Os exossomas são libertados constantemente para a circulação sanguínea por todas as células — não apenas no corpo humano, já que este fenómeno é conhecido noutros animais e até em bactérias. No interior destas vesículas existe informação genética, pedaços do ADN e do ARN da célula de origem, proteínas e lípidos. Estas podem viajar de uma célula até órgãos distantes ou conjuntos de células próximas, fundindo-se com elas e assim libertando a informação que continham.
Todas estas descobertas são muito recentes. Os primeiros artigos sobre os exossomas saíram em 1983, mas nessa altura os cientistas apenas descreviam a sua existência e nada se sabia sobre o que faziam e por que existiam. Só na última década houve avanços significativos nesta matéria e, entre os contributos mais relevantes, estão os de Sónia Melo, que, além de várias publicações internacionais de artigos científicos da sua autoria, levaram o seu trabalho a ser tema de um editorial na revista Nature.
“Uma das funções que encontrámos foi a sua capacidade de produzir micro ARN’s de forma independente”, explica a investigadora do Ipatimup, que comprovou que estas vesículas têm funções autónomas às das células de origem. Esta particularidade faz com que os exossomas, quando chegam às células de destino, consigam muito mais rapidamente transformá-las. E é isso que uma célula cancerígena, no fundo, é: uma célula alterada. De resto, o grande objectivo do trabalho desta cientista é colocar o estudo destes sistemas ao serviço do combate ao cancro.
Hoje sabe-se que as células cancerígenas segregam até 100 vezes mais exossomas do que as células saudáveis, o que aumenta a capacidade de recolher informação transportada pelos exossomas. É na possibilidade de poder olhar para o cancro através destes sistemas que está a concentrar-se a equipa recentemente constituída por Sónia Melo no Ipatimup, onde a cientista, de 35 anos, se tornou investigadora principal, no final do ano passado. “Queremos utilizar os exossomas como uma fonte inesgotável de informação sobre o tumor”, explica. Isso será feito através de um processo chamado “biópsia líquida”, que é, no fundo, uma análise sanguínea como as que hoje são rotineiras para outras doenças, permitindo caracterizar um tumor.
Até agora, o estudo de um tumor só é possível através de métodos invasivos como a recolha de tecidos através de uma biópsia. Sónia Melo antecipa que possa fazer-se o mesmo através destas análises sanguíneas, “feitas com a mesma facilidade com que hoje se testa a glicose”. Isto será possível porque há certos tipos de marcadores (sobretudo mutações genéticas) que surgem associados a cada tipo de cancro. Sempre que for encontrado um pedaço de ADN associado a uma dessas mutações numa análise, será possível perceber o tipo de doença de que cada paciente padece e fazer um diagnóstico mais precocemente.
Isso é especialmente relevante em cancros como o do pâncreas, que é um dos mais mortais por ser difícil de diagnosticar — é assintomático e as lesões só são visíveis em ressonâncias magnéticas, por exemplo, numa fase muito avançada da sua evolução. No caso do cancro do pâncreas, um diagnóstico precoce permite aumentar as hipóteses de sobrevivência de 20% para 75%. “É uma coisa abismal”, avalia a cientista.
A investigação que está a ser feita no Ipatimup promete simplificar a ideia de cancro. O diagnóstico da doença está hoje associado a um receio justificado, dadas as elevadas taxas de mortalidade associadas a alguns tipos de tumor. Sónia Melo acredita que, no futuro, ainda que o número de cancros diagnosticados possa aumentar, esta doença vai deixar de ser altamente mortal para se tornar numa “doença crónica”.
A biópsia líquida pode também abrir “uma janela pequenina de olhar para o tumor”. Ou seja, os médicos vão poder monitorizar mais eficazmente a forma como os pacientes estão a reagir à medicação, localizando as mutações que criam resistências a determinadas terapias. O estudo dos exossomas permite também caracterizar melhor os cancros. Como as células tumorais são heterogéneas, estes testes vão permitir conhecer as diferentes populações de células que estão associadas ao tumor. Em última análise, será possível fazer uma personalização de tratamentos, dirigido de forma mais eficaz a grupos de células mais agressivas e reduzindo a possibilidade de recidivas.
Tudo isto com uma análise sanguínea, acredita Sónia Melo. O que torna mais irónico descobrir que esta cientista não seguiu Medicina porque “tinhas grandes problemas em ver sangue e coisas do género”. Foi isso que a levou a optar pela licenciatura em Bioquímica, na Universidade do Porto, que terminou com um estágio no Ipatimup. Foi nessa altura que o cancro entrou na sua carreira. Seguiu-se o doutoramento na área, dividido entre Madrid e Barcelona, ao abrigo do programa GABBA, e depois um pós-doutoramento nos EUA, também dividido entre a Harvard Medical School e o MD Anderson Cancer Center, na Universidade do Texas, antes de regressar muito recentemente ao Porto.
Comentários