São Jorge: Da serra do Topo à caldeira de Santo Cristo, o que andámos para aqui chegar

 São 10h30 quando pomos pés ao caminho. Saímos da vila das Velas (Las Velas para alguns amigos, os que se lembraram de dar este nome a um antigo supermercado, agora transformado numa das quatro lojas de chineses de São Jorge) há meia hora e fomos trepando ilha acima até à serra do Topo. O senhor Ramiro, que nos conduz num carro azul por estes caminhos verdes, ainda parou nas Manadas, vistas grátis para encostas viçosas que caem até ao mar, a ilha do Pico ao fundo, nuvens de algodão encaixadas num céu azul. Mas há que prosseguir viagem, até ao Parque Eólico, onde vai realmente começar a aventura.

Uma tabuleta de madeira indica que são quatro quilómetros até à caldeira de Santo Cristo, onde temos encontro marcado com Raul Manuel Azevedo, um dos quatro homens que têm licença para apanhar “a única população de amêijoas (Ruditapes decussatus) comercialmente explorada no arquipélago” dos Açores, como leremos num painel informativo. Antes, porém, temos que chegar à fajã — toca a andar que já se faz tarde.

Estamos a 700 metros de altitude. O dia, que até acordou soalheiro, aqui já mudou de semblante: há uma névoa espessa e pesada, nuvens de chumbo no céu, um bafo húmido a subir do chão, inundado pelas chuvas dos últimos dias. O vento assobia com força e faz girar a sério as hélices do parque eólico. Indiferentes a quem passa, as vacas entregam-se ao seu sossego de sempre, pastam aqui, pastam ali. Muros e muros de hortênsias à espera de florir prometem sebes azuis para daqui uns meses — para já, somos simplesmente engolidos por um cenário verde-mais-verde-não-deve-haver. 

Conforme vamos descendo a serra, flora e fauna da ilha respondem à chamada. Urzes, cedros, incenseiros, louros, rocas-da-velha, um melro-preto aqui, um canário-da-terra acolá, vento gelado cá em cima, sol esplendoroso uns metros abaixo. De repente, e porque estamos na costa norte de São Jorge, aparece-nos o recorte da Graciosa — às vezes também se vê daqui a Terceira, mas não é o caso nesta manhã de Abril. 

Temos à frente uma cancela de madeira, e outras hão-de aparecer, e é preciso fechá-las por causa das vacas, que se aventuram por onde quer que haja alimento — agora percebemos a piada que nos contara o senhor Ramiro, que em São Jorge as vacas têm umas patas mais curtas que as outras, para se empoleirarem na encosta. E isto também explica outra graçola que ouvimos de Elisabete Alves, que nos guia pela ilha e nos acompanha na descida à fajã. “Cuidado que aqui há muitos vidros”, avisa, divertida, referindo-se à bosta de vaca que vamos encontrando pelo caminho. 

As pernas já nos tremem: a caminhada custa, é preciso estar constantemente a travar, e as chuvas deixaram o trilho escorregadio. Ao fim de hora e meia de caminho, escutamos o clamor de uma ribeira. Elisabete promete-nos uma cascata mais abaixo e ganhamos novo ânimo, embora as pedras do caminho pareçam facas que nos espetam os pés. Ainda são mais uns 30 minutos até à prometida queda de água, mas prosseguimos de alma cheia. “Olha a Terceira, está tão linda!”, exclama entretanto a guia, e lá a vemos, bem como o mar a rebentar contra as pedras negras. É uma da tarde, largámos da serra do Topo há duas horas e meia, tivemos frio, tivemos calor, as pernas tremem muito mais agora, mas temos um momento de redenção. 

Ainda estamos a vê-la de cima, mas já sabemos que a fajã de Santo Cristo é a conquista de uma vida. Fechem os olhos e tentem lá imaginar o que nós estamos a ver, um quadro que se pinta com quatro cores: o verde da falésia a cair de forma abrupta; o azul-turquesa do manto de mar; o branco da espuma formada pelas ondas que para aqui atraem tantos surfistas — e agora percebemos porquê; o preto das rochas que bordejam a fajã, dando-lhe aquele contorno dramático. Sabemos o que andámos para aqui chegar, e que temos outro tanto para sair daqui, mas nada disso importa perante este frémito da natureza. 

Apressamo-nos a descer. Ao fundo, a igreja domina o edificado, o resto é um punhado, não mais, de casinhas de bonecas com janelas de guilhotina. Por agora não se vê vivalma, não se ouve um ruído que não seja o do uivo do vento, que volta a gelar-nos até aos ossos, e o do mar, que por momentos deixamos de ver. Vamos andando por entre estes campos delimitados por muros de pedra, porto de abrigo para vacas charolesas. Quem cá vive em permanência — e são poucos, “o Baltazar, o Borges… quatro casais”, enumera Amaro Soares, da Urzelina, dono de uma casa de hóspedes na fajã, a Surf House — tem “vacas no pasto e moto quatro no quintal”, explica Elisabete Alves, porque para aqui chegar só há duas formas: a pé ou de moto quatro. E quem cá vive, está bem de ver, não pode dar-se ao luxo de demorar duas horas ou mais para conseguir ir “lá fora”, para falar a língua que aqui se fala.

Pensamos com os nossos botões que, apesar do cenário idílico e quase irreal, deve ser preciso coragem para morar num lugar assim, inóspito, fora do tempo — ou isso ou uma paixão imensa pela fajã. Voltamos a Amaro Soares, que, com ajuda do filho Filipe (19 anos, vice-campeão nacional de judo) está a limpar o empedrado em frente à sua casa. “No domingo vai haver aqui missa, há todos os meses, e eu quero a minha rua bonita”, sorri. “Só quem vem à fajã é que pode perceber o paraíso que isto é”, comenta Amaro, que sempre que pode larga a Urzelina e procura a paz da fajã, reserva natural desde 1984. Ainda nos oferece um café, mas para nós está na hora das amêijoas. 

Raul, o apanhador

Ainda estamos a tentar perceber toda a carga que emana da fajã — Amaro tinha avisado, só entende quem já cá esteve — quando encontramos Raul Manuel Azevedo. Foi, aliás, o barulho da moto quatro que conduz que nos devolveu ao mundo. Raul, que trabalha “no ambiente, a tomar conta dos trilhos”, é homem de poucas falas, mais ainda hoje, que o telemóvel trouxe-lhe más notícias: o filho João, de quatro anos, sentiu-se mal na escola e teve que ser assistido. Mesmo assim, com a cabeça a matutar no miúdo, deixa que o acompanhemos na apanha da amêijoa na lagoa da fajã.

Estamos em meados de Abril, aos quatro homens licenciados para extraírem daqui os moluscos resta apenas mais um mês de safra — há um período de defeso entre 15 de Maio e 15 de Agosto. Até lá, é tempo de entrar nas águas da lagoa ligada ao mar e cavá-las com um ancinho, como vemos Raul fazer. Boné de Portugal enfiado na cabeça, um garrafão de plástico atado à cintura, vai perscrutando o fundo da lagoa, de pedra nas margens, mais arenoso no centro. “O mar hoje está bravo, está sempre a turvar a água e torna a tarefa mais difícil”, grita-nos. Num dia bom, Raul, que começou a vir às amêijoas com o sogro até ter a sua própria licença, “há uns quatro, cinco anos”, pode apanhar “10 a 15 quilos” em três horas. Na lota, arremata-as a “16€, 17€ o quilo”. 

Sendo feito em part-time, nas folgas do emprego, o negócio até é rentável, mas hoje nem que estivesse na lagoa até à noite Raul conseguiria grande coisa. “O dia de hoje não conta para a história”, ri-se. Quando sai da água, calças molhadas quase até à cinta, camisola arregaçada a deixar ver as tatuagens nos braços — João de um lado, Guilherme, o filho mais velho, do outro —, mostra-nos o garrafão praticamente vazio. “Hoje foi assim, com o ancinho, mas às vezes mergulhamos e aí é mais fácil apanhá-las. Mas há quem diga que com mergulho não é bem permitido…”

Não há certezas sobre a origem desta espécie na lagoa de Santo Cristo, mas suspeita-se que tenha sido trazida, no final do século XIX, pelos ingleses que por aqui passaram quando da instalação do cabo submarino que ligaria Lisboa aos Açores, lê-se no site do Siaram, organismo da Direcção Regional do Ambiente do arquipélago. Talvez seja por isso que na fajã ainda há quem se refira às amêijoas como “clames”, adaptação da palavra inglesa clams

Já as provávamos, pensamos alto — mas o Borges, o único café da fajã, hoje está fechado. É tempo, então, de nos fazermos de novo ao caminho, que agora são mais uns quatro quilómetros até voltarmos à vida real. Raul monta-se na moto e despede-se — talvez acelere até ao Norte Pequeno, onde vive, para saber mais notícias do filho.

Paula, a dona do café

“Agora vamos andar até à fajã dos Cubres e o importante é não pararmos”, alerta Elisabete. Deixamos Santo Cristo para trás e embrenhamo-nos outra vez na vegetação. Uma subida a pique, outra menos íngreme, a fajã dos Tijolos, a fajã do Belo, casas em ruínas, outras em recuperação para o turismo, três vacas aninhadas a olhar o mar. Apesar de termos as pernas feitas num oito, esta parte do percurso é claramente mais fácil e ao fim de três quartos de hora já temos os Cubres no horizonte. Mais uns 20 minutos e o tapete de asfalto avermelhado onde já circulam carros chega a parecer-nos terra prometida. Porém, antes de procurarmos o carro azul do senhor Ramiro, ainda nos esticamos ao comprido no muro de pedra. São 15h37. Não sentimos as pernas, o mar não pára de rugir, mas tudo está bem quando acaba bem.

Excepto se a história não acabar agora — e se acabar ainda melhor. Paramos no café Costa Norte, na fajã dos Cubres, e perguntamos à dona Paula se tem amêijoas. Não tem. Serve-nos uma sande de queijo e uma Kima de maracujá, refrigerante com selo açoriano, e, do nada, explica-nos que quer passar o negócio porque tem o marido “muito doente”. “Os senhores não querem comprar isto?”.

Saímos daqui com essa ideia romântica a dançar na cabeça, um café na fajã, e mantemo-la até que nos sentamos na esplanada do Açor, já em “Las Velas”, e pedimos um prato de amêijoas. São da lagoa, claro, e apresentam-se enormes nas conchas acinzentadas. Lembramo-nos de como as descrevera Raul: “São mais saborosas que as outras, maiores.” Tinha-nos dito que para as cozinhar bastava “um refogado com azeite, cebola, alho, malagueta para quem quer”. O alho não se vê, a cebola sim, picada grosseiramente, a malagueta em dose suave. São deliciosas, servidas com um molho guloso para embeber o pão.

Querem melhor final para esta história? A recompensa é um prato que se serve morno.

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Manuel Roberto