Repare-se bem nesta imagem. Imagine-se esta imagem ao vivo. A fotografia do Enric viaja-nos até este monumento incomensurável da ilha do Corvo, faz-lhe justiça. E ao vivo e a cores vos digo: custou, que fácil não foi, mas é uma imagem para sempre.
No primeiro dia, o Caldeirão tinha-se feito arisco, escondera-se numa cortina pesada de nevoeiro e entre ventos fortes. Não tivéssemos nós ficado mais tempo e tudo o que teríamos visto era um belo Caldeirão nas fotos. Mas é preciso, mesmo, ver ao vivo esta cratera de uma beleza primordial, esta caldeira no topo do vulcão que se abre aos olhos e aos postais ilustrados como uma metáfora de um qualquer éden, resplandecente em verdes, em terra e céu e água. É a coroa desta pedra preciosa arisca e viva que é a ilha do Corvo, 17km2 de terra vulcânica erguida do mar entre ventos, agruras e benesses. A enciclopédia do Geoparque estipula em 2,3×1,9 km o seu diâmetro, um regalo para a alma e até para o corpo, que entra pelos olhos adentro e que depois por ali fica para sempre a alimentar-nos os sonhos.
Nós já sabíamos tudo isso e até que um passeio dentro do Caldeirão poderá ser igualmente eterno, entre as suas lagoas e “ilhotas”, vegetação, tufos e “cones de escórias, salpicos de lava”. E, vá, temos que admitir, é um cenário não só para sentir até às veias como também para fotografar até ao limite possível. Mas, no primeiro dia, tínhamos ficado de olhos fechados pelo nevoeiro, sem direito a essa prometida visão redentora, embora sem perder a esperança. Portanto, no dia seguinte, com outros planos aos pés do monte, dedicamo-nos a distribuir pedidos de «Alerta Caldeirão».
É que a manhã acordou nublada (até íssima) lá para cima. Aliás, já estou bem treinado: ao primeiro salto da cama, à primeira janela, à primeira lembrança, levo logo os olhos ao topo do vulcão para ver como estamos de névoas. E ia fingindo já saber ler o vulcão, como se um turista de meia tigela se pudesse tornar em pouco mais de 24 horas um professado intérprete das manias e sabedorias da ilha. Ora, meus amigos turistas e viajantes, isso leva toda uma vida e não vale a pena armarmo-nos em espertos, que a esperteza, aliás, está em conversar com quem sabe e admitirmos a nossa ignorância.
Vai daí, foi lançado o tal «Alerta Caldeirão» e este, qual sinal de Batman, cruzou a vila que se aninha resguardada, atravessou o seu labirinto à beira-mar, chegou à câmara e ao seu presidente José Manuel Silva, à nossa casa de hóspedes e ao seu guru, o sr. Manuel Rita, e à filha, Katy, passou pelo Ecomuseu que se está por aqui a criar e dois dos seus representantes, Eduardo Guimarães e Sandra Quaresma. Até mais: o alerta chegou aos 400 habitantes da mais pequena ilha dos Açores.
É que esta, além da mais humana e amigável das ilhas, é muito dada às evoluções tecnológicas e à comunicação virtual, isolamento oblige. Assim que publicámos um post sobre a frustração de não ver o Caldeirão aberto ao sol, com uma foto onde uma cortina de aço nos bloqueava a vista, toda a gente na ilha ficou a saber. Porque aqui quase toda a gente está no Facebook e ligado à net, não só para acompanhar o mundo, mas para acompanhar ainda melhor cada momento da vida da ilha.
E foi assim que o Caldeirão abriu enquanto passeávamos com a Sandra e o Eduardo, descobrindo a história rica da ilha tornada um museu vivo no sentido mais pleno da expressão. Enquanto passeávamos por calçadas e casas vulcânicas, ouvíamos vizinhas darem dicas ou artesãos a explicarem a sua arte. «Alerta Caldeirão!» poderia gritar-se como nos velhos tempos se gritaria um «Alerta Baleia». Eduardo tinha posto de sobreaviso o Fernando, o Lubélio, se calhar toda a ilha, e eis que surge o sr. João e uma carrinha para nos transportar com urgência os olhos aos cuidados intensivos da mais pura das puras Naturezas.
E foi como, pela primeira vez, entrámos de rompante no Caldeirão e ali ficámos, envoltos num vento que já não tememos, a absorver, entre aberturas e fechos nublosos, toda aquela beleza.
E assim que voltámos cá abaixo à vila, e quando nos estávamos a aproximar da nossa casa, sabem o que aconteceu? A Katy, do Comodoro, sorriu-nos e lançou novo «Alerta Caldeirão». “Abriu!, querem subir lá acima? Ao pôr do sol é lindo.” (E a Katy mostrou-nos uma foto que só vista, contada ninguém acredita.) Eu bem lhes dizia que o Caldeirão é mágico mas nós também. Ao fim da tarde, voltámos à caldeira para ver o princípio do fim do dia. O vento, talvez por já nos conhecer, até amainou. Deixou, então, o corpo seguir à vela enquanto a lagoa do vulcão se ia tornando um mar de prata, num verde lentamente a escurecer.
Isto pode ser beleza mas há aqui um qualquer amor também a surgir. Pode amar-se uma ilha?
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