Religião a caminho de "uma radical liberdade individual"

O lugar da futura religiosidade das sociedades vai colocar em causa tanto a laicidade dos Estados como as próprias hierarquias das igrejas, diz o antropólogo e sociólogo Alfredo Teixeira.

“A possibilidade de agir no contexto [religioso] tem as mesmas dificuldades que para agir na economia” RICARDO CAMPOS

Também acontece na América Latina…
Sim, sobretudo no que é a expansão em determinadas classes sociais, embora haja outras dimensões deste fenómeno que o tornam atractivo para outros extractos socioeconómicos, sobretudo na dimensão do pragmatismo de uma religião do bem-estar, da realização pessoal. Estes grupos religiosos estão a inscrever-se no que chamaria as fracturas de uma modernidade múltipla. Quando falava do mapa da modernidade estava a falar da modernidade histórica, hoje não há lugar que não seja moderno, esta dinâmica expandiu-se com os seus paradoxos. No hemisfério Sul temos uma modernidade própria, que não é a modernidade europeia ou a da América do Norte.

É mais individualizada?
Tem como suporte o actor fundamental da modernidade, que é o indivíduo. Deixou de ser a comunidade.

Está a sugerir que o espaço para o religioso vai ser mais individual?
Estou a sugerir isso, mas não tenho capacidade de dizer que é uma dinâmica que se vai concretizar da mesma forma em todos os espaços sociais e culturais. Tivemos compreensões diferenciadas da laicidade, desde sociedades com modelos de laicidade muito estrita, com o Estado neutro do ponto de vista religioso sem qualquer tarefa de regulação com uma política de estrita laicidade, como em França, onde a inscrição do religioso na esfera pública tem as dificuldades conhecidas, em particular no caso do Islão, com as tensões que observamos nas últimas décadas.

Anos atrás quando foi aprovada uma nova lei da laicidade que tinha como objecto regular questões novas que a presença da comunidade islâmica trazia à sociedade francesa, recordo que uma jovem muçulmana universitária contestou a lei, não pela proibição do Estado em usar o véu, o que seria na lógica do choque cultural, mas dizendo que queria ter o direito de escolher. Isto é a incorporação na identidade islâmica dos valores da liberdade individual.

Cabe ao Estado impor regimes igualitários entre religiões?
O Estado tem sempre muitas dificuldades em lidar com este problema. Nas sociedades que fizeram esta experiência histórica de pluralização no quadro de uma presença historicamente marcada pelo cristianismo - porque a forma como compreendemos o pluralismo religioso nas sociedades não é independente do trabalho histórico feito pelo cristianismo mesmo em tensão e conflito -, fomos conduzidos a um modelo do mercado, da livre concorrência. Aí, quando o Estado é visto a apoiar a presença de determinados grupos religiosos nas sociedades, a distanciar-se de outros ou a declará-los ilegítimos, facilmente pode ser percebido como uma espécie de interferência nas leis da concorrência, da oferta e procura.

Este paradigma está mais presente do que pode parecer, porque até os próprios grupos religiosos o interiorizam e usam os mecanismos próprios da propaganda do mercado para tornarem pública a sua mensagem. Claro que isto tem impacto quando se pensa o problema da relação do Estado com o pluralismo religioso. Em algumas sociedades, como o Canadá, chegou-se ao ponto de considerar que a partir do momento em que o Estado protege dimensões do religioso que são patrimoniais, isto pode ser visto como perpetuação da hegemonia de uma determinada tradição religiosa.

Também poderia ser encarado como, através de um processo igualitário, promover diversas igrejas de Estado?
É esse o lugar de todas as ambiguidades. O Estado, pelo papel que tem na sociedade, qualquer que seja a perspectiva que assuma enquanto regulador, ela terá sempre impacto na própria organização do religioso.

Então, que deve fazer o Estado? Nada?
Não digo que não deva fazer nada. O Estado está em maus lençóis (risos), porque a possibilidade de agir neste contexto tem as mesmas dificuldades que tem para agir no domínio da economia e das outras dinâmicas sociais. Mesmo que o Estado tenha essa política de estrita neutralidade, o que vai acontecer é que o indivíduo tem formas de afirmar a sua presença na sociedade que lhe vai permitir fazer regressar, a partir das suas convicções pessoais e escolhas, o religioso à esfera pública.

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