O homem-bala era para ter sido “um romance de Verão”

“A vossa máxima atenção. Vamos aguardar a ordem do homem-bala para proceder à contagem decrescente: cinco, quatro...” – segundos antes do momento alto do espectáculo, quando Ruben está a ser disparado pelo ar, Lena virou as costas e tapou com as duas mãos os minúsculos ouvidos do filho de um mês que está a dormir dentro do carrinho de bebé encostado a um canto da tenda do circo – “... três, dois, um. Fogo.”

A mãe de Ruben, Clotilde Ferrony, não sentiu necessidade de virar as costas: ver o filho a ser projectado do canhão em noites de espectáculo é tão rotineiro como o que está a fazer àquela hora, a encher sacos de pipocas para o intervalo na barraquinha montada dentro da tenda; Rui Mariani, está, por acaso, a assistir ao salto, e comenta, momentos antes, mais na sua qualidade de empresário de circo do que de pai, “este momento não perde a força, esta emoção”.

Já está. “Impressioooooonaaaaaante!”. Ruben agora já está a agradecer em cima do canhão, com um fato que lhe enfuna o corpo e o faz parecer mais corpulento do que na realidade é. Na altura dos aplausos Lena já se voltou para ele.

Lena - na verdade Gracilene, mas nunca ninguém percebia o seu nome em Portugal, “Graciquê?”, “Gracilene”. “Gracilena?”, “Ficou Lena mesmo” - não é “de circo”. É assim que se referem a si mesmos os que nasceram no circo para se demarcarem dos de fora. Não dizem que uma pessoa “é do circo”, dizem que “é de circo”, como se fossem feitas “de circo” e “de circo” fosse um material.

Por não ser “de circo” Lena Neto não consegue assistir ao “incrível homem-bala” a ser disparado pelos ares como se fosse um espectáculo, como se Ruben não fosse o pai de Leonardo e o seu companheiro há três anos. “Tenho medo”. E por isso ela ainda não é “de circo” e o pai, a mãe, o irmão e irmã de Ruben são de circo. E quem é de circo não fala de medo.

Lena nunca falou do seu medo a Ruben, Ruben nunca falou do seu medo a Lena. “Eu acho que ele também tem medo, ele nunca me disse o que pensa”.

“Eu não tenho medo”, é a primeira coisa que sai a Ruben, mas corrige-se logo a seguir – “ter medo é bom”. É o que o faz “fazer tudo igual, sempre igual”, porque assim corre menos risco de errar no que é mesmo importante. Coregrafa com a mesma exactidão o que é essencial à sua segurança e o que é gesto do espectáculo. Assim como dentro do canhão, antes do lançamento, ele sabe que tem de esticar muito o corpo para não lesionar a coluna, também sobe sempre para o canhão com a perna direita, depois de percorrer a pé o cano de 12 metros que tem o seu nome e labaredas desenhados faz pose de forte, já sentado junto à boca do canhão incita às palmas, depois mergulha metade do corpo do canhão virado para público, põe o capacete e os óculos e desaparece. É uma sequência de 2 minutos e 26 segundos, o salto demora 2 segundos.

No circo o espectáculo vive do exagero dos perigos, é tudo arriscado, perigoso, o circo é hipérbole, Lena, 29 anos, sabe disso, mas ela também sabe que há riscos mesmo, ela já viu, a mãe de Ruben diferente do que está agora, desesperada, a chorar junto à barraca das pipocas, foi só dessa vez, mas bastou. “Ganhei medo. “Ele não conseguia sair de lá de dentro”, lembra Lena.

Foi uma vez em que o Circo Mundial foi à Madeira. Ouviu-se o costumeiro disparo do canhão mas Ruben não saiu. Nestes momentos, pensaria quem está de fora, como Lena na altura, que bastaria a Ruben sair e repetir de novo, mas não é assim. Uma vez disparado, se o êmbolo de ferro o apanha a meio o mais provável é morrer e, no processo, “ficar carne picada, o perigo é na entrada e no disparo”, explica Ruben.

“Se ele não foi disparado não sabemos o que está a acontecer lá dentro, se ele tentar sair morre completamente destruído”, diz o pai. No dia em que Lena ganhou medo “o gatilho soltou-se, havia uma falha”.

O pai estava como locutor, “dos momentos mais dramáticos…”, mas não podia transparecer, as pessoas não vêm ao circo para se assustar mesmo, “vêm sentir emoção, expectativa, mas sem stress”. “Foram 10 minutos mas pareciam cinco horas”. “Ele ficou no sítio e voltou a engatilhar-se o canhão”. Ruben sabe que o que faz é perigoso, mas não sabe de estatísticas: o historiador de circo britânico A.H. Coxe contabilizou mais de 30 mortes em 50 pessoas a exercer esta profissão que é de poucos mas que já tem história. Haverá menos de dez pessoas a exercer esta profissão no mundo, estima um artigo sobre o assunto da BBC, que faz remontar a 1877 o primeiro lançamento de um homem-bala, em Londres, num número que se veio a tornar num clássico do circo.

No tempo dos "animalistas"

No circo o medo domestica-se, é como com os leões ou os tigres, é o risco feito rotina. A mãe de Ruben nunca foi mulher-bala mas teve de ser operada a um braço depois do “safanão” de um crocodilo. Há sempre o pequeno, o médio e o grande, ela levou com um grande. Retirou-se com 51 anos como domadora de cobras e crocodilos.

Rui Mariani, o pai, está atrasado para a fisioterapia porque tem as cartilagens dos ombros arrasadas pelos anos de trapézio voador com os irmãos. A laringite aguda vem do tempo em que não havia microfones no circo e ele tinha que gritar para contar as anedotas. E numa das mãos tem a cicatriz do Tarzan, “um leão que me ia arrancando a mão”.

No seu tempo também teve de se fazer novidade - conta que foi o primeiro domador de leões em Portugal, em 1976 - como o filho que é, desde 2010, a cabeça de cartaz do Circo Mundial como “o único homem-bala português”.

Não era sonho de menino. Nada é muito planeado no circo. Acontece. Ruben tornou-se o primeiro homem-bala português porque, de alguma forma, teve de ser, ou ele sentiu que tinha de ser.

O pai tinha contratado um que era estrangeiro e era um sucesso mas que se foi embora sem avisar. Pediu uma semana para ir a Barcelona fazer um anúncio da Fanta Laranja em que ele era lançado do seu canhão camuflado de lata de refrigerante e não voltou, ele e o seu canhão. Tudo se sabe depois. Arranjou um contrato na China.

Luis Muñoz, o homem-bala que não deu pré-aviso, foi dando entrevistas pelos sítios por onde passou, a explicar como há 30 anos que faz a mesma coisa, como o seu pai antes dele: ao Jerusalem Post, ao regional canadiano Lakeside Leader, no americano Your Houston News, foi dizendo como gosta do seu tempo livre, dos seus 3 segundos de trabalho diário, fora os 10 minutos de preparação.

Ruben faz exactamente o que ele faz, mas de resto tudo é diferente. Muda de fato três vezes por espectáculo. Assim como a irmã Carol está nos bilhetes antes de estar pendurado nos ares. Para Ruben, ser homem-bala é só uma das suas tarefas, talvez a que lhe roube menos tempo. Ele trabalha com as luzes, som, monta a tenda, desmonta a tenda, é palhaço a solo, palhaço em dupla com o irmão. O circo Mundial está montado como negócio de família, todos se completam nas tarefas. Já Muñoz não, era só homem-bala, especializou-se.

Muñoz abandonou o Circo Mundial numa altura má. A crise chegou ao circo, como ao país, mas também por razões que são só do circo. 2009. Foi uma data decisiva, foi a primeira estocada do que Rui Mariani chama “os animalistas”.

É por causa “dos animalistas” que ele, nos últimos cinco anos, teve de se desfazer do hipópotamo, o Harry, dos oito cavalos, dos dois dromedários, é por causa “dos animalistas” que eles este ano, na sua rota costumeira de Verão em que percorrem as zonas de praias, já não podem montar o circo em Faro, nem em Loulé, Évora, Cascais, Oeiras, Sintra, Matosinhos, enumera Ruben Mariani. Dos animais restaram dois póneis, os velhos tigres que vão morrer com eles, alguns crocodilos e serpentes. Foi em 2009 que foi criada legislação que limita o uso, venda e a reprodução de animais no circo.

“O circo está a ficar cercado”, têm de se inventar ideias, que, cada vez mais, não incluam animais. Como um circo concorrente que tem uma mulher laser que faz um bailado de cores, ou outro que um carro que se transforma em robot, como um Transformer. “O circo não sobrevive sem novidade”, diz Ruben.

O veterano Luís Muñoz, o homem-bala, tinha 57 anos, uns 120 quilos, barriga, estava fora de forma. Quando entrava para o canhão as pessoas riam-se da sua figura, mas mesmo assim enchia plateias, lembra Ruben. Quando ele se foi embora, em plena crise “dos animalistas”, isso deu ideias a Ruben.

E ele um dia foi ter com o pai, “se ele consegue saltar daquilo, é velho e gordo, eu também consigo”. O problema era construir o canhão, o homem não deixava entrar ninguém dentro do seu, era sigiloso. Foram ter com uma empresa de engenharia em Aveiro, que constrói carros de combate a incêndios. Eles aceitaram, disseram que estaria pronta em poucos meses, demorou três anos. Fora os ensaios.

Um saco de areia de 1,64 e 69 quilos fazia as vezes de Ruben mas teimava em não acertar na rede de pesca construída para lhe amparar a queda. A mãe assistiu a todos os ensaios, o saco “nunca caia dentro da rede e eu ‘ai meu deus’. Quando o saco acertou no sítio quase chorei de alegria”. Até que um dia, depois de vários acertos à máquina, que vai todos os anos à revisão e que Ruben escrutina todos os dias, lá acertou. “E foi uma loucura, o sucesso” de bilheteiras. O número do homem-bala português já deu duas vezes a volta a Portugal.

O rapaz que bebia cafés

Quando Gracilene o conheceu já ele era homem-bala, estava no auge, só que ela não sabia. Gracilene trabalhava numa pastelaria ao pé de uma rotunda junto às portagens da auto-estrada, na vila costeira da Ericeira. Era tão sítio de passagem que nem dava tempo para processar rostos de forasteiros. Nem ligou a um rapaz com ar enfarruscado que lá ia beber tantos cafés, uma quantidade exagerada de cafés. Percebeu que trabalhava no circo que se tinha instalado ao pé da rotunda, tão perto da pastelaria, porque vinham todos em grupo. O rapaz que bebia muitos cafés seria um dos que montavam a tenda ou tratavam dos animais, a avaliar pelas nódoas.

Quando Gracilene era criança o circo representava o inalcançável, era um sítio onde não se conseguia ir, “era para os ricos e era longe”. O circo a sério, em grande, era só na televisão e, ainda assim, apenas a preto e branco. E os circos familiares, daqueles pequeninos, “da tendazinha”, que às vezes passavam mais perto só paravam na cidade e, mesmo que lhes parasse à porta, não haveria dinheiro para o bilhete. Não dava, era uma família de quatro à custa da “quarta parte”.

A família, depois da morte do pai com ataque cardíaco, quando ela tinha cinco anos, vivia do que a mãe cultivava nos terrenos de outras pessoas, feijão, batatas – um quarto era para comer ou para vender e assim alimentar as três filhas. Não dava. “A minha mãe chegou a aquecer água com açúcar para nos enganar a fome.”
 
Ir ao circo era como os aviões que às vezes cruzavam os céus no lugarzinho de Mesquita, em Minas Gerais, “um dia ainda hei-de entrar num avião daqueles”, e as irmãs troçavam dela.

A primeira vez que Gracilene viu o circo foi numa televisão a preto e branco, já não era tempo delas mas foi a primeira que a mãe conseguiu comprar, já tinha nove anos, era o circo Beto Carrero. Ficou a imagem de um artista em cima de um cavalo, do mágico com a cartola e uma capa, um espectáculo de luz e cor em escala de cinzas.

No Brasil nunca foi ao circo porque não tinha dinheiro. Em Portugal há 12 anos – veio com 17 anos, foi ajudante de cozinha, trabalhou numa loja chinesa, limpou escadas de prédios – nunca foi ao circo porque nunca tinha tempo.

Há vários anos que o circo parava junto à rotunda da pastelaria, só que os horários nunca a deixavam ir. Esse ano havia uma sessão às 21h30 e ela saia às 21h00. Dava. “É dessa que eu vou no circo. Fui a primeira a chegar, toda encantada”. Estava o fotógrafo à entrada, tem foto do momento.

Reteve dessa primeira vez as luzes, os fumos, as cortinas, delirou com os palhaços, que lhe pareceram ter caras de velho, riu-se das suas piadas que não lhe pareceram infantis. Viu disparar o homem-bala, “nunca tinha ouvido falar, nem na tv”. E foi uma noite. Os dias continuaram na pastelaria. E o rapaz continuava a beber muitos cafés.

Foste ao circo? Perguntou um dia, algo ansioso. “Fui”, respondeu Gracilene. A conversa não avançou. Ruben ofereceu-lhe bilhetes para ela lá voltar, para talvez prestar mais atenção à cara dos artistas. E ela continuou a não o reconhecer.

Montado o efeito surpresa, Ruben lançou a sua grande cartada: “Eu sou o homem-bala”, “mentira”, e também “sou o palhaço”, “mentira, o palhaço é um velho”. “Vou ter de ir de novo para ver se é verdade”, gracejou. “E recebi mais um convite para o circo”.

Com as várias idas reconheceu-o no circo em muitos sítios, percebeu que tinha sido ele o fotógrafo à entrada, que era ele o palhaço do início, o homem-bala, e o palhaço do fim. Só muito mais tarde veio a saber que também era ele um dos que montavam a tenda, um dos que a desmontavam, e que fazia o som e as luzes, que distribuía panfletos e pregava cartazes.

O circo ficou dez dias na Ericeira. Ruben Mariani era para ser uma história para contar às amigas de Gracilene. “Pensei, minhas amigas vão morrer de inveja, vou poder dizer ‘tive um romance de Verão com um homem-bala, um romance de circo’”.  

Mas depois começou a juntar folgas para fazer centenas de quilómetros, cinco horas a conduzir para ir ter com o circo. Seis meses depois, despediu-se da pastelaria Pão da Vila: “Vendi as minhas férias para não ter de trabalhar mais, vendi o carro, dei mobília e casa com tudo dentro”.  

Vive na sua casa-roulotte com Ruben. O filho bebé não acorda porque talvez já se tenha habituado ao barulho do pai a ser disparado, pelo menos três vezes por semana. Tendo em conta que faz uns 250 saltos por ano, em nove meses vezes dá para aí 187 disparos em vida intrauterina.

Os dias de espectáculo são feitos do vai vem do pai que faz tudo no circo e que só fora da tenda se vê que coxeia, porque tropeçou numa pedra. Junto ao sofá da família estão dois pares de sapatos, umas botas de verniz que têm escrito no calcanhar o dizer "Homem Bala", e o par ao lado tem a sola exagerada de palhaço que têm sempre de ter pés gigantescos.

“Ruben, vai ali à bancada que há um menino que quer um autógrafo”, diz-lhe Lena. É Rodrigo Brandão, 7 anos, conta-lhe que “quando aquilo disparou o meu coração só fez ‘pum’”, “não é todos os dias que se vê um homem a voar”, responde Ruben, querendo ser simpático mas sem grande entusiasmo.

Talvez um dia Gracilene se vá habituar. “Mesmo sendo rotina, tenho medo, se aquilo rebenta, aquela bomba, se não dispara”, como naquela vez na Madeira. “Quando comecei a gostar dele veio o medo da perda, o perigo da perda”.

Quando o filho nasceu começaram-lhe a perguntar pela profissão “do pai do bebé”. Ela diz primeiro que ele é “artista de circo”, depois, se houver curiosidade, palhaço, e deixa para o fim que o pai de Leonardo “é também homem-bala”, ao contrário do que fazia com amigas quando ele era para ser um romance de Verão. Talvez consiga inverter a ordem quando um dia for “de circo”.
 

Comentários

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O canhão de 12 metros demorou três anos a construir. Daniel Rocha
Os velhos tigres são dos poucos animais que restam no Circo Mundial Daniel Rocha
No Circo Mundial toda a família Mariani tem várias tarefas. Ruben também monta a tenda. Daniel Rocha