Corvo: Há um museu vivo a erguer-se da terra, do mar e do povo

Pode amar-se uma ilha? Sim, pode-se. Eu explico.

Chegámos a voar e mal avistámos o rochedo quase que já temos os pés em terra. A atracção maior do Corvo é, inevitavelmente, a sua dimensão. É uma vila única, no meio do mar, numa terra de pouco mais de 17km2, em que vivem 430 pessoas. Os números aqui são sempre um brilharete: a ilha tem 6,5km de comprimento e 4km de largura mas na verdade vive toda a gente num pontinho branco a sul, uma abençoada fajã lávica protegida dos terríveis ventos que assolam tudo o resto, um verde e cinza infindável entregue à agricultura, às vacas, entregue à sua resiliente beleza. Temos a ilha das Flores que sabemos de uma exuberância vegetal fabulosa quase sempre no olhar e temos aqui, já no corpo, este, por comparação, isolado e aparentemente desértico Corvo.  

“Ardeu três dias e três noites”, há-de dizer-nos Linton Câmara, do centro de interpretação da ilha –grande parte dela reserva da biosfera, como uma ladainha para explicar tudo o que se vê assim tão rasteiro. Séculos depois assim permanece, que os ventos não deixam nada crescer a não ser ali num recantinho. Porque isto é assim: uma linha negra de aeroporto a sublinhar a vila branca, quatro moinhos de vento recuperados a pontuarem a beira-mar, ali praia de areia negra e água quente, do outro lado o porto, a vila em cascata e depois é tudo a subir até ao clímax do vulcão. Quase nada? Tudo.

Repare-se que as singularidades do Corvo, não só as paisagísticas, têm vindo a atrair muitos olhares diversos, de um documentário de Gonçalo Tocha, É na Terra Não É na Lua – que filma tudo mas quase tudo durante 3h – a um anúncio da Coca-Cola a, agora mesmo, cenário de perdição e salvação na novela A Única Mulher da TVI. Sim, vêm quase todos ao mesmo: acima de tudo, à incomensurabilidade do Caldeirão, a cratera que se abre a partir do ponto mais alto da ilha, o Morro dos Homens. “Vêm das Flores de barco, vão de carrinha lá acima, vêem o que podem, vão-se embora”, resumir-nos-á Manuel Rita, ex-presidente da câmara e proprietário da guesthouse em que nos instalámos, que foi o primeiro alojamento turístico da ilha. Às vezes nem vêem o que queriam ver. Porque aquele buraco universal, recortado a campos agrícolas e lagoas, com as vacas por vezes a pastar, é como todas as grandes belezas e faz-se difícil: o nevoeiro pode tapar o Caldeirão até ao infinito. Sim, tu nada verás, daí o conselho: não te apresses, faz como nós, deixa-te ficar, espera, vai e volta, enquanto esqueces o postal ilustrado, faz por merecê-lo, dá-te tempo. ‘Ardemos em beleza três dias e duas noites’ (e em três visitas ao Caldeirão), poderíamos repetir em ladainha.

Para contornar o toca-e-foge dos turistas, o Corvo tem um plano. Mostrar-se no seu esplendor, faça sol faça chuva. E isso é mostrar-se no seu esplendor mais natural, aquele que a Natureza não nos enfia pelos olhos adentro como se fosse uma cura. Isto é, no esplendor de séculos de uma história humana árdua, lutada, no esplendor da arquitectura e tradições sui generis que a distância preservou e moldou como ao sabor do vento, pelas ruelas e canadas, no recanto da vila em que as casas parecem encostar-se como pessoas mas que verdadeiramente não se encostam, pelos campos e trilhos agrícolas, até pelo ar que se respira e, acima de tudo, até pelas pessoas que na ilha vivem.

Mais que um museu

A tarde está amena, mas o Caldeirão não parece querer dar um ar da sua graça, ainda encoberto, quando cruzamos a Vila do Corvo. Tínhamos combinado ir descobrir o futuro, o passado e o presente da ilha – tudo ao mesmo tempo. É que está a ser implementado um projecto de ecomuseu, que envolve não apenas um edifício “mas tudo”. Vamos passar a tarde a passear com Eduardo Guimarães e Sandra Quaresma; Eduardo é responsável pela dinamização do ecomuseu, Sandra é arquitecta. Aqui o que se quer, explica-nos Eduardo, é um “museu vivo” que envolve toda a comunidade e “é um processo dinâmico” e rumo ao seu próprio “desenvolvimento sustentável”, juntando a vila, as casas de lavoura, os currais e os fornos, os moinhos, todos os percursos de descoberta. Um processo tão dinâmico quanto o nosso passeio: é que como ainda não vimos o Caldeirão abrir, Eduardo pôs de atalaia meia vila – assim que houver aberta é certo que alguém vai aparecer para que não percamos aquela beleza.

No gabinete técnico do Ecomuseu já temos uma visão do que se está a fazer, com toda a vila e ilha mapeados e tematizados, o que vai desde estudos das portas a levantamentos das casas degradadas. “É todo um processo muito pessoal e que envolve cada habitante. A dimensão aqui obriga a que seja tudo olhos nos olhos”. É assim que iremos boa tarde-boa tarde pelas canadas e canadinhas, serpenteando pela parte velha da vila, descobrindo os caminhos que faziam e fazem aqui a vida. “Povoado, Terras de Baixo para cereais, Terras de Cima para feijões, milho, verduras. Baldio, Fujo e quintais, Caldeirão. Isso é o Corvo.” Pelo meio, vamos tendo histórias de piratas e milagres de Nossa Senhora, descrições arquitectónicos e manhas do arco-da-velha para sobreviver e resolver busílis de uma ilha perdida no Atlântico.

O passeio por este entrelaçado tem ainda outro mote cultural. Não se guia apenas por um panorama geral, tem um patrono: desenrola-se sob a égide de um filho pródigo da terra, Manuel Carlos Nascimento, que aqui nasceu nos finais do séc. XIX e viveu até aos 15 anos. Nascimento notabilizou-se como editor no Chile, para onde emigrou, mas também mundialmente: “foi o primeiro editor de Pablo Neruda, entre muitos mais autores importantes”. É também a partir da sua vida, os passos que daria pela vila, as casas ligadas à família ou a encosta onde terá brincado, que vamos passeando.

“Toda a vila é um caso único em termos de urbanização na região”, vai-nos dizendo Eduardo, que para mais tem muita experiência de ilhas, tendo nascido em São Tomé e Príncipe e a vida em São Jorge. Vamos pelas ruas e ruelas e percebemos que muita gente que às vezes aqui passeia se baralhe com este labirinto entre a alvura e a pedra vulcânica, é que é preciso saber que estas casas que quase se encostam para melhor se protegerem viram as suas frentes… para trás. “Se não andares pelas canadas não vês a parte da frente das casas. Isso é fundamental para entender o Corvo.”, diz Eduardo, explicando que “tem a ver com a orientação do casario para sul”.

Iremos calcorreando estes caminhos, até parando para olhar para a calçada onde as pedras se entroncam de formas especiais para permitir maior segurança, ver velhos lavadouros e fontanários e imaginar antigos namoricos, admirar lojas ou as eiras onde agora preguiça a gataria, estancar na praça do poder onde se decidia a vida comunitária da ilha. Agora, esse comunitarismo, além da “natural entreajuda”, sente-se nos usos dos terrenos baldios, no consultivo Conselho da Ilha, e, agora, graças ao ecomuseu, tem até um novo valor. “Tudo é discutido com a população, é uma intervenção que pede a opinião da população”, dizem-nos. “Neste momento já se discutem pormenores importantes como tipo de iluminação cénica que vamos ter, que tipo de pavimentação, etc.”. Até se debate, prancha a prancha, uma história de banda desenhada que o mestre da BD José Ruy está a criar sobre a resistência histórica dos corvinos à pirataria.

“Boa tarde, ai desculpem que estou cheia de morcela, que venho de fazê-la”, diz-nos, bem-disposta, uma vizinha que entra para sua casa e vai lançando o olho aos visitantes e às suas curiosidades. “Não sabem o que era isso? Era um bebedoiro para os porcos, coisa antiga”, aponta. Um “tubo lávico reaproveitado”, explica logo Eduardo. “Nada se perde…”. 

Vamos vendo casas em ruínas que poderão vir a ser recuperadas, algumas para o turismo, e paramos frente ao que será o centro de todo este projecto, o Museu do Tempo, o “guia” físico do ecomuseu, que está prestes a entrar em obra e deverá estar pronto em 2017. “Será como uma sala de visitas, para que quem vem saiba depois interpretar a ilha”, explica Sandra. Aqui pela zona velha, há já património recuperado ao detalhe, como uma atafona, um moinho interior movido por bois, que conjuga pedra e madeira. “Foi construída de raiz e era muito importante para o Corvo, que não podia depender só de moinhos de água ou vento”, explica-nos Linton Câmara do Centro de Interpretação do Corvo, localizado em velhas e tradicionais casas de pedra recuperadas e onde um grande molde da ilha nos permite espiá-la detalhe a detalhe. “Lá em cima”, diz o guia e refere-se ao Caldeirão, os ventos podem ir aos 200, até passar os 300km …

Pelo meio do passeio, havemos de, por fim, dar um salto à cratera de todos os contentamentos (ou descontentamentos, para os turistas sem tempo para esperar pelas abertas…). E seria já com essa imagem de clímax visual que regressaríamos às canadas e canadinhas da vila, entre uma brisa salgada e ervosa, enquanto garajaus e cagarros se parecem aliar e as cabras selvagens catrapiscam do alto de montes inacessíveis. Voltamos para tomar o pulso à parte mais humana deste ecomuseu que quer nascer de baixo para cima, como a vila, aliás.

Do património, claro, fazem também parte, as artes e criadores da terra. Por isso damos um salto à queijaria – azar, os trabalhos já terminaram, ficamo-nos por dois dedos de conversa e uma espiadela. Logo ali, porém, como nos vai dizendo, Eduardo, temos “duas forças vivas do Corvo”. E se um ecomuseu se faz com as mãos de quem o vive, não há aqui melhor prova. Vamos ao Artesanato do Corvo, onde nos recebe uma família que é uma heroína do artesanato local. Casam-se as fechaduras do sr. José Mendonça Inês que manteve a tradição destas peças que são uma das imagens de marca da ilha, com as boinas marinheiras da sua mulher, a dona Inês Inês. Já octogenários, recebem-nos com simpatia e prontos a explicar-nos as suas criações. Havemos de voltar para vê-los – e à filha Rosa, também artesã encartada e garante da continuação destas artes – a trabalhar. À noite, vemos as mãos da dona Inês Inês a rodopiarem agulhas por mais uma barreta. De manhã, as mãos de José Mendonça criam, com todo o vagar do mundo e um olhar perdido no tempo, mais uma fechadura.

Sim, a beleza estará sempre a bailar no Caldeirão. Mas são mãos assim, estas mãos que embalam o Corvo, que nos fazem querer voltar para mais um abraço.

 

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Enric VIves-Rubio
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