Religião a caminho de "uma radical liberdade individual"
O lugar da futura religiosidade das sociedades vai colocar em causa tanto a laicidade dos Estados como as próprias hierarquias das igrejas, diz o antropólogo e sociólogo Alfredo Teixeira.
Por outro lado, sendo a pluralização religiosa um factor que pode promover a aproximação entre grupos com tradições diferentes mas também favorecer todas as formas de comunitarismo e desagregação social, nesse sentido o Estado está em maus lençóis. De facto, quando quer intervir e de alguma forma apoia o religioso como factor de coesão social e cria dificuldades a outros grupos, em nome de que valores o vai fazer?
A história mostra-nos que foi possível partilhar valores, como a afirmação progressiva do valor do cuidado da vítima. As sociedades antigas não cuidavam das suas vítimas, nem sequer lhes chamavam vítimas. Os processos de coesão social passavam por excluir, excluir o estrangeiro, a mulher, há zonas de exclusão muito vincadas. [Jürgen] Habermas sublinha muito este aspecto, quando refere que grande parte dos valores consensuais nas nossas sociedades radicam, segundo ele, na óptica da fraternidade cristã, só que as pessoas já não precisam de ser cristãs para viver esses valores. Esses valores emanciparam-se, o que chamo de universalização.
O que é que não muda na relação do homem com Deus?
A relação do homem com Deus é mediada através de um conjunto de configurações muito diferentes, mesmo nas religiões monoteístas. Nestas modernidades múltiplas, a questão de Deus faz um certo consenso na humanidade. Nas sociedades, a relação dos indivíduos com alguma coisa que as ultrapassa, que por exemplo dá um sentido à experiência da morte, está muito mais distribuída do que a convicção de que a ideia de Deus é inútil ou dela não precisamos. O que parece ser a maior zona de transformação é, talvez, as formas de vinculação religiosa. Nas sociedades do Atlântico Norte, o principal lugar de transformação não é o de Deus, mas o da pertença religiosa. O que sofre enorme erosão não é tanto a disposição para aceitar, ou não, esse horizonte que está para além de nós, mas a forma como isso é vivido e se exige uma determinada vinculação do crente. Nos estudos, a categoria que mais cresceu, desde 1999 até 2011, foi a de crente sem religião, que se considera aberto à questão religiosa mas sem a necessidade de o vincular a uma pertença, a uma igreja, e isto é transversal do ponto de vista socioeconómico. Isto acontece por uma transformação de médio curso, que se tornará em transformação de longo curso, de sociedades que se afirmam cada vez mais na lógica de emancipação do indivíduo, ao ponto de o indivíduo achar que para viver essa afirmação religiosa o pode fazer através de uma radical autonomia. Assim, o que está verdadeiramente em crise é a pertença [a uma dimensão normativa do religioso] e não a crença.
Nessa perspectiva, ser religioso é um acto de pura liberdade?
E será cada vez mais numa sociedade de indivíduos, o religioso torna-se, cada vez mais, num lugar de liberdade. O valor da liberdade religiosa, não apenas na versão tradicional de liberdade de culto, mas inscrita nesta experiência de uma radical liberdade individual, parece-me um lugar muito interessante para pensar o que são as dinâmicas actuais na sociedade. É uma dinâmica que causa erosão nas próprias instituições religiosas, porque é uma liberdade que em certa medida põe em causa a concepção de laicidade do Estado, mas também a configuração do religioso instituído, hierarquizado, normativo. É, a meu ver, o lugar da futura religiosidade das nossas sociedades.
Qual é hoje a utopia que se coloca ao espaço religioso?
Nesse ponto de vista, a utopia não será, apenas, um horizonte. O religioso aparece hoje como um suplemento fundamental da realização das pessoas. Há um certo desejo de encontrar algo que responda às inquietações das pessoas e isso não é fácil de encontrar nestas respostas hiperespecializadas da sociedade. Talvez o dinamismo que transcreve melhor a aspiração das pessoas é encontrar alguma coisa que, de novo, dê sentido global à vida sem limitar a liberdade individual, sem o peso hegemónico de uma estrutura, seja política ou religiosa, que no fundo vai conseguir isso à custa de uma limitação da liberdade individual.
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