O mundo talvez não precise de mais um ensaio sobre A Guerra das Estrelas, a desenhar o papel central que a saga criada por George Lucas em 1977 teve no desenvolvimento da moderna cultura popular audiovisual. Mas levantar essa questão implica que se pergunte, no mesmo movimento, se o mundo precisava realmente de mais um filme da “saga Star Wars”.
Evidentemente, a questão não se pode colocar de modo tão utilitário. Mas no momento em que a estreia a 17 de Dezembro do Episódio VII da série, O Despertar da Força, se prepara para monopolizar os media ao longo das próximas semanas, há que reconhecer que isso se deve também ao peso da criação de Lucas no imaginário universal da cultura pop moderna. É verdade que o império Lucasfilm se construiu sobre a dimensão puramente mercantil da saga: foram os brinquedos e o merchandising da Guerra das Estrelas a fazer a fortuna de Lucas. E se hoje existe uma tendência inevitável para reduzir tudo a uma mera questão de retorno sobre o investimento, não se deve nunca esquecer como essa popularidade tem uma razão de ser – emocional, artística, cultural. Sem o filme que lhe deu origem, nos idos de 1977, seria toda uma outra história do cinema – e, por arrasto, da cultura popular, americana e não só, de que estaríamos a falar. Uma história que, de modo profundamente moderno, se alimentava de toda uma linhagem do cinema popular do pré- e pós-Segunda Guerra Mundial.
Entrevistámos o "pai", George Lucas
Repare-se: quando A Guerra das Estrelas estreou em 1977, a publicidade portuguesa chamava-lhe “o grande western do espaço”. E não era descabido. Estas aventuras num Oeste selvagem sideral (as montanhas de Tatooine ecoavam, ou não, as paisagens do Monument Valley?) decorriam directamente da impossibilidade de Lucas filmar as aventuras de Flash Gordon. As referências narrativas vinham todas dos velhos serials de acção e aventura e fantasia (tal como, anos depois, os Salteadores da Arca Perdida que Lucas produziu para Steven Spielberg realizar), e eram comuns tanto a quem fez os filmes como a quem os viu: uma amálgama de visionários futuristas deslumbrados pelas possibilidades dos computadores e estetas influenciados pelos filmes vistos nos teatros de bairro ou na televisão. (E quem nasceu com a Guerra das Estrelas como “matriz”, sem forçosamente conhecer as inspirações originais, nunca poderia sentir o mesmo efeito de reinvenção e reconhecimento.)
O que Lucas fizera com A Guerra das Estrelas, depois de Spielberg ter dado o primeiro passo em 1975 com Tubarão, fora ejectar do cinema da “Nova Hollywood” a tendência autoral influenciada pela Nouvelle Vague, Ingmar Bergman, Akira Kurosawa ou Federico Fellini, substituída pelos serials da Monogram e da Universal, pelos filmes de género e de série B. Afinal, a “trilogia central” (A Guerra das Estrelas, 1977, escrito e dirigido por Lucas; O Império Contra-Ataca, 1980, escrito por Leigh Brackett e Lawrence Kasdan e dirigido por Irvin Kershner; O Regresso de Jedi, 1983, escrito por Kasdan e dirigido por Richard Marquand) implicava, no papel, a existência de mais seis filmes. Três situados antes dos acontecimentos do primeiro filme, três situados depois, construindo todo um mosaico narrativo.
À medida que os anos corriam e essa expansão parecia desaparecer no horizonte, o universo da luta entre o bem e o mal na forma da Aliança Rebelde e do Império Galáctico desmultiplicou-se em mil possibilidades paralelas - novelizações, BD, jogos, séries de animação, ficção de fãs… O universo Star Wars (e a dimensão de space opera de ficção-científica justifica plenamente aqui o uso da palavra “universo”) ganhou aos poucos uma vida própria. Democratizou-se com as contribuições de fãs que encontraram na simplicidade do seu combate moral entre o bem e o mal a resposta a um mundo moderno em crise. A criação do “pai” foi, de algum modo, tomada pelos “filhos” em ocupação quase selvagem - o universo que saíra da cabeça de Lucas fora colonizado e deixara de ser seu.
O pai, o filme e o espírito santo
O primeiro sinal de que essa relação evoluíra naturalmente para outro rumo diferente esteve nas reacções às “edições especiais” que Lucas supervisionou para o 20º aniversário: agora que a tecnologia tinha avançado o suficiente para permitir aquilo que as limitações (práticas ou financeiras) não haviam possibilitado originalmente, as alterações “cosméticas” (correcções ou aperfeiçoamento dos efeitos visuais e introdução de material adicional) levantaram protestos dos fãs mais puristas. Era como se Lucas estivesse a “reescrever a história” - mesmo que, em rigor, a história fosse sua para reescrever.
O anúncio da entrada em produção das três “prequelas”, levando à “redesignação” dos filmes originais como Episódios IV, V e VI, e a estreia em 1999 do Episódio I, A Ameaça Fantasma, foram acompanhados por um fervor quase religioso (não por acaso, Lucas tornara-se de algum modo verdadeiramento num demiurgo quase divino, e a personagem de Anakin Skywalker, “o escolhido” para devolver o equilíbrio à Força, era aparentemente fruto de uma imaculada concepção).
O longo interregno de 16 anos que separou O Regresso de Jedi de A Ameaça Fantasma abria, inevitavelmente, a porta à desilusão, independentemente do resultado final. Lucas guardou para si o controle criativo absoluto das três sequelas (A Ameaça Fantasma, 1999, O Ataque dos Clones, 2002, e A Vingança dos Sith, 2005, realizando e escrevendo sozinho, com colaborações de Jonathan Hales no argumento do segundo) mas não voltara a realizar desde 1977, e isso percebia-se, sobretudo em A Ameaça Fantasma – na rigidez de movimentos, na preocupação com o pormenor em detrimento do conjunto. O maniqueísmo refrescantemente à moda antiga dos filmes originais, o prazer simples da acção e da aventura eram agora substituidos por uma sequência de jogos de sombra e intrigas políticas, limitando-se a dispor as peças no tabuleiro para que as duas trilogias “encaixassem”.
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Lucas não percebeu como os anos decorridos entre as duas trilogias haviam mudado o mundo e os padrões de referência do público. Ninguém punha em causa que estivesse a fazer os filmes que queria fazer (originalmente ou não); a questão era apenas que esperara demasiado para os fazer. Como à espera do comboio na paragem do autocarro, à imagem dos seus colegas de geração que acharam que a Nova Hollywood ia durar para sempre, Lucas não percebeu que os tempos haviam mudado. E em parte por sua culpa – o impacto que A Guerra das Estrelas e Os Salteadores da Arca Perdida tiveram na reinvenção do cinema popular de outras épocas, somado à massificação das estreias globais com grande número de cópias, abriu um “dilúvio” no qual a sua saga acabou por ser arrastada.
Entre 1977 e 1983, o filme-evento era uma coisa rara e inesperada, algo que só acontecia a intervalos irregulares. Mas à medida que Hollywood começou a pensar mais nos retornos no investimento e na necessidade de satisfazer accionistas do que nas histórias que contava, a porta de marketing aberta por Lucas e Spielberg tornou-se no “padrão” de referência. A palavra “saga” perdeu as dimensões originais épicas ou heróicas para começar a ser aplicada a qualquer tipo de narrativa serial espalhada por vários filmes, quer a posteriori (Arma Mortífera, Die Hard), quer à cabeça (Crepúsculo ou Os Jogos da Fome). A ideia de um universo coerente desmultiplicado em infinitas direcções, que A Guerra das Estrelas não inventou mas que transpôs para o cinema moderno com sucesso, tornou-se no novo paradigma. Basta ver como praticamente toda a produção para grande écrã dos estúdios de BD Marvel (firma não por acaso entretanto comprada pela Disney) decorre dentro de um universo paralelo específico (entretanto alargado à televisão) e descrito de raiz como "Marvel Cinematic Universe". Nada que não acontecesse já na BD, mas que parece ter tomado de assalto Hollywood ao ponto de se tornar numa monocultura que arrisca afogar tudo à sua volta.
Pior: quando A Ameaça Fantasma estreou, o state of the art que Lucas havia criado com os seus estúdios de efeitos visuais e pós-produção já havia sido completamente ultrapassado. O fotorrealismo dos efeitos digitais estava finalmente no ponto com que Lucas sempre sonhara desde que fundara os estúdios Industrial Light & Magic, mas no interregno entre as duas trilogias, James Cameron, os irmãos Wachowski ou a Pixar abriram novas pistas. A única coisa que Lucas podia oferecer em contra-partida – a ideia de um cinema inteiramente “digital” onde os actores evoluíam em cenários virtuais construídos em pós-produção, e que seria levada a novos píncaros por Robert Rodriguez com Sin City ou Zack Snyder com 300 – esbarrava na ausência do “factor humano” que tanto inspirara a trilogia original.
Havia uma sensação de interacção física entre actor e cenário nos filmes originais; uma tridimensionalidade perdida quando, em O Ataque dos Clones, Yoda deixa de ser um boneco construído pelo atelier de Jim Henson e manipulada pelo marionetista Frank Oz para se tornar numa criação puramente digital, capaz dos feitos físicos que desafiam as leis da gravidade. Tudo na trilogia original tem peso, volume; muito das prequelas é demasiado perfeito, mesmo quando a patine do tempo é artificialmente construída. Essa dimensão humana estava sempre inscrita numa estrutura que era herdada de um passado pré-efeitos visuais, onde nada era perfeito mas era muito mais credível.
A saga que esteve à frente do seu tempo na recriação dos códigos clássicos para uma nova geração de espectadores acabou, de repente, por parecer ela própria um anacronismo. O que originalmente reinventava um cinema de bairro para uma geração high-tech tornava-se, agora, no próprio cinema de bairro que vinha substituir, embora com outro rigor e requinte de produção. E nesse processo, Star Wars tornou-se vítima de si mesmo e do paradigma que criou. Quando Lucas tentou reassumir a sua propriedade moral e intelectual, a revolta era inevitável; é preciso dizer, em sua defesa, que dificilmente poderia deixar a sua marca no processo sem assumir por inteiro o controlo. Mas, ao vender a Lucasfilm à Disney em 2012, e com ela as possibilidades de renascimento da série, Lucas estava também a ceder o seu direito a decidir o rumo a seguir. Assumiu que já não podia ser o guardião do Frankenstein que criara, numa prova de lucidez imposta pelo mundo real.
Mas isso implica também a pergunta: será que esse Frankenstein pode ganhar vida própria? Mesmo sabendo que J. J. Abrams, o criador de Lost, escolhido para ressuscitar a saga depois de ter dado novos impulsos a Missão Impossível e Star Trek, se especializou em criar mistério, manter segredos, intrigar o espectador com uma sábia dosagem de revelações, Star Wars já deixou de ser “a” saga, para passar a ser “mais uma” saga. Numa Hollywood dominada pelo “Marvel Cinematic Universe”, onde os filmes são tudo menos autónomos, simples “peças” intermutáveis num tabuleiro puramente materialista, o que pode esta passagem de testemunho (mesmo que reimplicando gente envolvida na trilogia original como Lawrence Kasdan) trazer de novo - quer à série, quer a Hollywood? Num momento em que já não é possível recriar nem refazer o que tornou Star Wars num fenómeno, agora que o filme-evento se tornou no motor principal dos grandes estúdios de Hollywood, e que o efeito-surpresa e o elemento-novidade são impossíveis de recuperar?
Só haverá um resultado aceitável para O Despertar da Força: nada menos que bater todos os recordes possíveis e imagináveis de bilheteira de sempre. Mas isso é puro ruído, puro folclore que satisfará os accionistas da Disney e os apostadores do box-office, mas nada dirá quanto ao impacto humano, emocional do filme no espectador. Esse impacto, tal como foi vivido em 1977 aquando da estreia de A Guerra das Estrelas, é impossível de reproduzir. Tão impossível como impedir os devotos de buscar reencontrar, reproduzir, prolongar esse momento. A Força nunca deixou de estar com eles – e são eles que a dominam agora. Talvez O Despertar da Força seja o título certo para o momento certo. Talvez não. Saberemos a 17.
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