“É só um filme”. George Lucas, pai, e Mark Hamill, filho, bem tentam entorpecer o animal que criaram ao longo das décadas, desmistificando o efeito Star Wars. É só um filme, este fenómeno cultural que nos quer estremunhar com a Força que desperta, imparável quase quatro décadas depois – trailer após trailer, entrevista após pepita de informação até ao Natal deste ano da graça de 2015. É, de facto, só um filme – até Allen Ginsberg relaxou. A sala escureceu num cinema do Colorado em 1977 e deslizaram as famosas primeiras palavras: “A long time ago, in a galaxy far, far away”... “Thank goodness”, suspirou o poeta beat. “Não tenho de me preocupar."
Guerra das Estrelas, ou Star Wars como agora quer ser chamada em quase todas as línguas, está de volta. E parece querer voltar ao início. Ao Episódio IV, estreado em Maio de 1977 e que, ao que tudo indica, é recuperado como matriz pelos seus herdeiros depois de o seu patriarca ter partido. E parece querer voltar à supresa e maravilhamento infantil que para muitos foi ver aquele que “é só um filme” pela primeira vez. E depois muitas outras vezes.
Um rapaz loiro num planeta deserto (o Luke Skywalker de Mark Hamill), uma princesa de branco que foge de um Império Galáctico titânico (a Leia de Carrie Fisher), uma rebelião, um eremita com uma espada luminosa e um vilão de negro.
A simplicidade dos valores e universalidade humanística da ópera espacial evoluiu de um para três filmes até 1983 e, daí, para outros três (as prequelas de 1999 a 2005), para tornar Star Wars numa saga familiar em que o espectro edipiano do pai paira no espaço. Trinta anos depois de os eventos de O Regresso de Jedi (1983) e com o regresso do elenco-chave de 1977 - embora com a omnipresente e provocadora ausência de Luke Skywalker dos materiais promocionais -, chega o simultaneamente muito promovido mas enigmático sétimo filme, em que dois jovens heróis, Rey e Finn (ou as futuras estrelas Daisy Ridley e John Boyega), vivem novas aventuras.
Milhões em todo o mundo comungam da ideia Star Wars. E isso leva-nos àquela sala de cinema com Allen Ginsberg, poeta da Beat Generation e figura da contracultura das décadas de 1960 e 70 a respirar fundo. A palavra “humano” é apenas um referente esquemático na galáxia de Lucas e companhia e, para o jornalista e escritor britânico Chris Taylor, o seu sucesso reside nessa primeira linha de argumento que se agiganta no ecrã. É por isso que cita a experiência de Ginsberg, relatada por um investigador e futuro jornalista da Wired. “As pessoas relaxam quando vêem aquilo, é como se sentíssemos os ombros a descontrair. Vão-nos contar uma história que nada tem a ver com o nosso mundo, planeta, problemas, aquecimento global… Temos licença para nos perdermos. O que não é verdade para qualquer outro franchise”, nem o era nos seus predecessores na paisagem cultural, de Star Trek a Planeta dos Macacos, explica ao Ípsilon a partir de São Francisco.
Chris Taylor é o autor de How Star Wars Conquered the Universe, biografia do franchise e também dos seus acólitos, aqueles que ajudaram a tornar a frase do título uma verdade - Star Wars é um conquistador, um aglutinador universal, seja na sua aceitação ou na sua recusa, um momento-chave para o cinema. O filme que originaria duas trilogias e que vale cerca de 30 mil milhões de dólares, segundo estima o Guardian, é uma terra de fronteira entre o reconhecível e o desconhecido. E o seu arquitecto – ou “O Criador”, como se auto-intitulou Lucas em reacção às palavras de George W. Bush, em 2006, sobre ser “O Decisor” -, não construiu, inicialmente, um mundo completo.
A New Hope, de 1977, “era um filme que tanto permitia ao público compreender uma nova história mas também inferir uma série de coisas excitantes que poderiam ser”, disse em Novembro à revista Wired o “superfã” que agora vai refundar a saga, J.J. Abrams: “É um dos presentes que o Star Wars original oferece de forma tão generosa”, a quem o vê, em “pinceladas”. A história começa a meio, não há muita exposição de contexto e os sabres sussurram-nos aos ouvidos. No fundo, o que raio foram as Guerras dos Clones? Mas elas lá estão, uma pista nas histórias contadas a um rapaz de Tatooine, e as naves continuam a zumbir até à próxima sequência. O público segue-as, esbugalhado, hiperespaço dentro.
“A primeira trilogia constitui o ponto de viragem no cinema moderno”, escreveu o historiador de cinema David Thomson no diário Guardian há um mês. Foram as centenas de milhões de dólares e pessoas, foram as filas de quarteirões de Los Angeles a Lisboa, foram os espectadores que não arredavam do assento e que inauguraram medidas como o esvaziamento obrigatório das salas após as sessões, foi a fantasia aliada aos efeitos visuais, foi Lucas. E um amigo.
“Star Wars estava in. Spielberg estava in. Nós estávamos acabados”, enumerou Martin Scorsese a Peter Biskind no livro Easy Riders and Raging Bulls (1997). Um amargo William Friedkin ilustra no mesmo livro: aquele foi o momento em que “Star Wars varreu as fichas todas da mesa”.
A ideia Star Wars
A “ideia de Star Wars” é uma das constantes de How Star Wars Conquered the Universe. É um conceito-chave para abordar uma história amplamente documentada. Christopher Walken podia ter sido Han Solo, o herói chegou a chamar-se Annikin Starkiller, os sabres de luz foram escritos como “lazerswords”, tudo foi terminado no fio da navalha, o dinheiro não chegava, e Alec Guinness não gostou de ser o gravitas do filme na pele de Obi-Wan Kenobi - e na rodagem na Tunísia, Harrison Ford chamava-lhe ‘Madre Superiora’. “Não ajuda”, relata, frustrado, o veterano britânico nas suas memórias.
Só faz sentido contar histórias do que poderia ter sido quando há uma tal penetração dos conceitos ou da gramática de Star Wars na cultura. E isso faz parte da ideia Star Wars. Que é de Lucas, pai, mas também do espírito santo - a massa dos fãs. É uma tese de Taylor. E é, aliás, o que o faz acreditar num final feliz para a maratona promocional de Star Wars: O Despertar da Força. O novo filme pode muito bem ser, diz, “a expressão mais pura da ideia de Star Wars que tivemos desde o filme original - do que nós, o público, achámos que é a ideia de Star Wars - por oposição ao que George Lucas pensava”.
Taylor, um dos directores-adjuntos do muito 2015 site noticioso Mashable, é fã, mas não fanático. Com o legado noutras mãos, “paradoxalmente, Star Wars pode ficar mais forte como ideia. É como se o mundo estivesse a reflectir de volta para George Lucas: ‘aqui está o que pensámos sobre o que Star Wars era suposto ser’”.
É aqui que entra J.J. Abrams. O realizador que vem de ressuscitar Star Trek, de mostrar a sua filiação nessa era 1980s de Hollywood em Super 8 e de várias séries de TV com mistério e aventura no ADN tem em 2015 o desafio de fazer algo que não seja nem uma peça de nostalgia, nem uma porta de sentido único para novos clientes, nem mais um filme de shock and awe. Para Taylor, ecoando o favoritismo e optimismo de parte do fandom, "J.J. Abrams percebe. Era um fã desde o início e traz o sentido certo de maravilhamento infantil. E o facto de Lawrence Kasdan estar envolvido é uma garantia de qualidade", diz o jornalista sobre o argumentista e realizador, que foi responsável pelo guião de Império Contra-Ataca (1980), que Lucas entregou por seu turno ao realizador Irvin Kershner.
Outras coisas que era suposto ser num dos mais importantes fenómenos de cultura popular de massas do século XX: Spielberg era a primeira escolha para realizar Regresso de Jedi, mas havia outro extraterrestre: E.T.. David Lynch também foi sondado para realizar o terceiro filme, mas teve uma forte enxaqueca quando viu os Ewoks. Fez, em vez disso, Dune. A história de bastidores de Star Wars é cheia de reescritas, frustração e controlo de Lucas. A certa altura, o lado negro da Força - conceito que une “todas as coisas vivas, que nos rodeia e penetra” e que se divide, basicamente, entre Bem e Mal - tinha um nome. Bodan. O lado bom? Ashla. Curiosidades que podiam ser notas de rodapé, mas tratando-se de Star Wars são como inscrições clandestinas no cânone - lados B de uma história colectiva. São também exemplos d’O Criador a trabalhar.
Tal como Brian De Palma pegou no longo texto amarelo que introduz o primeiro filme e o editou para ser aquilo que hoje conhecemos, também Bodan e Ashla ficaram, com outras ideias rejeitadas, na mesa feita a partir de três portas sobre a qual Lucas escreveu a trilogia original. São ideias por lapidar de The Journal of the Whills, o nome original de uma história mais ampla de Star Wars. Urgia simplificar. A versão menos complexa foi eficaz. Star Wars satisfaz “a necessidade humana por aventura espiritual”, validou o mitólogo Joseph Campbell.
A música de John Williams, os efeitos visuais, o realismo do “universo usado”, a história de uma família no espaço nem dez anos depois da ida à Lua. Os sonhos, a experiência juvenil de um plot twist, a iconografia. A ideia de Star Wars cabe, segundo Chris Taylor, numa mão-cheia de segundos. “A expressão mais pura da ideia de Guerra das Estrelas é o trailer”, a materialização de “todas as possibilidades, do que aquelas imagens podiam significar”. A ideia de Star Wars é a sugestão e o mundo reagiu.
Nas filas das cidades, de Paris a Londres ou a Tóquio, estavam miúdos e miúdas, universitários, pais, Johnny Cash, Hugh Hefner e as coelhinhas Playboy, Mohammed Ali, William Friedkin ou Ridley Scott. O que procuravam? “Desejamos a evasão. O escapismo tem sido muitíssimo incompreendido. Pensamos que é perdermo-nos em algo estúpido, escapar das nossas vidas banais e ser envolvidos num disparate frívolo. O escapismo é muito difícil. Dá mais trabalho do que fazer algo realmente ligado à realidade, porque tem de ser tão completo e tão escapista que conseguimos projectar o nosso próprio significado nele”, defende Taylor. Isaac Asimov: Star Wars era divertido e gostei”.
O tempo de Star Wars
O tempo em Star Wars começa a meio para chegar a uma espécie de fim e só mais de 20 anos depois começa pelo princípio - a trilogia original vai de 1977 a 83, as prequelas de 1999 a 2005. Foi sempre, defendeu Lucas em 1981, “um conto de fadas”. Mas “é um ícone cultural complicado”, disse em 2013.
Star Wars estreou-se no ano em que a música morreu um pouco com Elvis, na ressaca do Vietname, quando Deng Xiaoping voltou ao poder, quando o Benfica ganhou o campeonato e quando o FMI interveio na economia portuguesa. Nos anos anteriores, produziram-se Taxi Driver, de Scorsese, Nashville, de Robert Altman, O Vigilante e, claro, O Padrinho - que Coppola recusou várias vezes até Lucas o convencer a aceitar. Por seu turno, Apocalypse Now esteve para ser de Lucas depois de American Graffiti, mas seria o seguinte de Coppola - o amigo de cuja casa Lucas saiu para ir a Cannes, para ir ao festival onde faria a proposta inicial que o obrigou a concretizar “uma ideia de um filme de fantasia, uma ópera espacial ao estilo de Flash Gordon”.
“Uma era de jovens aspirantes a cineastas americanos estava deliciada com a carreira afluente de George Lucas” e de Coppola - “quem queria ser cineasta podia acreditar que a arte (e o negócio) tinham sido libertados para uma geração fresca”, recorda David Thomson. O antes fazia-se de “parábolas impiedosas de desvio psicológico, malaise social e paranóia política, passadas nas cidades infernais e purulentas da América”, escreve o escritor e professor de Oxford Peter Conrad no Guardian. Depois, “Lucas reafirmou os prazeres do storytelling directo, não irónico e com personagens bidimensionais acessíveis e cujas aventuras acabam bem” - Peter Biskind não esconde o seu desagrado com o desfecho da história. Friedkin compara o efeito do filme de Lucas com o do McDonald’s – “O gosto por boa comida simplesmente desapareceu”. Antecipando a paisagem do videoclipe e desmamando o público do cinema europeu e dos produtos da Nova Hollywood, Lucas e Spielberg, acrescenta o crítico, devolviam os espectadores “à simplicidade da era de ouro do cinema pré-60s”.
Súmula de influências dos serials de aventuras como Flash Gordon, de filmes de Kurosawa ou de heróis como John Carter de Edgar Rice Burroughs, mescla de comédia, romance e efeitos visuais milagrosos, Star Wars não queria ser, como disse Lucas à revista American Film em Abril de 1977, “um filme zangado e socialmente relevante”. Mas tinha leituras políticas, tão subtis que alguns as inverteram - afinal, o Império eram os EUA, os Rebeldes o Vietname, os pequenos Ewok do terceiro filme os Vietcong, o Imperador era Nixon e até a sua sala na Estrela da Morte era oval. Mas alguns críticos citados por Chris Taylor consideraram que simbolizava um regresso da guerra para um feelgood movie que retratava a América de forma positiva. A sua fé era perturbadora.
Lucas continuou a ver-se como um indie, a rejeitar a ideia de que infantilizou o público e a frisar que os lucros da invenção - o blockbuster de Verão - fez crescer as salas de cinema para multiplexes, dando espaço “às pequenas Miramaxes”, como disse à revista Time em 2006, para mostrar os seus filmes.
“Guerra das Estrelas é muitas vezes o bode expiatório”, defende Chris Taylor. Scorsese tentou filmar um conto de Philip K. Dick, De Palma tentou fazer o sci-fi de The Demolished Man, Alejandro Jodorowski pensou fazer um Dune com Dali, H.R. Giger e Orson Welles. São, para Taylor, prova de que o havia mais interessados no terreno desbravado por Lucas e Spielberg. “Se vamos culpar um filme por criar o blockbuster de Verão, deve ser Tubarão, que chegou um ano antes”, argumenta o jornalista.
“Não sei se têm hipsters no vosso país…”, pergunta. Sim, temos. Para Taylor, “a tecnologia fez algo como Star Wars inevitável”. Sem Lucas e Spielberg “só teria levado mais tempo”. “Qualquer tentativa de simplificar com um antes e um depois de Lucas e Spielberg… parece conversa de hipster”, ri-se.
“O conceito de um hipster é alguém que não gosta de nada que seja popular e aplica-se aqui. Guerra das Estrelas está a ser culpado porque foi demasiado bem sucedido, o que é uma loucura. Por que é que isso deve ser responsável por Hollywood tentar a seguir fazer outro tipo de blockbusters escapistas? E havia muitos filmes que já estavam em produção e que surgiram depois de Guerra das Estrelas, como Super-Homem” (1978), reflecte ao telefone com o Ípsilon. “Demorou muito tempo para Hollywood chegar ao ponto em que está hoje, cheia de filmes de fantasia, Piratas das Caraíbas, filmes de Hobbits...”.
O pai de Star Wars
A história de Star Wars é irrefutavelmente colectiva. Perfilhada. Foi feita não só por Lucas, mas por todos os que, com ou sem créditos, o ajudaram a melhorar o primeiro filme que mudaria a sua vida, o percurso e a velocidade do cinema. E foi completada pelos espectadores, do sócio número 1 do clube de fãs oficial Roman Coppola aos 2,2 milhões de americanos que faltaram ao trabalho a 19 de Maio de 1999 para ver Ameaça Fantasma, o Episódio I. Lucas queria “tomar o pulso do inconsciente colectivo dos contos de fadas” e deixou uma marca digital na cultura.
O Criador parece ser, ouvindo quem com ele trabalhou, um Editor. Um pai que delega, não no essencial, mas que delega. Iain McCaig, concept artist que trabalhou nas prequelas e nas edições especiais da trilogia original, também ajudou no iminente Episódio VII. Voltou à Lucasfilm pela primeira vez desde a saída do “pai nerd”, a expressão favorita de Taylor para descrever Lucas e usada por um dos funcionários da produtora vendida em 2012 à Disney. Em Tróia no final do último Verão, McCaig recordava ao Ípsilon: “George não nos diz o que fazer. Diz-nos um nome. ‘É um Sith Lord’. E vai-se embora. Não temos a mínima ideia – homem, mulher, planta, o quê?”, sorri o autor de Darth Maul e do visual de Padme Amidala. “O seu génio é, quando todos os artistas apresentam tudo numa mesa, ele escolhe ‘esta, aquela, a cabeça desta e o corpo daquela’. E encaixam como se tivessem sido desenhados juntos. É a única maneira como ele sabe trabalhar”.
Agora, sentia-se alguma orfandade e reverência no início do processo Episódio VII, para o qual Lucas deixou esboços que não foram usados. É preciso saber lidar com um pai ausente. “Foi diferente, porque não era o George. Toda a gente estava a tentar adivinhar o que ele pensaria”, continua McCaig. “Nós, os ‘velhos’ tentámos empurrá-los para o que sabíamos ser Star Wars”. Sempre em busca da ideia de Star Wars, já noutro tempo - este é o primeiro filme da era das redes sociais, mas este é o enésimo filme com forças sobrenaturais, explosões e efeitos especiais do ano, da década, do século.
Cerca de 1,3 mil milhões de bilhetes, segundo disse a Lucasfilm a Taylor, foram vendidos para ver os seis filmes em cinemas de todo o mundo. Duma dessas sessões, Ridley Scott levantar-se-ia da cadeira e decidiria deixar os épicos históricos e entrar na ficção científica. Alien e Blade Runner escreveriam a sua própria história. E, escreve Taylor, “em Los Angeles, um motorista de camiões de 22 anos que tinha sonhado exactamente com este tipo de modelo de nave [da perseguição que aterra os espectadores na primeira cena de A New Hope] ficaria tão enfurecido com o filme, tão consumido com a questão de como tinha Lucas feito aquilo, que se despediu e entraria na indústria cinematográfica a tempo inteiro. O seu nome era James Cameron”.
A.O. Scott, crítico de cinema do New York Times, tinha 11 anos em 1977 – tal como J.J. Abrams. Viu Star Wars repetidamente. “A vida moderna é uma série de marcos geracionais. Calibramos as nossas identidades colectivas de acordo com a experiência partilhada de acontecimentos públicos, incluindo filmes de sucesso e canções populares”, postula. “O fenómeno alargado de Star Wars representou o que parece o produto inevitável de demografia e de forças sociais”, sintetiza, e agora, na mesma galáxia mas décadas depois, (re)começa outra viagem.
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