de fãs do wrestling, ele tem 24 anos, começou a ver programas de wrestling americano na Sic Radical, por volta de 2005.

Aos 14 anos era normal querer ter heróis daqueles, ídolos. Mas Tiago parecia estar a levar a coisa mais a sério. Dizia ao pai que queria ser wrestler profissional, tanto que lhe pediu um ringue para praticar. “Eu sei que é estranho [em Lisboa] mas eu tinha um quintal” e o pai fez-lhe a vontade, à medida que lhe foi possível. Depois de turnos de 12 horas como opérario numa fábrica de químicos, chegava à casa cansado, mas ia construindo o ringue ao filho, de meia em meia hora. Era quando aguentava a bateria da máquina de soldar que tinham em casa, lembra o pai, Mário Milheiro. E a construção prolongou-se ao longo de um ano. “O meu pai é o Macgyver, consegue fazer tudo”.

O pai fez a vontade ao filho pensando talvez que era coisa de adolescência, passageira, que no quintal travava lutas titânicas com os seus amigos de adolescência dentro de um quadrado de quatro metros por quatro, depois filmava-as e punhas-as no Youtube.  

Mas alguém viu os vídeos, em Inglaterra, aquele que é hoje o seu promotor. Red Eagle, que já era o seu nome do ringue do quintal, ficou o nome artístico que o leva durante temporadas de wrestling até Inglaterra, mas também já o levou a Espanha, à Holanda, ao Dubai. “Já fui a 8 países e vou à China. Consigo ser wrestler, com muita persistência minha”.

Além da sua carreira, Red Eagle queria que o wrestling se implantasse em Portugal, mas parece-lhe que, ao contrário de Inglaterra, por exemplo, “as pessoas têm mais dificuldade em entrar no espírito da coisa”. “Ambos sabemos que o super-homem não voa e o homem aranha não atira teias, mas pagamos cinco euros para ir ver o filme.” Os fãs de wrestling entram nesse espírito e não têm dificuldade em misturar mundos. Há um que lhe perguntou na sua página de Facebook: “Se pudesse enfrentar um personagem de banda desenhada qual escolheria?”. E ele responde que seria o Homem-Aranha, que é o seu herói preferido.

Red Eagle está a tentar criar público em pequenos espectáculos de bairro em Lisboa. É o pai quem o ajuda a pôr de pé o ringue que lhe apara as quedas contra os oponentes, foi ele quem lhe desenhou a primeira máscara de águia vermelha e que a foi aprimorando até esta que é a terceira versão, até lhe ter crescido a cauda que lhe sai da nuca. “É o sonho dele, tenho de o apoiar”, diz o pai.

No bairro popular da Ajuda, em Lisboa, onde Tiago vive em casa dos pais, já não estranham tanto quando ele sai de máscara à rua, porque não quer sair da personagem. Como o wrestling em Portugal não está implantado ele diz que tem de estar sempre a provar “que não é uma brincadeira”. Vai para as reuniões para tentar organizar espectáculos mascarado, porque o Red Eagle é o wrestler mas também o promotor de wrestling e eles são a mesma pessoa, explica.

Na Academia Recreativa da Ajuda já não estranham. “O Tiago Malheiro está?”, “Quem?”, “O Red Eagle? Está lá dentro”. É Fernando Sousa Reis, membro da direcção desta colectividade que existe desde 1945 e que toma conta do bar, quem responde. Ali, tiveram de se render às evidências, “o wrestling traz movimento de bar à colectividade. É uma novidade, é a coisa mais popular”.

Na vitrine de vidro da entrada acumulam-se os troféus em modalidades  mais clássicas de clubes de bairro, o futsal, a pesca desportiva. Os treinos de wrestling aos fim-de-semana são ao som dos bailes de reformados. O pimba dos bailes da Zezinha e do João Paulo sobrepõem-se ao hard rock.

“Porque é que aqueles espaços antigos não hão-de ter coisas novas, não devem deixar de ter as antigas, o dominó..., mas também podem ter wrestling”, defende Red Eagle. O caminho é vagaroso mas dá frutos.

O seu Centro de Treinos de Wrestling (CTW), que funciona na colectividade, já ajudou a nascer três personagens de lutadores que tem penduradas no ginásio da Ajuda. São eles o Lobo Ibérico, o Super Kid, um rapaz de óculos magricela que faz de “totó”, e “Jaquim”, que é suposto ser simplesmente um gajo de onde ele é, Alfama. Joaquim estava a comer tremoços e amendoim num café de e viu um cartaz sobre as aulas de Red, hoje é um wrestler que entra em palco ao som de um fado com um palito na boca. Tiago ajudou-os a fazerem sair as suas personagem cá para fora.

O Galã
Com Horácio Sebastião, 78 anos, o nome de lutador surgiu naturalmente. Ficou “o Galã” porque “já viu, eu era isto”, diz apontando para uma fotografia sua a preto e branco de há 60 anos, "era ou não era bem torneado?". Escolheram o nome por ele, conta. A sua personagem entrava no ringue com um pente no bolso e penteava o cabelo para trás e chupava um limão, como quem diz que ele era um galã tão valentão que nem a acidez de tal citrino o incomodava.

O seu começo como lutador nada teve a ver com o de Tiago e os da sua geração. A infância de Horácio Sebastião foi num tempo diferente. Veio sozinho para Lisboa, directamente da aldeia da Paúla de Alenquer com 12 anos, em cima de uma camioneta de caixas de vinho, para vir trabalhar como taberneiro.

Na altura, em Portugal “a luta” não se chamava wrestling e não dava na televisão mas era muito popular nas ruas de Lisboa. Ele cresceu com “a rapaziada da luta” e, sempre que podia, fugia para a ver um combate num recinto que é hoje um parque de estacionamento no Parque Mayer e que enchia.

No seu tempo “a luta”  estava ao rubro, não é como o espectáculo semi-vazio a que veio assistir, a convite de Red Eagle, que o quer homenagear como um dos que sobreviveram dos tempos aúreos da modalidade em Portugal. Galã e os seus oponentes enchiam o Campo Pequeno, o Pavilhão Carlos Lopes, o Coliseu dos Recreios.

O Galã fazia sempre de bonzinho e inocente, os seus adversários eram “mortíferos e sanguinários”. A luta era proibida a menores de 17 anos e na assistência havia homens e as mulheres só podiam ir se fossem com os maridos. Mesmo assim havia senhoras que, conquistadas pelas façanhas de Galã no ringue, “iam atrás do meu adversário para lhes dar com os sapatos de salto alto”, recorda.

Fala com nostalgia do passado “da luta”, queixa-se de que "está tudo muito americanizado”, diz que agora até há colchões feitos para amplificar os sons das quedas e das supostas dores. Agora um golpe que se chamava “dupla patada” chama-se dropkick.

Mas há coisas que unem “a luta” e o wrestling. Vê-se que Galã gosta de falar da luta, do tempo em que era lutador, mas há aspectos em que se cala, é enigmático, como Red Eagle, quando se fala da "história" de um combate, de quem decide quem ganha e quem perde. “Não quero entrar em pormenores”. Diz apenas, lacónico, que “o lutador é uma actor que sofre pelo público. E mais não digo”.

É um segredo de Polichinelo. “É claro que há um argumento prévio. É por isso é que nós gostamos disto”, dizem os amigos Ruben Amaral, de 18 anos, e João Chambel, de 19 anos, os poucos a assistir a este espectáculo de wrestling no bairro popular de Marvila, em Lisboa, mas que compensam em entusiasmo. É Chambel, que gostava de ser realizador de cinema, quem diz que “isto é como na literatura, em que há personagens fictícias e cada um tem as suas histórias, há drama, há comédia”. Mas para fazer todas aquelas acrobacias é preciso serem atletas, como os duplos que têm de se preparar para simular perigos encenados. É a fingir e é a sério.

Os amigos gostam de wrestling desde os seus 8 e 10 anos e hoje há quem lhes diga que eles já passaram da idade, que gostar de wrestling é infantil, mas eles agora querem ser wrestlers, como o Red Eagle. Ambos são franzinos. “Como o Red Eagle é baixo, tem de ser mais mexido e mais rápido, tem de puxar pela imaginação para fazer ataques que deslumbrem”. O que eles lhes diz no ringue é que se ele consegue derrotar os maiores, porque é que eles não hão de conseguir também? “Identificamo-nos com ele. Ligamo-nos a eles para o apoiar”, vão explicando, ao mesmo tempo que vaiam o seu adversário, “vai para casa Lobo Ibérico, buuuuuuuuuuuuu”.

A mãe de Ruben, Anabela, gestora financeira, também veio ao espectáculo. O filho insiste que gostava de ser wrestler e ela quis ver pelos seus olhos o que é que aquilo afinal. No final do combate fala descontraidamente com os wrestlers, portugueses e ingleses, para tirar as suas próprias conclusões, "sem preconceitos".

No final, diz que “eles são boas pessoas. Isto é contar uma história”,  portanto, concluiu que não há problema nenhum de o filho querer ser um super-herói deste “desporto imaginativo”, “desde que entre para a faculdade”.

Afinal, Anabela tem 46 anos e gosta de desenhos animados. “Eu também gosto do super-homem e ele não existe. Eu gosto do Homem Aranha e sou uma mulher que lê Fernando Pessoa. Todos nós somos multifacetados”. “Eu não gosto disto, gosto é do meu filho. Para se ser boa mãe é preciso deixá-los ser quem eles querem ser.”
 

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Tiago Milheiro começou a lutar num ringue que o pai lhe construiu no quintal.