Iain McCaig já viu o próximo Guerra das Estrelas – no estirador

Iain McCaig já viu o próximo Guerra das Estrelas - pelo menos na arte conceptual que produziu para O Despertar da Força, o sétimo episódio da saga que se estreia em Dezembro como uma prenda de Natal de nostalgia blockbuster. Um dos mais respeitados ilustradores e concept artists em actividade, o norte-americano acorda a desenhar e quer morrer a desenhar. Em Tróia, pôs o foco em Luke Skywalker à conversa com o PÚBLICO e, numa hora e meia de palestra, revelou a centenas de artistas qual é o sentido da vida.

“A história é a minha musa, é o que liga a minha vida”, diz Iain McCaig, 58 anos, criador de ambientes no espaço da sempiterna galáxia muito, muito distante, desenhador de atmosferas na Terra do Nunca (Peter Pan, 2003), na Transilvânia (Drácula, 1992) ou na floresta de Mogli (O Livro da Selva, que se estreia em 2016). E são as histórias que dão sentido à vida - as que pertencem a cada um de nós ou as que chegam aos artistas para que as contem ao público. Foi o que disse a uma plateia matinal no Trojan Horse was na Unicorn (THU), uma conferência de cinco dias dedicada às artes e efeitos visuais, tradicionais ou (mais) digitais que decorreu em Tróia em meados de Setembro. “É a nossa ligação ao resto da humanidade. Pode ser frívola, puro entretenimento”, exemplifica ao PÚBLICO, “mas também pode tocar as pessoas de forma muito profunda”.

Está em casa no THU, que na sua terceira edição e depois de já ter convidado veteranos como Syd Mead (concept artist de Blade Runner) nas anteriores edições, lhe pediu para falar a jovens aspirantes e a colegas de todo o mundo sobre a sua experiência a criar conceitos e imagens para filmes de referência no mundo dos efeitos visuais. Pinta, ensina, escreve, realiza, desenha storyboards. É um fã de Dune (o épico de ficção científica escrito por Frank Herbert em 1965 e filmado por David Lynch em 1984) que já foi um stormtrooper e sabe mais do que pode contar sobre Star Wars: O Despertar da Força.

“Trabalhei nos Episódios I, II e III e trabalhei nas edições especiais do IV, V e VI”, conta ao PÚBLICO numa tarde em que ainda era Verão em Setembro. “E entro em A Ameaça Fantasma”, provoca sorridente sobre o primeiro filme da trilogia de prequelas (1999-2005) saída depois da original (os episódios de IV a VI, estreados entre 1977 e 1983). “Sou um stormtrooper”, diz sobre a figuração no filme como um dos soldados brancos do Império Galáctico. “Não se vê nada dentro daqueles fatos – sabe por que é que eles não conseguem atingir ninguém? É porque não vêem nada”, ri-se.

Contos de fadas para hoje

O realizador J.J. Abrams e a sua equipa, chefiada pelo histórico braço direito de Lucas, a produtora Kathleen Kennedy, têm o velho e um novo elenco no filme que estão a ultimar. Têm também o peso da responsabilidade de ressuscitar um franchise multimilionário que se tornou um culto de massas há mais de 35 anos, mas cuja trilogia de prequelas foi muito menos bem recebida do que os primeiros filmes. Iain McCaig criou duas das imagens mais fortes dos filmes mais recentes – o primeiro novo Sith (os lordes do lado negro da Força) a surgir em 16 anos, Darth Maul, e a mulher de Anakin Skywalker, Padme Amidala, desenhando a traços largos o que seria o seu feérico guarda-roupa e a sua caracterização exuberante. Depois de ter sabido que Lucas passara estes universos para as mãos da Disney (em 2012) e que haveria mais Star Wars - “Holy shit!” foi a sua reacção inicial -, pegou no telefone e disse a Kennedy: “a minha espada está aos seus pés”. Terminou o seu trabalho como concept artist de Guardiões da Galáxia e voltou à Lucasfilm – “E foi diferente, porque não era o George”.

“O meu primeiro trabalho foi pegar no Han, Leia e Luke, na velha equipa” que encabeça Guerra das Estrelas, O Império Contra-Ataca e O Regresso de Jedi, e pensar “como é que os fazemos parecer bem e ao mesmo tempo diferentes?”. E confirma aquilo que em Agosto foi sugerido por Kennedy – que, três décadas depois do início desta saga familiar espacial, o jovem herói loiro Luke Skywalker (Mark Hamill) é novamente central na intriga. Harrison Ford e o seu Han Solo tornaram-se uma personagem e um actor venerado, mas parece ser em Hamill que O Despertar da Força vai apostar. McCaig fala da voz “rica e linda” e do “rosto vivido” de Hamill. “Quão fixe é isto: da última vez que vimos Luke Skywalker ele era um miúdo que salvou o universo e quando voltamos a vê-lo, 30 anos mais tarde, parece que levou uma sova… Há uma história só aí. É isso”, sugere, entusiasmado, mas sem poder revelar mais.

Mas faz-nos um tour do que foi e é trabalhar neste monólito do cinema de massas. Agora, é um filme promovido à exaustão e que é o primeiro sem ter o seu criador, George Lucas, por perto. Mas paira a sua ameaça fantasma. “Com o George, estivesse ele certo ou errado, fizesse ou bons ou maus filmes, não importava”, diz sobre a confiança da equipa em que trabalhou, do final da década de 1990 até meados dos anos 2000, com Lucas como patrão. “Porque cada vez que ele abria a boca e dizia alguma coisa era Guerra das Estrelas”, enfatiza. Uma década depois, de volta ao trabalho com velhos e novos colegas, sentiu que houve “um trabalho de detective privado a tentar descobrir o que era Guerra das Estrelas”. “Vai ser diferente”, avisa, dando mais uma pista – J.J. Abrams, um dos fanboys mais poderosos do mundo e que tende a transmitir essa admiração nos seus filmes, “tem muito respeito pelo Episódio IV”. Será o espírito que se deve esperar em Dezembro, o do filme em que o mundo conheceu dróides, uma nave chamada Millennium Falcon e uma princesa com uma única esperança.    

Iain McCaig, uma figura esguia e sorridente, passeia pelo centro de congressos de Tróia. Encontra colegas, há um jovem artista que o desenha com a sua caneta digital num tablet, é constantemente solicitado. O THU, este encontro de artistas da vaga digital e de resistentes das artes tradicionais, é o seu habitat natural.

Acabou de terminar O Livro da Selva, um novo filme Disney com base nos contos de Rudyard Kipling, já passou pelo universo Marvel de Os Vingadores, por Exterminador Implacável II ou por um Harry Potter. Tem alguns dos seus trabalhos mais importantes no mercado - e não apenas nas galerias, em museus como o Smithsonian, ou nos livros onde vive também a sua arte. Há peças que desenhou e que se tornam objectos de merchandising, que estão nas embalagens de cereais de pequeno-almoço, nas tampas de um gel de banho ou em caixas de brinquedos coleccionáveis.

O que se faz perante um projecto de arte que se adivinha que tenha esse potencial de massificação? “Temos essa noção”, confirma, “e livramo-nos disso o mais rápido possível”, aconselha. “É o que digo aos meus alunos – se tiverem um bom pedaço de papel, entornem-lhe café. É tão mais fácil de trabalhar nele, não pensando nisso como pressão - limitamo-nos a servir a história”. “Não cresci a brincar com brinquedos da Guerra das Estrelas”, recorda sobre esse traço geracional do século XX. Foi trabalhar com Lucas escudado por esse desassombro, mas ainda assim foi surpreendido. O dono da galáxia “não nos diz o que fazer. Diz-nos um nome: ‘É um lorde sith’. E vai-se embora. Quer que inventemos a ideia, a história, a personagem. O seu génio é, quando os artistas apresentam tudo numa mesa, ele escolhe ‘esta, aquela, a cabeça desta e o corpo daquela’. E encaixam como se tivessem sido desenhados juntos. Foi assim que ele fez aqueles filmes, confiando aos artistas que fossem artistas.”

McCaig, casado com uma portuguesa, também passa muito tempo a trabalhar em projectos pessoais. Nascido na Califórnia, estudou na Glasgow School of Art e viveu 17 anos na Europa e fez depois do Canadá a sua base. Em breve vai filmar a sua primeira longa-metragem, em que trabalha há 20 anos: “Aprendiz de Feiticeiro - uma história sobre mim e a minha filha”, a também artista Mishi, com quem trabalha - o filho Inigo é também artista.

Quando falamos sobre o impacto da tecnologia na forma como contamos histórias, revela a sua “irritação de estimação”. “Era uma vez uma altura em que os contos de fadas, dos Grimm e afins, eram histórias de ‘hoje’. As pessoas usavam capas, botas grandes e vestidos de princesa porque era a bendita Idade Média! E lidava-se com o que se via, com o perigo na floresta”, lobos e estranhos. “Onde é que estão os contos de fadas para os dias de hoje? Por que é que não estamos a falar de calças de ganga e das t-shirts, da sobremedicação das crianças, das decapitações e dos tempos aterrorizantes que vivemos, dos lobos que temos não nos bosques mas em vários países… Ou dos monstros que inventamos porque temos medo das pessoas da nossa sociedade? Precisamos de contos de fadas para o fazer porque são um lugar seguro para falar dessas coisas.” Vai tentar criar um espaço para isso na sua longa-metragem.

Como nos dizia no início da conversa, desenha todos os dias. O que já desenhou naquele dia? “Acordo”, diz, fazendo-se estremunhado, “e tenho papel ao lado da cama. E há uma série de gente nua… em livros. Agarro neles, puxo-os para a cama e acordo a desenhar. Desenho-os. Ou então ali está a minha mulher, desenho-a. Desenho tudo.” Começou a sua carreira como animador, mas preferiu a ilustração a um dia-a-dia de fazer muitos desenhos para se traduzirem num ecrã num mero minuto. Passou às capas de livros de uma série de fantasia e o primeiro emprego de grande dimensão no cinema foi nos storyboards de Hook, de Steven Spielberg, em 1991.

Iain McCaig é não só um contador de histórias através das imagens, mas é provavelmente o melhor narrador de si próprio. Não acredita em páginas em branco, é atraído pelos contrastes de forças que se opõem, de conceitos em dualidade, morais ou da natureza. “Desenhar é uma experiência mística. Começamos e às vezes é só a alegria sensual de mexer a caneta no papel. Mas a certa altura aquilo ganha vida e exige mais. E desapareço. Não estou na sala, não sentiria dor, não sentiria fome” enquanto desenha. “É como quero morrer. Quero estar a desenhar um rosto e a olhar de volta, a partir desse rosto, para o mundo enquanto me vou embora.”

A poesia desse desejo dura pouco. “Mas sabem o que vai acontecer, não é?”, diz, rindo-se com o corpo todo. “Vou ser atropelado ou coisa assim! E vou estar deitado no asfalto, não vai haver papel nem lápis à vista - vou fazer um corte no dedo e desenhar com sangue o meu último rosto. E morro. E antes que alguém consiga vê-lo, virá o senhor das limpezas e vai lavá-lo da estrada com uma mangueira.” 
 

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Lucasfilm
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Um jovem artista que o desenha com a sua caneta digital num tablet Miguel Madeira
Iain McCaig é um dos mais respeitados ilustradores e concept artists em actividade Miguel Madeira