Pelourinho
À beira-mar há restaurantes. No largo que hoje serve para vender artesanato destaca-se o Pelourinho. Passa um rapaz com peixe acabado de pescar, os turistas são assediados por vendedores. Este é um dos locais mais simbólicos da Rota da Escravatura – o Pelourinho, na Ribeira Grande, Cidade Velha de Santiago.
A primeira cidade colonial europeia a ser construída nos trópicos, como define a UNESCO — que a classificou como Património Mundial da Humanidade em 2009 —, foi um dos mais importantes entrepostos de comércio de pessoas escravizadas. Às ilhas de Cabo Verde os portugueses chegaram por volta de 1460 e o arquipélago seria transformado “num hipermercado a céu aberto de compra e venda de escravos”, diz o historiador Charles Akibodé.
Começamos pelo Pelourinho, que se tornou “um instrumento de imposição do poder na segunda metade da Idade Média nos mercados em França, Alemanha, Portugal e Espanha”. Chega a Cabo Verde como símbolo para “julgar e castigar os escravos”, continua. No Pelourinho, os escravos serão enforcados e chicoteados.
Nessa altura, o espaço da Cidade Velha era estruturado em volta da arquitectura militar, religiosa e civil, um conjunto de casas comerciais chamadas “sobrados”, onde estamos hoje. “É a primeira vez” que se “constrói arquitectura portuguesa” num lugar a sul do Sara, afirma o historiador.
O gesto de trazer o Pelourinho para o meio do mercado “vai ser dos elementos mais dolorosos do comércio atlântico de escravos”, continua o historiador. “O facto de essas pessoas serem castigadas em público era uma pena extremamente dolorosa, mais moral do que fisicamente, porque em África não se castigava em público.”
Apontando para o porto, Charles Akibodé descreve os barcos que atracavam “ali”, chegando quase vazios da Europa, com pedras e outros materiais, como lastros nos porões. “Havia pessoas que iam caçar os escravos no continente africano e esses escravos eram trazidos para aqui.”
O arquipélago torna-se uma porta de entrada e de saída de escravos. E nasce, como país, “num contexto especial de mudança da economia atlântica, da economia mundial, ou melhor, da economia-mundo”, onde se fazia “a inclusão de uma nova mercadoria que era o escravo negro”.
Mas o historiador defende que a população africana sempre desenvolveu técnicas de resistência a esse domínio, começando pelo uso do tambor como meio de comunicação — instrumento que, por isso mesmo, será proibido pelos portugueses.
“Quem tocava tambor era castigado aqui no Pelourinho. Havia castigos mais avançados como cortar as mãos dos tocadores de tambor. As mulheres usavam o seu corpo para tocar tambor, e hoje o batuque faz parte da memória colectiva de Cabo Verde.”
Além do batuque e do tambor, houve outro conjunto de mecanismos, como a criação da língua crioula, “que vai salvar o povo contra a escravatura”, defende. “Era uma luta passiva e a língua vai permitir construir novas ideias, novas referências, uma nova cultura.” O historiador de origem senegalesa defende mesmo que foi a partir de Cabo Verde que nasceu a palavra e a língua crioulas, língua essa que vai ser transportada para as Américas, Jamaica, Martinica… “Hoje, os especialistas já demonstraram que a estrutura linguística do crioulo português, inglês ou francês é a mesma, e [todos] nasceram no contexto do comércio atlântico de escravos que começou em Cabo Verde.”
Outro aspecto da resistência passiva vai ser o recurso à utilização do “nome de casa”, refere: o nome afectivo de relacionamento social, que secundariza o nome de baptismo, e se torna muito importante na memória colectiva.
“Quando falamos do escravo, pensam que é uma pessoa apática, mas o escravo é um ser realmente dinâmico que conseguiu introduzir várias transformações”, enquadra.
Igreja Nossa Senhora do Rosário
Situada num vale, que se enche de verde numa ilha marcada pela seca, a Ribeira Grande tornou-se a primeira capital de Cabo Verde e a sede da primeira diocese da costa ocidental africana. Uns poucos metros para o interior chega-se à Igreja Nossa Senhora do Rosário (1495). Era aqui que se dava o baptismo de escravos. Diz a placa à porta do edifício de arquitectura gótica, um dos raros exemplos em África, que é o edifício mais antigo da Ribeira Grande ainda existente. Foi edificada em nome de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos homens negros, informa ainda.
“A Cidade Velha vai ser estruturada em volta do conjunto arquitectónico religioso”, contextualiza o historiador, em frente ao edifício de paredes brancas. Neste local serão construídas muitas igrejas, tantas que levam Charles Akibodé a questionar: porque é que isso aconteceu “neste espaço perdido, com tanto calor”? Responde: “Porque pela primeira vez vai ser desenvolvido o marketing económico em volta do comércio atlântico de escravos. Vai haver dois tipos de escravos: os boçais – os que são pouco espertos, brutos – e os “ladinizados” – os “baptizados”, mas na realidade, os mais vocacionados para a agricultura de plantação. O preço do escravo boçal era mais baixo. As confrarias religiosas europeias vão chegar aqui a Cabo Verde para construir igrejas e captar imposto em volta desse marketing económico.”
O papel da igreja no início era entrar no comércio de escravos, e Cabo Verde vai ser transformado em “laboratório”: “Nesta rua vai haver seminários, conventos para formação de escravos que serão reutilizados em África”, aponta. Entre 1467 e 1530, os escravos saem de Cabo Verde em direcção à Madeira, Portugal, Canárias, e depois da abertura do Brasil dá-se uma nova dinâmica.
Sé Catedral
É preciso subir a encosta para chegar até à Sé Catedral. Está em ruínas mas consegue-se perceber a monumentalidade do edifício que começou a ser construído em 1556 e que só seria terminado por volta de 1700 devido a vários contratempos, entre eles, várias crises na Igreja. É, porém, a primeira catedral a ser construída na costa africana por ordem de frei Francisco da Cruz, terceiro bispo de Cabo Verde.
Daqui vê-se a imensidão do mar, e vê-se também parte da cidade. As casas à volta mantêm o estilo colonial português. Diz a placa à entrada que as pedras usadas para a sua edificação vieram de Portugal. “A construção de uma sé tem a ver com a elevação da cidade à categoria de vila. Por que razão, nesse espaço atlântico perdido no meio do nada, há a necessidade de construir uma catedral gigantesca?”, questiona o historiador. “Isto acontece porque o financiamento para a construção das casas, das igrejas e da Sé vem exclusivamente desse comércio de escravos.”
Charles Akibodé conduz-nos agora ao exterior da Sé e aponta:
“O que é interessante neste espaço é que a pia baptismal gigantesca, que devia ficar em frente do altar, estava na rua. Isso mostra que o baptismo dos escravos era industrial: os escravos eram baptizados fora, não tinham o direito de entrar na Sé Catedral. Demonstra que o baptismo era mais económico do que de fé.”
Fortaleza de São Filipe
Sobe-se ainda mais a encosta para chegar à Fortaleza de São Filipe, erguida a partir dos anos 1580, “o único sistema defensivo construído na Cidade Velha para defender o comércio dos escravos”, segundo Akibodé.
“A partir de 1470, Cabo Verde vai ser dos lugares mais defendidos no continente africano, porque o comércio vem logo cedo chamar a atenção dos piratas. O sistema de pirataria dos corsários era uma forma militar de defender a economia de um país, mas também de se revoltar contra outro país. Quando Portugal começou a ter problemas com Inglaterra logo a partir de 1545, um dos primeiros piratas que chegam a Cabo Verde é John Hawkins. Não estava aqui por iniciativa própria mas enviado por Inglaterra para destruir a economia de Portugal no comércio atlântico.”
Um dos segundos maiores piratas da história mundial, Francis Drake, ataca várias vezes Cabo Verde “para enfraquecer a economia portuguesa”. Há ainda relatos de outros piratas que atacaram a cidade, como Jacques Cassard, por exemplo.
No entanto, a partir do século XVII, o continente africano vai mudar de mãos, lembra o historiador, e pouco a pouco Portugal vai sendo expulso. Nesse contexto, a França, Holanda e Inglaterra “entram com novo apetite”. O comércio atlântico de escravos torna-se mais feroz. E é entre o século XVII e XIX que se dá o maior êxodo de africanos do continente, nomeadamente de Angola e do Congo. O algodão, o arroz e o milho vão revolucionar a economia dos EUA e da América Latina, e então quase todo o continente africano vai ser estruturado para o escoamento dessa nova força de trabalho. “Essa especialização de Cabo Verde como transformação do escravo [de boçal em ladinizado] vai ser muito importante até ao século XX.”
A participação de africanos no comércio transatlântico foi uma realidade. Charles Akibodé afirma: “Há várias teses que dizem que os africanos venderam os seus próprios irmãos, mas temos de rever: de quem era a iniciativa desse comércio? Era uma iniciativa exclusivamente europeia. A demanda e a oferta eram dirigidas a partir de uma necessidade estritamente europeia. A estruturação desse mercado era dirigida pelos europeus. Dizer que os africanos entravam nesse comércio por necessidade é perder de vista essa questão de o comércio atlântico de escravos ser uma necessidade exclusivamente ocidental.”
Esta reportagem foi realizada em parceria com:
Comentários