Faial: A flora dos Açores está bem guardada a 15 graus negativos

Chegamos ao Jardim Botânico do Faial numa tarde soalheira de Abril. Estamos no Vale dos Flamengos e por aqui a temperatura é amena, mas os pedaços de conversa alheia que nos chegam falam de chuvadas épicas, granizo até, nas freguesias de Ribeirinha e Pedro Miguel, a apenas uma meia dúzia de quilómetros. Falar assim do tempo, logo para inícios de conversa, pode parecer pouco estimulante, mas, como veremos, para o que aqui nos traz faz todo o sentido.

O Faial, um pouco como todas as ilhas dos Açores, é território com personalidade muito própria no que toca às contas da meteorologia. Pois se aqui está sol, escassos quilómetros depois chove a bom chover. E isto ajuda a explicar muita coisa — em vários domínios, naturalmente, mas também ao nível da flora. E foi por ela que aqui viemos, ao Jardim Botânico do Faial, que está a comemorar 30 anos: foi plantado de raiz em 1986 nesta Quinta de São Lourenço “com a missão de conservar e dar a conhecer a flora dos Açores”, explica o seu director, Pedro Casimiro. E em ano de festa redonda está a lançar sementes para trazer mais plantas para contar, a verde ainda mais viçoso, a história das ilhas açorianas. Dos actuais 8000 metros quadrados, o jardim vai crescer até aos 15.000 — e nesta nova área está a nascer um orquidário que vai receber a colecção de milhares de plantas dos finlandeses Pekka e Tuulikki Ranta. 

Mas já lá vamos, pode ser? Por enquanto, Pedro Casimiro guia-nos por estes corredores verdes e vai explicando a forma como está organizado o jardim botânico. O arboreto é a parte mais antiga e conforme nos embrenhamos nos seus caminhos encontramos urzes, faias, pau-branco, uma das 75 espécies endémicas do arquipélago. “À medida que subimos em altitude, as espécies vão mudando”, explica Pedro Casimiro — percebem agora por que é que começámos a falar do tempo?

Cedro do mato, loureiro dos Açores, uva-da-serra, azevinho — e é como se subíssemos entre os 300 e os 600 metros pela geografia das ilhas. “Aqui temos lotus azoricus, uma espécie raríssima nos tempos que correm”, identifica Pedro Casimiro. Até aqui chegarmos já nos cruzámos com não-me-esqueças (myosotis marítima) e perrexil-do-mar — seguimos o conselho de Pedro e trincamos uma folha, que larga um agradável sabor salino — mas continuamos a trepar pelas ilhas até encontrarmos o trovisco-macho, que cresce geralmente acima dos 600 metros. “Esta é uma espécie endémica que se extinguiu noutros sítios menos nos Açores, é uma planta com milhões de anos”, nota o director. 

A aula viva de botânica prossegue, entre árvores e arbustos diversos e cheiros que se confundem, embalados pela banda sonora do Vale dos Flamengos. Quando observamos a Veronica dabneyi as explicações de Pedro Casimiro já fazem mais sentido na nossa cabeça: “No jardim recriamos os vários habitats existentes nas ilhas.” Esta espécie já esteve “dada como extinta”, conta o director, foi entretanto reencontrada “e só ocorre nas Flores e no Corvo”. 

Chegamos agora ao ponto onde no jardim se tenta “recriar a caldeira do Faial, uma zona húmida importante”. A caldeira é o ponto mais alto desta ilha e eleva-se a 1043 metros. “O musgão é uma das espécies que aqui ocorre”, mostra Pedro Casimiro. Já subimos, portanto, o que tínhamos para subir no Faial, voltamos a descer e vamos conhecer a erva-do-capitão, outra planta endémica dos Açores, de folhas muito recortadas, escolhida como o símbolo do jardim botânico. “É uma espécie rara, é preciso conservá-la”, aponta Pedro. E isto leva-nos a caminhar em direcção ao Banco de Sementes dos Açores, instalado no Jardim Botânico do Faial desde 2003. 

Em duas salas de dimensões modestas trabalha uma equipa que tem como missão “conservar as sementes de todas as ilhas” do arquipélago — é justamente para isso que serve um banco de sementes. Este do Faial está muito direccionado para a preservação das espécies endémicas dos Açores. “As amostras da flora açoriana chegam-nos dentro de um saco de papel, vão depois para uma câmara de desidratação à volta de dois meses, são limpas e preparadas para serem congeladas. As baixas temperaturas prolongam imenso a viabilidade destas sementes”, explica Pedro Casimiro, enquanto nos deixa ver os dois frigoríficos cinzentos onde há-de caber toda a flora endémica dos Açores. 

A 15 graus negativos, alinham-se tubos de ensaio que contêm sementes de espécies provenientes das nove ilhas. Para já, estão aqui conservadas “cerca de 50” das 75 espécies endémicas do arquipélago, sublinha Casimiro. As recolhas são feitas todos os anos, “a maior parte entre Agosto e Novembro”, de Santa Maria ao Corvo. “Diz-se que estamos de novo à beira de um período massivo de extinção de espécies”, comenta Pedro, e esta conservação ex situ funciona um pouco como um seguro de vida: no caso de “alguma coisa acontecer” às plantas, o banco de sementes conseguirá devolvê-las à natureza, através de novas germinações. “Já temos aqui milhões de sementes conservadas. Em pouco espaço consegue-se conservar muita coisa”, alegra-se Pedro Casimiro. 

Alegramo-nos também quando voltamos ao exterior do jardim e atravessamos uma pérgula de perfumadas glicínias, ladeada por canteiros de plantas aromáticas e medicinais. Até que nos detemos à frente do orquidário e se abre a porta para outra história que urge contar. 

Pekka e Tuulikki

A estufa onde está agora instalado o Orquidário do Jardim Botânico do Faial foi construída em 2010, para receber a colecção de Henrique de Ávila (1917-2007), doada pela Santa Casa da Misericórdia da Horta. Com “tradução” de Pedro Casimiro, vamos passeando por entre as dezenas de vasos que recebem perto de 30 espécies destas plantas e que proporcionam uma fascinante viagem por vários continentes: América, África, Ásia e Oceânia. Entre epidendros, dendróbios, miltonias, laelias, há uma orquídea que se destaca, “por ter contribuído para a teoria da evolução de Charles Darwin”. Trata-se da Angraecum sesquipedale, já estamos apresentados. 

“As orquídeas têm uma família imensíssima, com milhares de espécies”, conta Pedro Casimiro. A actual colecção do Faial, já se disse, tem à volta de 30 espécies, mas passará a contar com “perto de 500”. E agora, senhoras e senhores, chamam-se ao palco Pekka e Tuulikki Ranta, o casal de finlandeses que detém uma das maiores colecções europeias destas plantas e que no ano passado decidiu doá-las a Portugal. 

Pekka, um ex-docente na Universidade de Tecnologia de Helsínquia, nasceu em Tampere em 1944. Conta-nos por email que a sua paixão pelas orquídeas se deve à influência dos pais, “que guiaram quatro filhos para estudarem a natureza”, e de um professor de Biologia “extremamente bom”. Pelos “anos 1960”, Pekka Ranta começou a colecção. “A primeira orquídea foi a Bletilla striata”, recorda à Fugas. A partir daí, até 1977, foi sempre a somar espécies, mas uma forte tempestade (estão a ver o clima da Finlândia, certo?) destruiu praticamente todo o acervo floral acumulado até então. Pekka não desistiu. “E quando a minha mulher morreu, em 1991, concentrei-me mais na colecção”, conta agora. Em 1998 “tinha mais de 1000 vasos de orquídeas”. Um ano depois, já com a nova mulher, Tuulikki, o que até então era um hobby tornou-se praticamente uma carreira. 

Numa antiga casa de pedra na costa do mar Báltico, Pekka e Tuulikki fundaram a Janhuan Orkidearanta Oy, “que abriu portas como a maior exposição de orquídeas na Escandinávia”. No final do primeiro ano, tinham-na visitado 20 mil pessoas. “Na altura, as orquídeas eram relativamente novidade”, lembra Pekka. A cada ano que passava, a colecção Ranta crescia mais e mais. A tal ponto que, em 2002, as plantas foram trasladadas para o Este da Finlândia, perto do lago Saimaa, onde o casal construiu um novo orquidário. Os Ranta teriam já perto de 10 mil orquídeas. 

“A vida, porém, não é só feita de dias de sol e de orquídeas floridas”, escreve Pekka. Entre os anos “2000 e 2011, os preços da energia na Finlândia triplicaram” — e cultivar plantas exóticas num país com um clima tão rigoroso implica investir em aquecimento, como é óbvio. Os planos do casal para um dia doarem a colecção de uma vida a um jardim botânico finlandês estavam em risco. “Foi por isso que começámos a pensar mudá-la para um lugar onde a maior parte da energia necessária às orquídeas pudesse vir directamente do sol.” 

Pekka e a mulher costumavam organizar viagens para entusiastas das orquídeas, especialmente à Alemanha. Mas em 2010, porque conheciam uma portuguesa igualmente apaixonada pelas plantas, vieram a Portugal. Foi logo nessa primeira incursão que decidiram tornar “portuguesas” as flores de uma vida. “Quando a colecção começou a crescer, a crescer, pensámos que seria uma pena que ela desaparecesse com a nossa morte e começámos à procura de quem pudesse estar interessado em cuidar dela”, explica Pekka Ranta. Foi assim que chegaram ao Faial — e também ao Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa. Ambos vão “dividir” as orquídeas Ranta, sendo que será nos Açores que ficará a parte mais substancial.

Neste momento, estão já numa nova estufa no Vale dos Flamengos 3200 plantas. As obras ainda não estão concluídas, devem terminar até final deste ano, quando o novo orquidário abrir portas, mas Pedro Casimiro deixa-nos já espreitar uma parte do tesouro dos Ranta. É um arco-íris que pende dos vasos, entre flores completamente abertas e outras ainda à espera de mostrar o seu esplendor delicado. “Estão aqui cerca de 3000, mas nos próximos três anos vamos receber mais, num total de 7000 plantas. O facto de serem muitas, e de muitas espécies, vai garantir-nos flores durante todo o ano. Calculo que teremos 50 tipos de orquídeas sempre floridas”, diz Pedro Casimiro. 

Entre o Verão de 2014 e Janeiro passado, Pekka e Tuulikki estiveram permanentemente em Portugal. “Tratamos das nossas orquídeas no Faial e na Ajuda quase todos os dias, incluindo sábados e domingos. Vamos continuar a fazê-lo até termos a certeza que nos dois jardins há pessoas com o conhecimento necessário e que as estufas estão a funcionar correctamente. Depois disso, doamos efectivamente a propriedade da nossa colecção”, revela Pekka, explicando ainda que, no futuro, ele e a mulher querem passar “quatro a cinco semanas por ano na Finlândia” e o resto do tempo em Portugal.

Quando estiver definitivamente concluído, o Orquidário do Jardim Botânico do Faial, com os seus 900 metros quadrados, “será um dos maiores do mundo”, nota Pedro Casimiro, antecipando dias floridos para a instituição que dirige. “O turismo de jardins está em alta em todo o mundo, será certamente muito bom para nós.”

Jardim Botânico do Faial
Rua de São Lourenço, 23
Vale dos Flamengos
9900-401 Horta
Tel.: 292 207 382; fax: 292 207 385
http://siaram.azores.gov.pt/centros-interpretacao/JardimBotanico-Faial
Horário: de 1 de Junho a 30 de Setembro, de segunda a domingo, das 10h às 18h; de 1 de Outubro a 31 de Maio, de terça a sexta, das 9h30 às 13h, e das 14h às 17h; sábados e domingos, das 14h às 17h30. Aberto em alguns feriados.
Preços: bilhete normal a 3,50€, de família a 6€. Aplicam-se os descontos habituais.

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Pedro Casimiro. Manuel Roberto
Manuel Roberto
Pekka e Tuulikki Enric Vives-Rubio